18.6.09

529 - Mens insana in corpore insano


O patriarca de uma FOBC
Senador da República José Sarney
Foto: Wikipedia
Mens insana in corpore insano

Paulo Heuser


O Mata-Bancário soprava na Caldas Júnior. Vinha lá do rio, pulava sobre o muro da Mauá e deixava seu rastro de gelo. Não vinha sozinho, trazia a chuva gelada. A moça que vende jornais na esquina da Siqueira Campos vestia traje de astronauta. Quem sobe a Serra atrás do frio deveria experimentar a sensação térmica daquela esquina. É de graça, porém, bem pior. E fica aqui, coisa nossa, porto-alegrense. Em vez de tomar chocolate quente, pode tentar o ensopado de vísceras do Jacó, com ovo picado, salsinha e pimenta medonha. Aquece a alma e algo mais. Deveriam trazer turistas do nordeste para conhecê-la, pois esquina como aquela, não há, pelo menos neste país. Pode haver lá em Vyngaïakhinsk, na Sibéria Ocidental. Contudo, lá não há dobradinha do Jacó, só sopa de repolho.

Pois, em meio a esse cenário de desolação térmica havia uma caixa de papelão, deixada ao lado da entrada do prédio. Por entre as tampas semicerradas via-se um improvável par de olhos, pertencentes ao menino maltrapilho que se escondia no interior da caixa. Choque! Ninguém espera por aquilo. Situação terrível. Mas, os calejados alfandegários de carreira sabem das coisas. Mendigo nenhum, em sã ou insana consciência, vai morar dentro de uma caixa de papelão, em plena Caldas Júnior, num dia de Mata-Bancário. É suicido, são ou insano, e reforça o apelo à piedade. Quem não está habituado a esses artifícios mercadológicos, digamos assim, dá em dobro. E, talvez, se põe a pensar no que levou aquele menino a chegar àquela situação. A resposta está escancarada, só não a vê quem não quer. Faltou-lhe uma família bem composta. As famílias bem compostas não deixam seus membros à mercê das intempéries.

Uma estrutura familiar bem composta logo coloca suas crianças num dos inúmeros programas sociais mantidos pela sociedade incivilizada, como o PPN – Programa do Pequeno Nepotista -, o PMP – Programa do Menor Parente - ou o PNC – Pequeno Nepotista Cruzado. À medida que crescem, outros programas sociais os esperam. Há de se destacar o programa MPE – Meu Primeiro Estado. Todos esses programas fazem parte de um pacote chamado FOBC – Família Oligárquica Bem Composta -, uma das raras unanimidades nacionais, mantido e operado pelos mais variados matizes ideológicos, que, apesar de mantidos por ela, navegam à margem da sociedade civil.

O pobre menino navega na sua bizarra nau de papelão, nos gélidos ventos da Caldas Júnior. Um par de olhos esbugalhados à procura de um porto que não encontrará, pois nasceu aqui, não nasceu lá.

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9.6.09

527 - Delírios da realidade

Teorema de Bruno Giorgi
Foto: Wikipedia
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Delírios da realidade

Paulo Heuser


Outra lá da Praça da Alfândega. Numero Um, primeira mulher do Nestor, teve de sair de baixo do Teorema, obra de arte de Bruno Giorgi. Culpa de quem levou a escultura, desde a João Manuel até a Capitão Montanha. O Teorema ficou sem marquise. Assim, quando chove, ela tem de morar nas escadas do banco. Ela passa o dia falando com alguém supostamente imaginário através de um telefone certamente imaginário, enquanto Nestor exerce sua atividade de mendigo titular da praça. Hoje ela gritava com o aparelho, talvez para compensar alguma queda de qualidade do sinal devida à chuva.

- Eu te falei, mulher! Desci a Pinto Bandeira e rasguei a bacia. O cara disse que a mãe dele joga um bolão lá no poste da Bento Martins. As duas freiras calcularam o prejuízo e alguém terá que pagar. Vou mandar a conta para a faxineira da creche. O bule perdeu o nariz quando os homens subiram pela parede da piscina...

