12.10.09

555 - Dois palitos

Foto: Wikipedia
Dois palitos

Paulo Heuser

A solidão é cruel, e Sérvulo é a sua personificação. Não teve pais. Ou melhor, teve, mas nada sabe deles. Ele foi largado na porta dos Figueroa Brandenburgo, depressivos que, ao longo da vida, trocaram poucas palavras, todas referentes à falta de papel higiênico. - Papel! - gritavam, um ao outro. Sérvulo cresceu em meio ao silêncio mudamente pactuado. Não recebeu carinhos nem afagos, apenas o materialmente necessário à subsistência. Passou despercebido pela escola. Não foi aluno brilhante, nem foi mau aluno, foi apenas figurante. Ele não fez amigos, e, passados poucos anos, ninguém mais se lembrava daquele rapaz que aparecia no canto da foto de formatura. Como era mesmo o nome dele?

Alguns dias não são muito ruins. Porém, nas datas festivas a solidão rasga a alma. Sérvulo faz questão de sumir, antes do Natal, da Páscoa e, especialmente, do Dia das Mães. Ele sonha com a mãe que não teve. Nos sonhos, ela não tem rosto. Dos Figueroa Brandenburgo nada se lembra. Sequer guarda fotos deles. Aliás, jamais as teve. O velho foi primeiro, depois ela, ou seria o contrário? O fato é que deixaram de gritar pelo papel higiênico. O rapaz é apenas um número. Somente as máquinas sabem dele. Identidade, CPF, número de matrícula, contas e senhas, nada mais, ele é um amontoada de números e senhas. Enquanto delas se lembrar, será alguém, depois, será nada.

Chega o Dia das Crianças. Sérvulo não some. Enfrenta a data. Como que zombando da solidão, vai às ruas. No mercado, assiste à cena trivial, o casal compra mantimentos, acompanhado pelo filho. Defronte das conservadoras de congelados, a mãe abraça o marido e a criança e, apertando o pequeno contra si, oferece-lhe uma lasanha de microondas, coisa destes novos tempos. Aquela massa dos tempos da vovó, que não tinha mais nada a fazer, dá lugar à caixa de alimento congelado aquecida pelo aumento da energia cinética das moléculas de água. O magnetron despejará radiação, na freqüência de 2,45 GHz, e, voilà, o pequeno desfrutará da comida aquecida em casa, com todo carinho da mamãe. E do microondas. A cena comovente derruba Sérvulo. O casal se afasta, abraçado, levando sua prole e sua caixa de alimento congelado. Tocante. O solitário chora, pela primeira vez. A estranha sensação de abandono dá lugar à ausência de qualquer apego à vida. Ele zombará da solidão dando fim a tudo. Sem saber por que, vai ao toalete. Lá, sobre um dos mictórios, restam largados dois palitos de dente. Dois, um fazendo companhia ao outro. Nem os palitos de dente são tão solitários como ele.

Sérvulo não planeja, pois quer pegar a solidão de surpresa. Joga-se pela janela. A escuridão toma conta de tudo. Já? É tão fácil? Em meio ao breu, ouve uma voz, primeiro distante, depois mais forte:

- Número de série 1269.5301.9297/5, por favor, digite a senha.

Situação confusa esta, afinal, está morto. Ou não? Ele tenta sentar-se, mas não há onde, nem sequer há um chão. Apalpa o nada ao redor. Nada. A voz retorna.

- Número de série 1269.5301.9297/5, por favor, digite a senha.

Por fim, sem senha, não lhe resta alternativa senão voltar à vida.

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