21.5.09

523 - O Anticristo

Foto: Wikipedia
Friedrich Nietzsche - 1882
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O Anticristo

Paulo Heuser

Quem já não foi injustiçado? Humilhado, até? Lembro-me de pelo menos dois eventos, e se me lembro deles, é porque provocaram estragos. No meu ego, bem entendido. Ambos ocorreram lá pelo segundo ano do Científico, então Ensino Médio.

Eu havia escrito algumas redações que foram bem recebidas pelo professor de Português, do ano anterior, que me incentivava a continuar escrevendo. Acabei tomando gosto pela coisa, e, como direi, tentei alçar vôos maiores. Nunca fui bom aluno de Português. Muito menos de Literatura. Naquela época eu achava que Camões deveria ter morrido afogado, abraçado aos Lusíadas com seu braço restante. O vestibular me fez continuar a pensar da mesma forma. Porém, eu gostava de escrever aquelas redações, até que trocamos de professor de Português, e entrou outro, cujo pensamento era, digamos assim, menos elástico. Era um professor que combinava com os tempos da Revolução. Só não foi general porque não foi militar. O homem não acreditava muito no processo dialético e fulminou sumariamente minha redação sobre religião. Pior, o fez em público, criando adjetivos dos quais me recordo até hoje. Não houve como não guardar mágoa, por muitos anos, uns quatrocentos, pelo menos. Permaneci sem escrever por uns trinta e tantos anos.

Nessa época, ocorreu outro evento. O pessoal costumava sair dos bailes e tomar banho de piscina, em plena madrugada. Pelados. Pulavam a cerca do Tênis Clube Santa Cruz e tomavam banho de lua. O ecônomo do bar da piscina era agente duplo. Vendia cerveja aos pelados madrugadores e, por outro lado, entregava seus nomes à diretoria. Meu nome entrou numa dessas listas, apesar de não haver estado lá. Fui suspenso do clube, por um verão, injustamente. Não houve argumento que convencesse o presidente. Era verão de 1972, e ficar sem piscina era algo semelhante a morrer, lentamente, por três meses. Novamente, me senti humilhado e injustiçado. Eu não carregava nas costas aquela culpa. Então, descobri que Deus castiga, mas não mata. O ecônomo traíra caiu da Lambreta e quebrou a perna.

Lembrei-me dessas coisas ao ver uma foto amplamente divulgada nos jornais desta semana. Ilustrava uma matéria sobre a prisão de um grupo de neonazistas. Lá estavam os objetos apreendidos pela polícia. Entre suásticas e camisetas temáticas, aparecia um livro, bem no centro da foto. Era o Anticristo de Friedrich Nietzsche, livro difícil de ser lido, mas nada nazista. Poderia ser queimado pelos cristãos em geral, por outros motivos, não por apologia ao nazismo, ainda mais que foi escrito em 1888. Outra obra de Nietzsche, Assim Falou Zaratustra - Also sprach Zarathustra -, de 1885, virou uma espécie de livro de bolso dos soldados alemães, durante a Segunda Guerra Mundial, graças à ação interesseira de Elizabeth Vöster, irmã do filósofo, que adaptou alguns dos seus escritos aos interesses dos nazistas.

Nietzsche também escreveu uma redação que não foi bem recebida pelo seu novo professor de Alemão, ortodoxamente religioso, e também não tomou banho de piscina pelado durante a madrugada. Suspeito que foi suspenso da piscina pelo resto da sua vida, sem sequer ter entrado em alguma. Continuei escrevendo. Ele parou.

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