Não dava nem pausa para respirar. Ela conseguia falar expirando e inspirando. O pessoal que anda por lá já está acostumado com os bate-papos da Número Um. Já nem ouvem mais. Porém, para os principiantes, causa espanto. Principalmente pela ótima dicção. Indiferente aos passantes, ela mandava ver:

- A base de sustentação do feijão preto é a mola mestra da hipocondria armênia de grandes altitudes. Os hunos do Mercado Público vendem roçadeiras fabulísticas levadas a cabresto...

Dos passantes, um se deteve por mais tempo. Lembrava o Sr. Pickwick, de Charles Dickens. Ele ficou a ouvir a verborréia da figura rota que se encolhia de frio.

- A hipótese do homem solteiro abriga os dolmens especulativos da hiperventilação tubária. Melhor assim, pois as patas traseiras não sofrerão descargas atmosféricas acessórias. Ipso facto, ficamos acocorados...

O Sr. Pickwick parecia maravilhado, pois tomava notas num pequeno caderno marrom. Número Um, por sua vez, encolhia-se cada vez mais. A chuva dera lugar ao frio, e seu velho abrigo adidas não vencia mais olimpíadas. Ele demorou-se demais, ao lado dela, chamando-lhe a atenção.

- Eu te falei, mulher! Botaram um cara a me espionar. Grampearam meu telefone. Vou ter de falar em código. O que é que você está olhando? Também vai me chamar de louca?

Pickwick falou, pela primeira vez.

- Olhando ao redor, concluo que você é a única certa. Nós é que estamos loucos.

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15.5.09

520 - Um dia de chuva

Foto: National Astronomy and Ionosphere Center
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Um dia de chuva

Paulo Heuser


Dia terrível para se andar pela rua. Chove a cântaros. A Praça da Alfândega se transforma numa porção de água pontilhada por minúsculas ilhas, como diria a Dona Não-lembro-quem, do Segundo Primário. Centenas de pessoas pulam sobre as poças, sempre errando as pequenas ilhas. Porto Alegre também tem sua Praça de São Marcos. As mulheres tentam equilibrar-se sobre saltos agulha que rasgam fantasias masculinas e se entalam entre as pedras. No prolongamento da Capitão Montanha chove em dobro. Além da chuva que cai do céu, há chuva escorrida das folhas dos jacarandás. O vento não ajuda, lá parece chover até de baixo.

A chuva aquieta a praça. Vão-se camelôs, prostitutas, fedor de maconha e jogadores do Alphandega’s Cassino, que jogam dominó a dinheiro nos tabuleiros de damas. Restam apenas bancários, banqueiros, financeiros, financistas, clientes e vendedores de guarda-chuvas, todos tentando desviar das poças lacustres. Os pregadores do miolo da praça também desaparecem. Em dia desses não há pecado nem remissão, há trégua na guerra entre o bem e o mal.

Os bancos normalmente ocupados pelos que fecham cigarros verde-amarelos, na espera de vaza no jogo, estão vazios, com exceção do último, junto à carta de Vargas. Nele senta-se um vulto ereto como interno de colégio de padre na mesa do jantar, espaldar e costas em perfeito casamento. Chove sobre ele, como chove sobre tudo. Veste trapos molhados que já não protegem contra a água. Ele apenas fita o vazio encharcado à frente. Ao seu lado, sobre o banco, seus pertences, uma confusão de pratos descartáveis, papéis e restos de comida que parecem saídos de um despacho vilipendiado. Chove sobre tudo, e ele está alheio aos passantes que pulam sobre poças. Quem está por trás daqueles trapos é tão miserável que nem cachorro tem. Miserável sem cachorro é o cúmulo da miséria, é cego de realejo sem macaco e afiador de facas sem flauta, uno de um duo indissociável.

