30.1.11

580 - Órfão


Foto: Paulo Heuser
Órfão
Por Paulo Heuser

Por mas que queiramos, ou que queiram que queiramos, o que denota o uso compulsivo e abusivo do quê, eles existem. Lemos jornais, assistimos aos noticiários ufanistas da TV, e nada deles. Eles estão escondidos no mundo real, longe das redes sociais. Não vão encontrá-los no Twitter, no Facebook, no Orkut, nem no LunarStorm. Porém, estão lá, escondidos em meio àquilo que ninguém mais enxerga, a realidade. Apesar de imaterial, a existência deles nos incomoda muito. Choca, perturba, macula os fios do manto de cetim branco que recobre a normalidade do nosso mundo. Eles ficam pelas ruas, seu habitat, e ninguém gosta de topar com um. Nunca serão vistos em Jurerê, Punta Del Este ou Villefranche-sur-Mer, lá eles não se criam. Aqui, surgem por todos os lados e somente são notados quando alguém importante passa pelo local. Aí, os escondem de qualquer modo. Eles fazem parte do antes, nunca do depois, que sempre é lindo. Essa é exatamente a vantagem do antes, nele tudo cabe, pois já passou. É passado. O depois é ainda mais confortável, ele nunca chega, está sempre um instante à frente e é o repositório das promessas. O passado exige remissão. O futuro não, ele é a salvação. Sempre há uma nova oportunidade.
Nem todo mundo desvia deles, simplesmente, como se não existissem. Entre os mais jovens, ainda não embrutecidos pela realidade, há exceções. Como a menina que mora na minha rua e que viu um deles surgir do nada, aparentemente. No dia anterior, a rua estava normal. Na manhã seguinte, lá estava ele, desovado sabe-se lá por quem.  Ademais, quem faria tal coisa, numa gélida madrugada de julho? Ao contrário dos outros, que simplesmente desviavam dele, ela resolveu fazer algo. Chamaria socorro. Alguém haveria de tratar dele. Porém, a quem chamar? Na dúvida, a Prefeitura. Ela não teve muito êxito, pois queriam saber quem era o responsável por ele. De nada adiantou ela argumentar que esse era o problema, se soubesse quem era o responsável o problema estaria resolvido, ou, pelo menos, encaminhado. As noites frias se sucederam, e ele virou o agosto. Ficou lá, de boca aberta, a encarar o vento frio, até a entrada da primavera. A menina, desiludida com a hipócrita cidadania, passou a ignorá-lo. Ele já fazia parte da paisagem.
No final de setembro ouviu-se ruído de motores durante a madrugada. Ele sumiu tal como surgiu, sem que ninguém percebesse. À noite, lá estava, de manhã, neca, sumiu. Coisa ruim não deixa saudade, assim, ninguém deu pela falta dele. Estranho mesmo foi o telefonema que a menina recebeu em dezembro.
- Alô, nós gostaríamos de comunicá-la de que não foi possível tapar o buraco na sua rua porque não conseguimos localizá-lo.



Marcadores: