20.9.09

548 - O gaúcho que ficou na parada

Fonte: Wikipedia

O gaúcho que ficou na parada

Paulo Heuser

É 20 de setembro. Em algum lugar do Acampamento Farroupilha, uma panela o espera. Já são quase oito horas, e o estômago do Rodrigues não se aquieta. Sonhou com o cabo-de-relho servido com café forte. E o desgranido do ônibus não vem. Ao lado, na parada, quatro jovens em roupas de hip hop comem biscoitos recheados e batatas fritas de pacote. Deus, pensa Rodrigues, isso não é comida, nem aquilo é roupa que se use no 20 de Setembro. Um fotógrafo passa pelo outro lado da 24 de Outubro. Lá, se cruzam efemérides de outras eras. A tomada de Porto Alegre, do 20 de Setembro, se enrosca com o 24 de outubro da República Nova do golpe de Vargas. Rodrigues está esquecido na parada, ironicamente, quase na esquina da Lucas de Oliveira. Ah, se ele visse aquela cena. Na verdade, viu. Rodrigues desceu a Lucas, saído do prédio onde é porteiro da noite. Os filhos do Doutor Braga fizeram farra. Os pirralhos nunca acordam tão cedo. Logo hoje, acordaram. Chamaram-no de vira-bosta, e ele nada pode fazer, pois são os guris do síndico. Como é que um guri da cidade conhece o vira-bosta? Mundo estranho, onde não se pode sair pilchado, nem no 20 de Setembro. E o desgranido do ônibus não vem.

O fotógrafo chega a armar a câmera, mas desiste. Olha a cena através do visor e perde a coragem. Fotografia exige respeito. Apiedou-se do Rodrigues, esquecido na parada, com os hip hops. O gaudério, impaciente, ensaia chula sobre lança imaginária. Os vizinhos desatam a rir. Desgramados, eram daqueles que achavam que taura era a fêmea do touro. Uma das meninas quer saber se há McDonald’s no tal do acampamento. E a música, será do MC Babão? O Minuano, mesmo amortecido pela cidade de pedra, brinca com o lenço maragato. A jovem que passa distrai momentaneamente o Rodrigues. Tudo bem que não está de chita, pois virtudes não lhe faltam. Veste top, pouco bottom e nenhum middle. Do Inglês, Rodrigues nada entende, mas mulher meio pelada é igual em qualquer língua. Ela deve estar fazendo propagando para o Galo Missioneiro, lá de Bossoroca, pois usa boné, tênis e roupas com um bigode costurado. E o desgranido do ônibus não vem.

Os hip hops ligam um som do tamanho de um baú. Dançam como índios. Se chegarem assim ao acampamento, vão botá-los para correr, no mínimo. O gaudério já teme pela paleta que mandou reservar. Se ele chegar tarde, alguém poderá ter-lhe dado de mão. Passa mais gente de tops e bottoms. Vão ao parque errado, ao Parcão. Zumbís que ficam a dar voltas e voltas em torno de si. Caminham hora e chegam ao lugar de onde saíram. Muitos também usam o bigode do Galo costurado na roupa. O Sol se levanta sobre os prédios e ameaça aquecer a camisa branca impecável. O Minuano não deixa. O desfile já começou, e o Rodrigues ali, parte de um quadro improvável. É um descalabro, como é que um gaúcho, sem cavalo nem cusco, esquecido na parada de ônibus, com um bando de hip hops, pode manter alguma dignidade? Ele já duvida que Gomes Jardim e Onofre Pires cruzaram para o lado de cá da Ponte da Azenha. Graças a Deus, o acampamento fica do lado de lá.

E o desgranido do ônibus não vem.

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