Praça não tem marquise. As pombas abandonam os passeios e vão espalhar sua caca pelas beiras dos prédios vizinhos. Na ponta do banco destaca-se um objeto curioso. Lá está, apontando para as nuvens e jacarandás, uma antena de UHF de TV, dessas que tem um refletor parabolóide no centro. Subitamente, tudo se esclarece. Ele aguarda a ligação para casa.

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28.4.09

516: Gripe suína e oportunidade


Foto:Wikipedia
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Gripe suína e oportunidade

Paulo Heuser


O Zé sabe que a gripe suína é coisa séria. Ele leu a respeito da gripe espanhola, no almanaque do Xarope Retrobronquil, e logo traçou um paralelo. Só no Brasil a gripe espanhola matou 130 mil pessoas, inclusive o Presidente da República Rodrigues Alves, em 1919. Algo nessa história despertou o empreendedor que estava adormecido dentro do Zé. Ele não sabia que era um empreendedor até fazer um curso de recolocação de desempregados ministrado por uma ONG de um daqueles setores indefinidos.

A gripe espanhola ocorreu ao término da Primeira Guerra Mundial, quando houve grande movimentação de pessoas entre países. Zé logo percebeu que a gripe suína tem capacidade de proliferação muito maior, pois há incontáveis congressos para parlamentares em Cancun. Esta capacidade de proliferação fez com que ele pensasse em uma forma rápida de empreender, já que os seus potenciais clientes não durariam muito. E o relâmpago empreendedor se abateu sobre ele.

Zé já percebeu que o povo acredita piamente no jornal entre novelas da TV. No dia anterior, o locutor havia tranqüilizado os telespectadores, ao afirmar que não havia motivo para pânico. No máximo, para extremo pavor. Mesmo que na Índia aquele pessoal que se veste com cortinas e passa o dia dançando não sabe o que é gripe suína, o povão daqui já sentiu o perigo. O edil vai ao congresso em Cancun e volta com a pereba. Então, a coisa se espalha rápido. O empreendedor escondido no interior do Zé escancarou e teve a idéia de lançar um remédio alternativo contra a nova praga. Dessas coisas naturebas. Havia de ser algo forte, impactante. Além de indianos vestidos em cortinas, o povo gosta de chás amargos, quanto mais amargos, melhor. Ele rebuscou as mais pavorosas recordações, nos porões da infância. Logo lhe veio à memória o digestivo à base de carqueja e pau-pereira que seu avô tomava. Coisa tão amarga que enrugava as tonsilas – então amígdalas. O Zé odiava adoecer. Não porque tinha de ficar em casa. Porque havia de tomar o chá do vovô, que era secretamente misturado à cachaça da renomada marca Juízo Final, vendida após o entardecer naqueles corredores obscuros da Praça da Alfândega. Aquela mistura era medonha por si só, mas ele procurava por algo ainda pior.

Quem teve infância, e freqüentou bares e armazéns das colônias alemãs, tem pesadelos com uma coisa chamada rollmop. Palavrinha fácil, rollmop. O que é um rollmop? O Zé sabe. É difícil descrevê-lo, mas se parece com aquelas cobras e outras coisas nojentas, dentro de vidros de formol, que os colégios chamavam de museu de história natural. Para iniciar um museu desses, bastava um vidro de rollmops. O verdadeiro rollmop escandinavo era feito com arenque. O daqui, mais moderno, é feito com ovo cozido e qualquer peixe repugnante que sobrou da Sexta-Feira da Paixão. A técnica é simples, enrola-se o meio peixe cru no ovo cozido, prendendo-o com um palito, e mergulha-se tudo num líquido turvo de composição indefinida. Uns põem vinagre, outros pinga, outros nem sabem. O resultado é realmente repugnante. E, o que é pior, há quem coma aquilo e goste. Zé sempre teve pesadelos com o bodegueiro abrindo aquele vidro e retirando um rollmop para o vovô. O ruído da tampa de rosca parecia-se com aqueles da abertura de tumbas ou naves espaciais de filmes B antigos. Remexendo seus traumas de infância, Zé produziu um elixir de efeito, à base do chá de carqueja e pau-pereira, pinga Juízo Final, rollmops em conserva e arroz de leite. A quem lhe pergunta, ele responde que o segredo todo está no líquido turvo onde ficam mergulhados os rollmops. Coisa tão feia e tão ruim há de ser boa.

