10.1.10

573 - Por míseros cem megahertz


Foto: Juliana Heuser


Por míseros cem megahertz



Paulo Heuser


Cem megahertz não fariam diferença, pensava eu. Estava errado, conforme descobri depois. Tudo começou quando o sinal do meu celular terminou. Haviam me prevenido da incompatibilidade dele com o sistema daqui. Faltar-lhe-iam míseros 100 MHz. Consegui um aparelho emprestado que havia participado de algum combate, pela sua aparência geral. A tampa do fundo havia desaparecido e deixava a buchada e a bateria à vista. Parte do painel frontal também desaparecera. Contudo, ele tinha os 100 MHz que faltavam ao outro. Funcionava, o que era o mais importante.
Tudo estaria bem se eu não houvesse ido jantar naquele lugar, um restaurante com vista para a marina, endereço para lá de fino, freqüentado pelos bacanas de diversos lugares do mundo. Coloquei minha melhor roupa e fui. À porta, fui recebido por um sujeito que era a cara do Vincent Price. Olhou-me de cima a baixo e, visivelmente contrariado, levou-me à mesa mais escondida no canto. Enquanto esperava pelo garçom, pus-me a observar a fauna local, composta notadamente de pessoas em trânsito, da segunda para a terceira idade e da riqueza absoluta para a descarada milionardice. À mesa próxima sentavam-se um homem que lembrava o Aristóteles Onassis e uma mulher que lembrava um misto de pavão e da Cruela. Ele usava óculos escuros de lentes grandes, apesar da hora; ela usava um vestido verde, muito curto, e botas de vaqueira. A pele enrugada estava bronzeada e contrastava com o cabelo tingido de loiro. De tão esticada, ela certamente poderia fazer sexo pelo umbigo, que já deveria lhe ficar entre as pernas. O homem foi recebido com toda pompa, inclusive pelo então sorridente Vincent. Garçons ensaiaram uma alegoria para conduzi-los à mesa junto à janela com a melhor vista da marina. Aristóteles agradecia com um sutil acenar do dedo mindinho da mão esquerda. O pavão limitava-se a levantar a sobrancelha esquerda, em variados graus, aparentemente indicando aprovação ou reprovação.
Enquanto eu tentava entender o cardápio, um garçom com cara de fiscal do imposto de renda trouxe pratinhos contendo um líquido que logo identifiquei como lavanda. Lugar chique. Mergulhei os dedos e ouvi o garçom avisar que o chefe oferecia um caldo de ostras como sinal de boas-vindas. Disfarcei e sequei os dedos no guardanapo. O pavão ergueu a sobrancelha, demonstrando ter visto a gafe. Vincent continuava sua imitação da Esfinge do Nilo. A vantagem de ser pobre, nesta terra de milionários, é esta, ninguém nos conhece. Podemos fazer gargarejo com a água, única bebida pela qual podemos pagar.
Meu polvo chega e parece maravilhoso. Eu nunca vi um polvo deste tamanho. O Capitão Nemo está vingado. Além de imenso, está corretamente preparado, ao páprica. Então, do nada, acontece. Algo vibra dentro do meu bolso. Em seguida, ouve-se uma apologia à agressão feminina, em forma de samba, pagode ou algo parecido. É um daqueles tchuca-tchuca no fiofó da menina, tão apreciado pelos turistas que chegam à Bahia. Surgem dois problemas. Um, Salvador fica a 4250 km daqui. Dois, o pessoal ao meu redor não parece apreciar tchuca-tchuca naquele lugar. Olho para a marina, tentando disfarçar e pego o diabo do celular emprestado. Tento desligá-lo, sem saber como. No desespero, jogo-o no chão. Piso com força e o máximo que consigo é aumentar o volume. As duas sobrancelhas da Cruela ameaçam tocar no lustre. Aristóteles continua impassível. Meu chip que se exploda. Chuto o celular para longe, por debaixo da mesa. Vincent corre para lá e para cá, distribuindo ordens confusas. Todos os garçons procuram a origem do tchuca-tchuca. O celular pára sob a mesa do Aristóteles. Cruela solta um guincho agudo, e um dos seus cílios postiços cai sobre a ostra que espera pelo abate. Ao vê-la, a mulher solta novo guincho e ameaça desmaiar. Vincent localiza a fonte do tchuca-tchuca e a leva para a rua. Aristóteles, até então imóvel, começa a soluçar, em movimentos crescentes, transformando os espasmos em uma gargalhada contínua. A barriga dele bate na mesa fazendo tilintar os cristais. Ele enxuga as lágrimas com o lenço tirado do bolso do blazer náutico.
Minha tática dispersiva falhou. Vincent vem na minha direção, seguido por dois garçons, com cara de poucos amigos. Aristóteles impede seu caminho, com um gesto sutil do mindinho esquerdo, entre contidas gargalhadas. Vincent se aproxima da mesa, agora sorrindo. Diz que aquele cavalheiro pagou minha conta e oferece-me uma garrafa do melhor champanha da casa. O sorridente maitre pergunta da possibilidade de que eu repita o espetáculo de duas em duas horas.


prheuser@gmail.com
http://www.pauloheuser.blogspot.com/

2 Comments:

At domingo, 10 janeiro, 2010, Anonymous Juliana F.H. said...

Muito boa!
Juntou bem os fatos!
(risadas)

 
At domingo, 26 dezembro, 2010, Blogger Wendley Souza said...

Ótimo texto, gostei da composição dos acontecimentos.

 

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