4.9.09

544 - A caixa

Foto: Wikipedia

A caixa

Paulo Heuser

São duas da manhã. Não sei como me meti nesta situação. Até sei, na verdade. Tudo começou, faz mais de mês, quando me convidaram ao bar secreto. Um bar sem letreiro, sem fachada nem telefone. Sentamos a uma mesa no centro da sala semi-iluminada. Havia um pessoal ocupando os bancos que contornavam a parede do canto. Um deles, o centro das atenções, bebia uma cerveja escura tipo stout, sem espuma, e estava agarrado ao que parecia ser o estojo de uma trompa. Ele vestia traje a rigor. O homem tinha aparência estranha, algo próxima daquela do vovô da Família Monstro. Chamava-se Spetalnick, me disseram. Foi através dele que eu descobri que haveria um concerto com Ekstsentriline Vana, virtuosíssimo pianista estoniano, no canal secreto da Tv a cabo. Eu nunca havia ouvido falar do homem, mas se Spetalnick levantava as sobrancelhas, até aquela altura, para falar nele, deveria ser o tal. O trompista avisou, com forte sotaque, que logo identifiquei como característico do polonês da Vármia-Masúria, da necessidade de se ouvir Ekstsentriline Vana através de bons fones de ouvido, para nada perder das notas mais sutis.

Não fui direto para casa, mesmo após haver descoberto como acessar o canal secreto, coisa que eu não nunca poderei revelar, pois ele deixaria de ser secreto. Passei numa loja de equipamentos eletrônicos para comprar novos fones de ouvido. O cachorro havia mastigado os meus. Ele aprecia muito aquela espuma que reveste os alto-falantes. Não gosto desses fones modernos, que se introduzem nos canais auditivos. Prefiro os clássicos, volumosos como as virtudes da Lizzie Miller. Logo encontrei o que procurava, com fio de 6 m de comprimento, formato Lizzie e controle de volume. Corri para casa, pensando em arrumar um spray com cheiro de pet shop, para manter o cachorro longe dos fones, pois banho é a única coisa que ele teme.

Caixa bacana aquela dos fones. Muito melhor do que as embalagens plásticas impossíveis de se abrir. Comecei a abri-la com cuidado, para não rasgar o papel. Levantei a tampa e retirei os fones, que vieram encaixados numa estrutura de papelão vermelho. Como descrevê-la? Difícil. Percebi logo que deveria desdobrá-la, pois era feita de apenas uma folha de papelão dobrada e encaixada, sucessivas vezes, através de pequenos recortes. Aquele negócio era um origami digno do mestre japonês Gefaltete Pappe. Eu não poderia destruí-lo. Como é que uma mente humana conseguira conceber tal obra prima da dobradura? Quando parecia que os fones estariam finalmente liberados, novas dobras prendiam os fios e me desafiavam. Não sei que horas eram quando finalmente consegui libertar os fones. Sei apenas que eu deveria ter jogado a caixa fora. Contudo, não resisti à tentação de guardá-la. Para tanto, tive que dobrar e encaixar novamente aquele origami de papelão vermelho. Se desdobrar foi difícil, dobrar pareceu impossível.

Vou dormir. Perdi a apresentação de Ekstsentriline Vana, que deve ter ocorrido há três horas. Só resta um problema. Não sei onde larguei os novos fones. Tampouco acho o cachorro.

Marcadores: , , , , ,