Zé investiu na imagem. Pôs um sujeito com cara de asteca para vender o elixir, em plena praça. Ele acertou. Vende a rodo. Se cura a gripe suína, ninguém sabe. Mas, quem dele provou, descobriu o que é a verdadeira vingança de Moctezuma.

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5.11.08

486 - O lado B da Feira do Livro - 2a. Parte


Foto: Wikipedia
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O lado B da Feira do Livro – 2ª Parte

Por Paulo Heuser

Já que houve uma primeira parte deste texto, me sinto obrigado a escrever uma segunda. Do contrário, imitaria Mel Brooks, que criou A História do Mundo – Parte I (1981), sem produzir jamais uma parte dois, apesar de haver um trailer desta incorporado àquela. Durante muito tempo perguntaram-lhe da continuação. Mel Brooks sempre negou que produziria uma seqüência da parte que cobriu o período compreendido entre a pré-história e a Revolução Francesa.

A Feira do Livro de Porto Alegre transforma profundamente a Praça da Alfândega, em Porto Alegre, local onde se realiza desde 1955, quando foi inaugurada com 14 barracas. A Feira encontra-se na sua 54ª edição. Acompanhei as últimas 33 edições, mesmo que como apenas observador. Ocorre que sou - de certa forma - vizinho da Feira, pois trabalho ao lado dela. Como passo pelo menos três vezes ao dia por lá, posso acompanhar a transformação da Praça da Alfândega em Feira do Livro.

Honestamente, não me recordo das primeiras edições da Feira, pois era composta daquelas poucas barracas que não modificavam a vida de quase ninguém. Um dia elas apareciam, noutro sumiam. Nas últimas duas décadas, porém, a feira cresceu assustadoramente, modificando ou expulsando tudo o que há por lá. As carrocinhas de pipocas deram lugar à praça de alimentação, e a imprensa montou estúdios que transmitem ao vivo. As sessões de autógrafos sucedem-se pela tarde e pela noite.

Sou daqueles que assistem ao lado B da Feira. Ele inicia já algumas semanas antes do evento, quando os vendedores de artesanato guadério-jamaicano são removidos do centro da Praça da Alfândega para a periferia. Então, inicia-se a obra. As antigas barracas que ficavam ao sabor do humor do nosso clima de primavera cederam lugar à cidade literária coberta por metal e plástico. Houve motivo para tanto. O mata-bancário – vento encanado do Guaíba que atravessa a praça – sopra mais quente na primavera. Porém, sopra com uma intensidade que chega a dar saudades do inverno. Tipicamente, ocorrem pequenos tornados, furações, aluviões e monções. O sistema climático representado pela Praça da Alfândega desafia os engenheiros e especialistas em aerodinâmica das construções. Já não se vêem as cenas de grande destruição do passado, mas que o pessoal fica apreensivo quando esquenta muito, ah, isso fica.

Os personagens que povoam a Alfândega também somem com a chegada da Feira. O Nestor sumiu. Logo ele, que vive da mendicância alfandegária. Mais gente, mais esmolas, esse seria o raciocínio lógico. Contudo, Nestor não agüentou o barulho que tomou conta do seu lar. Serras, martelos e máquinas de solda encobriram o canto dos sabiás. Na sua última aparição, foi entrevistado pela jovem jornalista à cata de alguma coisa para preencher a lacuna entre o Caso Nardone e o Caso Eloá. Questionado sobre o livro que escolheria, Nestor respondeu de pronto: o Aurélio. A jovem jornalista ficou encantada com o amor que o Nestor demonstrava pela Língua Portuguesa. Ele interveio - também de pronto - esclarecendo que preferia o Aurélio porque ele teria mais páginas para servirem de combustível nas noites mais frias. Enfiaram o Obama no Vacatio criminis da telinha.

