3.11.09

560 - Filosofia de churrascaria

Foto: Wikipedia
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Filosofia de churrascaria

Paulo Heuser

É domingo e passa do meio-dia. Não há mesas livres, e a fila é grande. Uma multidão se amontoa na entrada, todos de copo na mão. Caipirinha ou cerveja, tanto faz, alivia a espera. Diverte, até. Distribuem a senha 1312 e chamam a 754. Mário avisa, a qüingentésima qüinquagésima oitava mesa será a deles. A família vibra. Falta pouco. Ele pede duas caipirinhas, uma para ele, outra para os outros. O garçom recusa a propina para facilitar uma mesa. Há toda uma ética por trás daquela fila. Não será subornado, muito menos por dois pilas. Essa fila é mais séria do que a dos transplantes, e há rins para todos. Com ou sem bacon.

O tempo passa, e a tarde passa atrás dele, bem como as sete caipirinhas. O sujeito com cara de magistrado chama o 754. Mário não ouve, a mulher o sacode. É o nosso! Mário foi proibido de assar em casa, desde que, num rompante de criatividade exacerbado pelo aperitivo, tentou preparar melancia no espeto. As pernas dele insistem em seguir trajetórias conflitantes, ora convergentes, ora divergentes. Acomodam-nos, os oito, numa mesa para seis, ao lado da porta que leva ao toalete masculino. Cada vez que a porta se abre, comentam, lá vem o garçom dos rins. Não é, vem o do cupim. Mario detesta cupim, ainda mais agora, que descobre que fede a mijo. Servem pastéis, bolinhos de arroz, bolinhos de aipim, croquetes e toda sorte de embuchantes. Mário recusa, ele veio para se embuchar de carne. Clama por granito e costela gorda. O netinho, na cadeira de criança, amassa croquetes semimastigados para jogá-los no pessoal da mesa ao lado, que rosna de volta.

Júnior veio sob protesto, como sempre. É vegetariano. Estuda filosofia, detesta o pai, tem horror de carnívoros e tenta estragar o almoço dos outros. Começa a eterna ladainha contra a criação de animais de corte, relata o sofrimento na hora da morte no matadouro, diz que ir à churrascaria faz parte de um terrível ritual que os remete ao primitivismo selvagem, etc, etc. Ninguém mais lhe dá atenção, já estão carecas de ouvir a mesma coisa, todos os domingos. Mário zomba dele, lambendo um pedaço de picanha sanguinolenta, imitando um animal. Júnior se cala e entorna o copo de caipirinha do pai, para descobrir foi preparado com pinga e limão, apenas.

A porta do banheiro se abre, novamente, deixando sair um sujeito com aparência de aliviado. Deixa escapar também um gás fétido que estava contido no toalete. Uma centelha inicia uma revolução, no cérebro do rapaz. Ele está estranhamento calmo e diz:

- Neste exato momento, numa dimensão paralela, espelho desta, uma família igual a nossa está sentada à mesa de um restaurante. É a nossa alter-familia. Meu alter-pai, Oiram, está zoando do meu alter-eu, Roinuj. Ele lambe alguma coisa espetada no garfo.

- O quê? Uma ahnacip? – pergunta Mário, morrendo de rir.

- Não, se aqui o restaurante reúne os que vêm ingerir carne, lá é o contrário.

Mário não entende logo, até que a porta do toalete se abre novamente.


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