13.5.09

519 - Os rins da sogra


Foto: Wikipedia
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Os rins da sogra

Paulo Heuser


Ontem tomei um taxi para voltar a casa. Passava das oito da noite, e o Centro já deixara de ser local freqüentável. Por sorte, ou não, logo consegui achar um carro no ponto da esquina. Um homem grisalho, na casa dos sessenta, tripulava um velho Fiat Uno cujas portas não fechavam sem grande esforço. O assento do passageiro pendia para a direita, porém, fazer o quê? Não havia outro. O Uno combinava com o motorista, que curiosamente cruzava nos sinais vermelhos e parava nos verdes. Concluí logo que o homem era daltônico e achei mais seguro encerrar a corrida na Júlio de Castilhos. Eu lhe disse que me esquecera do alpiste para o cachorro e pedi que parasse por ali mesmo. Nada, o homem seguiu firme, como se nada ouvisse. Era daltônico e surdo?

Agarrado àquele dispositivo, que leva aquele nome peculiar, segui pensando no que fazer. Pular fora no sinal verde? Resolvi testar novamente a audição do homem quando cruzávamos pelo muito baixo Morro Ricaldone. Paramos novamente no sinal verde. Comentei que as moças, que não eram exatamente moças, faziam ponto por lá. O cinesíforo acordou do aparente transe e deu um grito:

- Nem fale!

O que eu fiz? Antes de poder pensar numa resposta, ele continuou:

- Até domingo, eu tinha uma namorada de vinte e poucos anos. Comprei um Celta zero, completo, para fazer-lhe uma surpresa. Pus rodas de liga leve, assento de couro, som e película nos vidros. Foi para lá de 30 mil.

Até então, achei melhor responder com apenas um Ãhm. Fiz bem, pois minhas piores suspeitas logo se confirmaram.

- Quando cheguei à casa dela, para lhe entregar o carro, encontrei-a com um namoradinho. Ele fugiu correndo. Ainda bem, pois eu estava com minha 7.65 no painel. Não sei o que teria feito.

Nessas alturas já havia clima para uma tragédia de Nelson Rodrigues, e eu estava no meio dela. Achei melhor usar um ãhm minúsculo dessa vez. E segui a bordo do Uno torto conduzido por um corno que se endividou para fazer um agrado à bonitinha, mas ordinária. A essas alturas eu já não tive mais coragem para mandá-lo, ou melhor, lhe implorar que parasse. Depois que a avalanche inicia, o melhor mesmo é tomar assento e admirar a paisagem. Houve um momento de constrangedor silêncio, porém, ele continuou:

- Pus o carro no nome dela. Será que é fácil tirá-lo?

Usei um ãhmpf, tendo o cuidado de parecer positivo. Corno e trouxa, pensei. Se lhe dissesse que não, sabe-se lá o que faria. Talvez a 7.65 ainda estivesse por lá. A Floresta já ficava para trás quando fomos aos rins da sogra.

- Sou macumbeiro e estou fazendo a mãe dela sofrer. Não costumo fazer trabalho do mal, mas abri uma exceção. Eu estava fazendo um trabalho para curar os rins da velha que se contorcia de dor. Ela já estava quase boa. Parei, no domingo, e comecei um trabalho do mal para cima dela. Ontem ela já morria de dor. Foi tudo culpa da velha. Ela não queria que a menina namorasse comigo, só porque sou um pouco mais velho. Agora, as duas vão sofrer. Vão me pagar.

Não ousei pedir o troco, quando chegamos ao meu destino. Levei uns bons dois minutos para desembarcar do Uno torto, pois o homem terminava de me explicar o suplício da sogra. Cheguei vivo. Contudo, não dormi muito bem. Comecei a sentir uma dor incômoda no rim direito.


N. do A.: Os personagens desta história não são necessariamente verdadeiros, e qualquer semelhança com fatos e pessoas pode ser mera coincidência, para o bem dos meus rins.

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