25.6.09

532 - O enigma da Grande Padronização



Fonte: Wikipedia
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O enigma da Grande Padronização

Paulo Heuser


De que Irina era diferente, todos desconfiavam. Ela cresceu numa terra perdida em meio àquilo que chamavam de Rio Grande do Sul, antes da Grande Padronização. No seu registro de nascimento constava a localização, latitude 27⁰59’20’’ S, longitude 54⁰50’22’’ W. Apesar de haver um hospital na localidade, Irina, sua mãe Taís, sua avó Larissa e todas suas ancestrais nasceram em casa, com o auxílio da decana das senhoras da Antiga Ordem Ortodoxa, seita proscrita pela Grande Padronização. Contavam, à boca miúda, que essas senhoras saíam de lá extremamente abaladas e juravam nada revelar sobre o que haviam presenciado. Irina também não foi à Escola Padrão. Não foi a lugar nenhum, na verdade. Passou seus 19 anos de vida restrita aos 20 hectares da propriedade, exatamente como fizeram suas ascendentes. As mulheres da família de Irina nasciam, viviam e morriam entre aquelas cercas. Mesmo seus vizinhos nada delas sabiam. Elas se limitavam às lides campeiras, cobertas por mantos marrons, com capuzes. Tampouco freqüentavam o Templo do Rito Padrão. Os ministros da igreja pareciam ignorá-las. Quando alguém tocava no assunto, eles se limitavam a levar o dedo indicador aos lábios, conclamando o silêncio.

O povo sabia ser maldoso. Chamavam-nas de bruxas. De que outra forma conseguiriam maridos, andando cobertas daquele jeito? Diziam que elas enfeitiçavam os homens que viam seus rostos. Os que lá porventura entravam, seja lá para o que fosse, casavam, como aconteceu com o pai e com o avô de Irina. Depois, eles somente saíam da propriedade sozinhos, nunca acompanhados pelas mulheres, e sempre voltavam. Assim também foi com Ivan, que entrou na propriedade para buscar um bezerro fujão e topou com a jovem Irina. Apesar de ela estar coberta pelo manto com capuz, Ivan olhou nos seus olhos e caiu de joelhos, enfeitiçado, como diziam. Ele voltou para casa apenas para devolver o bezerro. Trocou de família, definitivamente. Seu casamento, realizado na propriedade dos pais de Irina, contou somente com a presença da família da noiva.
O mistério perdurava por gerações. O que levava as mulheres daquela família a cobrirem-se daquela forma? Por que elas nunca deixavam a propriedade?

A notícia correu de boca em boca, como fogo na palha seca. Aconteceu novamente, uma das bruxas daria à luz, e nasceria outra bruxa. O enigma seria renovado. O ministro do Templo do Rito Padrão recebeu a visita do jovem Ivan, que lhe trouxe a boa nova. A decana da Antiga Ordem Ortodoxa foi avisada de que, em breve, seus serviços seriam requisitados, conforme mandava a tradição. Na noite tempestuosa, em que Irina entrou em trabalho de parto, aconteceu o impensável. A decana da Ordem morreu, sem alarde nem anúncio. Uma noviça foi acordá-la, para acudir Irina, e a encontrou dormindo o sono eterno. Quebrada a tradição, a noviça resolveu, ela mesma, assistir o parto da estranha e misteriosa Irina. Não acordaria a nova decana, que dormia o sono dos justos. Como noviça, porém, ela não estava preparada, pois não conhecia o grande segredo, compartilhado apenas pelo ministro do Templo e pela recém-falecida decana da Ordem. Mesmo assim, ela foi, sob uma chuva intensa que brilhava como prata, à luz dos relâmpagos. Ela estava preparada para assistir um parto, mas não estava preparada para aquilo.
As senhoras da Antiga Ordem Ortodoxa acordaram sobressaltadas, em meio à noite de temporal. Acompanhada do ribombar dos trovões, a noviça retornou completamente histérica. Sua face mostrava uma expressão de profundo pavor. Pudera, quem poderia esperar por aquilo, após tantas gerações, desde a Grande Padronização? Ela pôs-se a gritar:

- Ela tem cabelos loiros e olhos azuis!

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