27.11.09

565 - Emergência como rotina

Bíblia de Toggenburg (1411)
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Emergência como rotina

Paulo Heuser

Zé descobre que a vida prega peças. Algumas boas, outras nem tanto. Ele se vê cara a cara com a recepcionista do setor de emergência do hospital. Quem trabalha na emergência não sabe o que é emergência, pois dela fez rotina. Documento, carteira do convênio e as perguntas de praxe, sempre iniciam assim. Zé olha para a sala de espera, com o canto do olho. Pelo menos não está repleta. Duas moças escoram-se, uma na outra, com cara de enfado. A que tem o dedão do pé inchado e preto faz careta de dor. A outra a consola. Ambas têm cabelo preto, cortado exatamente da mesma forma, e parecem fugidas de um filme do Peter Pan. Riem, agora. Ao lado delas, um jovem com cara de insuficiência de tudo senta-se com o que deve ser a mãe.

Triagem em até dez minutos, realizada por um enfermeiro, atendimento pelo médico em até duas horas, avisa a recepcionista. A emergência está lotada porque o hospital está lotado. Na porta que leva à área de atendimento há uma tabela que relaciona a gravidade do caso com o tempo de atendimento, através de um sistema de cores. Coitados dos azuis, sabe-se lá quando serão atendidos. Felizes dos vermelhos. Se não morrerem antes de chegar lá, terão atendimento imediato. Os verdes terão inveja dos amarelos. E se o tal do enfermeiro que faz as vezes de porteiro da salvação for daltônico? O rapaz sentado ao lado da mãe pende a bombordo, com o olhar opaco. A vida parece tê-lo deixado. Ele está lá cumprindo alguma estranha formalidade, antes que venham buscá-lo de vez. A mãe aparenta resignação, limitando-se a segurar sua mão, de uma forma que só as mães sabem.

Assina aqui, assina ali e é só esperar pelo chamado do porteiro da salvação. Um homem calvo, de camiseta amarela, anda de um lado para o outro, sempre olhando para o celular. Transborda de ansiedade. Se não estiver esperando notícias de alguém que está do outro lado da porta, que lhe dêem uma ficha vermelha, ele é o que mais precisa de uma. O portal da salvação se abre, e surge o enfermeiro, de jaleco longo e estetoscópio passado ao redor do pescoço, numa atitude definitivamente profissional. Quem usa estetoscópio daquela forma sabe o que faz, com certeza.

O chamado do seu nome faz Zé sair do quase transe. O enfermeiro o leva a uma pequena sala de atendimento onde há aparelhos de toda sorte. Destaca-se um que emite sons estridentes e exibe os sinais vitais de ninguém, parecendo reclamar da solidão. Fica pouco tempo só, pois Zé é amarrado, tem o braço quase esmagado, prendem-lhe sensores e detectores que fazem a máquina vomitar sons, números e gráficos. As perguntas sucedem as medições. Qual é a cor do sangue dele? Haverá outra? Sangramento dá prioridade, mesmo que pouco sangue só dê ficha amarela. Qual será a vazão necessária para se conseguir uma vermelha? Na próxima vez ele trará fenolftaleína e amônia. Notarão a diferença? Sangue do diabo. Zé não é santo, mesmo. Tudo bem, a ficha amarela lhe concede um médico, só para ele, em menos de meia hora. O atendimento é perfeito, o diagnóstico não. Precisará de outro médico, um especialista, que chegará em 40 minutos. Leva menos de 30. O especialista é rápido em tudo, diagnostica, fala, prepara, anestesia, corta, remenda, receita e libera, tudo em menos de hora, com precisão cirúrgica. Zé e o especialista chegam em casa antes das 23 horas. Apesar de tudo, sentem-se extremamente aliviados.

Não perderão capítulo inédito de House.

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