15.5.09

520 - Um dia de chuva

Foto: National Astronomy and Ionosphere Center
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Um dia de chuva

Paulo Heuser


Dia terrível para se andar pela rua. Chove a cântaros. A Praça da Alfândega se transforma numa porção de água pontilhada por minúsculas ilhas, como diria a Dona Não-lembro-quem, do Segundo Primário. Centenas de pessoas pulam sobre as poças, sempre errando as pequenas ilhas. Porto Alegre também tem sua Praça de São Marcos. As mulheres tentam equilibrar-se sobre saltos agulha que rasgam fantasias masculinas e se entalam entre as pedras. No prolongamento da Capitão Montanha chove em dobro. Além da chuva que cai do céu, há chuva escorrida das folhas dos jacarandás. O vento não ajuda, lá parece chover até de baixo.

A chuva aquieta a praça. Vão-se camelôs, prostitutas, fedor de maconha e jogadores do Alphandega’s Cassino, que jogam dominó a dinheiro nos tabuleiros de damas. Restam apenas bancários, banqueiros, financeiros, financistas, clientes e vendedores de guarda-chuvas, todos tentando desviar das poças lacustres. Os pregadores do miolo da praça também desaparecem. Em dia desses não há pecado nem remissão, há trégua na guerra entre o bem e o mal.

Os bancos normalmente ocupados pelos que fecham cigarros verde-amarelos, na espera de vaza no jogo, estão vazios, com exceção do último, junto à carta de Vargas. Nele senta-se um vulto ereto como interno de colégio de padre na mesa do jantar, espaldar e costas em perfeito casamento. Chove sobre ele, como chove sobre tudo. Veste trapos molhados que já não protegem contra a água. Ele apenas fita o vazio encharcado à frente. Ao seu lado, sobre o banco, seus pertences, uma confusão de pratos descartáveis, papéis e restos de comida que parecem saídos de um despacho vilipendiado. Chove sobre tudo, e ele está alheio aos passantes que pulam sobre poças. Quem está por trás daqueles trapos é tão miserável que nem cachorro tem. Miserável sem cachorro é o cúmulo da miséria, é cego de realejo sem macaco e afiador de facas sem flauta, uno de um duo indissociável.

Praça não tem marquise. As pombas abandonam os passeios e vão espalhar sua caca pelas beiras dos prédios vizinhos. Na ponta do banco destaca-se um objeto curioso. Lá está, apontando para as nuvens e jacarandás, uma antena de UHF de TV, dessas que tem um refletor parabolóide no centro. Subitamente, tudo se esclarece. Ele aguarda a ligação para casa.

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