6.5.09

518 - Um ensaio sobre a solidão

Foto: Paulo Heuser
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Um ensaio sobre a solidão

Paulo Heuser


O excesso de automação me incomoda. Máquinas são boas para dispensar dinheiro, e pronto. Já passei pela ridícula situação de ficar trancado em um estacionamento, num domingo de manhã, porque o leitor da cancela da saída não reconhecia o bilhete autenticado pelo caixa automático. Após alguns minutos tentando passar o bilhete, saí do carro e procurei algum meio de comunicação com o controlador do estacionamento, que provavelmente dormia em alguma sala secreta.

Nada de botões. Nenhum guichê ou escritório à vista. Apenas concreto, cancela e uma câmera. Ela estava fixada no teto, lançando um duvidoso olhar sobre as redondezas. Haveria outra máquina atrás daquela? Esperei por alguns minutos. Nada aconteceu, ninguém entrou, ninguém saiu. Silêncio absoluto.

Voltei ao caixa automático onde paguei o estacionamento. Tampouco havia qualquer dispositivo aparente para comunicação. Apenas fendas para inserção de bilhetes, moedas e cédulas. O solitário visor só mostrava zeros. Ali, nada de câmera. Resignado, voltei ao carro. Do rádio, apenas chiado. Compreensível, pois eu estava em um estacionamento subterrâneo. Buzinei. Apenas o eco ribombando nas paredes de concreto. A Terceira Guerra iniciara e só eu não sabia? Saí do carro novamente e comecei a dançar perante a câmera. Nada. Cantei e sapateei. Nada. Fingi tirar tatu do nariz e esfregar na lente dela. Nada. Então, apelei e ameacei fazer pipi na cancela. O silêncio opressor fez-se mais presente. Eu estava miseravelmente sozinho, não restava a menor sombra de dúvida. Não chegou a representar consolo, mas lembrei que alguém passaria por lá, no dia seguinte, para buscar o dinheiro.

Não sei quanto tempo se passou. Alguma pequena eternidade, como a espera pela consulta das 18h30 do pediatra. Os pediatras não atendem consultas. Eles administram sucessões de calamidades. De qualquer forma, demorou. A idéia brotou aos poucos. Não percebi de imediato a extensão da coisa. Porém, sentado ali sozinho, deixando o pensamento divagar ao sabor da ausência de correnteza, somei alhos e bugalhos e cheguei a alguma coisa.

Revirei o lixo do console do carro e encontrei uma colherinha de sorvete de madeira. Meu canivete suíço-paraguaio estava no porta-luvas. Comecei a desbastar a colher até lhe dar a forma de um palito. Guardei novamente o canivete no porta-luvas, parei defronte à câmera e palitei acintosamente os dentes. O mundo veio abaixo. Soou uma sirene que deveria pertencer às trombetas do apocalipse. Do nada apareceu um sujeito que gritava impropérios e gesticulava ameaçadoramente.

Finalmente, consegui sair daquele misto de bunker e estacionamento. O vento da primavera trouxe a fragrância suave da lavanda. Por que não pensei antes no palito? Afinal, eu estava na França.

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