3.7.09

535 - O homem que morreu esperando

René Descartes - Frans Hals
Fonte: Wikipedia
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O homem que morreu esperando

Paulo Heuser


Houve quem queimou muita pestana tentando provar sua própria existência. René Descartes (1596-1650), em Discours de la Méthode (1623), escreveu: Puisque je doute, je pense; puisque je pense, j'existe. Através do seu ceticismo metodológico, ele provou sua existência. Já que duvido, penso; já que penso, existo. Essa frase fez uma enorme diferença em várias ciências, como na Filosofia e na Matemática.

Argenor, primo do meu amigo Zé, não ficou famoso como Descartes, nem foi enterrado na Igreja de St. Germain-des-Près, em Paris. Foi um homem bom, nada havendo que o desabone. Acabou enterrado numa daquelas intermináveis carreiras de gavetas de um daqueles cemitérios subindo o morro. Descartes deveria ter sido levado ao Pantheon de Paris. Ficou no morro da Santa Genoveva. Argenor ficou no Partenon, o bairro.

O que os une? Nada, aparentemente, além do fato de ambos terem morrido. Contudo, Descartes escolheu uma frase do ressabiado poeta Ovídio, para a lápide do seu túmulo: Bene qui latuit, bene vixit. Descartes já havia percebido que vive bem quem bem se esconde. Assinar determinados textos poderia trazer muitos dissabores, principalmente quando eles afrontavam dogmas do clero e da realeza.

Pois o Argenor foi um mestre da dissimulação, ainda mais que nada criou e nada escreveu. Ele esperou, apenas. Passou a vida a esperar. Só não esperou mais porque morreu. Ele esperou pela maioridade para começar a trabalhar. Trabalhou para esperar a aposentadoria e aposentou-se para esperar a morte. Seus últimos dias não foram diferentes, acordava para esperar pela hora de dormir e dormia para esperar pela hora de acordar. O homem notabilizou-se pela espera de uma oportunidade para bem viver. Aprendeu, desde pequeno, que aqueles que foram bons durante a vida alcançariam o Paraíso, após sua morte. Lá, deixariam de esperar, presumivelmente. Certa feita, lá pelo fim, veio-lhe pavorosa dúvida. E se a próxima etapa, no Paraíso, não fosse a última? Na dúvida, Argenor não esperou pela resposta. Morreu, mesmo.

Tentaram contatar o Argenor e chegaram a convocar a Rosalina, da casa de umbanda São Jorge Guerreiro, lá das bandas do Alegrete, porém, ele não respondeu. Não se sabe se ele ainda espera ou se já deixou de esperar. Tampouco sabem se, do outro lado, há algo pelo que esperar. Esse negócio de eternidade é complicado. Lá, Argenor esperaria pelo quê?

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