Os índios apaches que cantam canções sul-americanas foram transferidos para a volta do Mercado. Dos pregadores, nada sei. Sei da preferência literária dos adolescentes e crianças, despejados diariamente pelo sem número de ônibus que atracam na Siqueira Campos, para o desespero dos demais motoristas. Excitada, a gurizada pergunta ao tio: - onde fica o McDonald’s?

As prostitutas da Praça chamaram reforços. Uma morena de profissão certa e idade incerta comentava com sua companheira de labuta: - Credo, aquele homem não me desceu! Estou arrotando até agora! – Coisas do lado B da Feira do Livro.


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13.9.08

461 - Sangue! Olha o sangue!


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Sangue! Olha o sangue!

Por Paulo Heuser


A Lei Seca resiste, apesar de todas tentativas para descaracterizá-la. Os benefícios já se fazem presentes, basta que se fale com os profissionais da saúde que trabalham nas emergências hospitalares. Fala-se muito da ausência de fiscalização, que só seria efetuada nos casos envolvendo acidentes ou quando algum motorista apresenta sinais evidentes de embriaguez, como quando dirige em ziguezague. Enquanto juízes discutem a constitucionalidade da lei, torna-se cada vez mais claro que ela é necessária. É uma lei boa para a saúde, ruim para os negócios dos bares e restaurantes. Mesmo o Nestor, expoente máximo da mendicância alfandegária – ele reside e labuta na Praça da Alfândega -, percebeu o dilema.

Nestor lembrou-se das aulas de Economia, dos tempos em que ainda não era um Alfandegário, quando investia pesado na bolsa de telefones. Então o dilema se traduzia na dicotomia da transformação das armas em arados, ou seria dos arames em tarados? Seja como fosse, ele percebeu a nova dicotomia da saúde e da renda dos bares e restaurantes. Não é sempre que o cérebro do Nestor funciona de forma tão normal, digamos assim. Chegaram a levá-lo ao neurologista. O homem de branco lhe explicou sobre o problema surgido nas suas sinapses nervosas. Os neurônios do Nestor passaram a realizar sinapses diferenciadas. Nos seres humanos normais os axônios interagem com os dendritos, separados apenas pela fenda sináptica. Assim transmitem os impulsos nervosos, através dos neurotransmissores. Os neurônios do Nestor apresentam detritos, no lugar dos dendritos, e a fenda sináptica transformou-se em fossa sináptica. Pouco passa por ali. De tudo que o homem de branco falou, sobre uma confusão de agonistas e antagonistas colinérgicos, Nestor só entendeu uma coisa, que repetia à exaustão para sua Mulher Número 1:

- Ãh, ele disse que meu cérebro se parece com geléia de mocotó...

A fossa sináptica impedia a leitura dos restos de jornais jogados pelos canteiros da Praça. Nestor esteve na Itália quando era jovem, e ainda apresentava apenas a fenda sináptica pré-abissal - que nada tem a ver com o pré-sal. Os italianos entendiam de praças para mendigos. Nada de gramados e canteiros, havia apenas lajes e pedras. Na Alfândega, os jornais jogados nos canteiros ficam cheios de barro. Voltando ao jornal, a Mulher Número Dois - a alfabetizada - lia as quase novas do dia para o Nestor, quando surgiu a notícia sobre uma juíza que exigia exame de sangue para a comprovação da embriaguez dos motoristas. Sem sangue, sem cana. Ou melhor, sem xilindró, já que a cana pode estar presente.

Ninguém entendeu quando Nestor passou a oferecer líquidos avermelhados, contidos em duas garrafas pet transparentes.

- Sangue! Olha o sangue! – balbuciava Nestor.

O pessoal que lagarteia por lá estranhou. O Funério trazia um cartaz no peito onde se lia: “Vendo meu voto”. Ele perguntou ao Nestor sobre o estranho líquido vermelho.

- Ãh, é sangue! – respondeu-lhe Nestor – Tem de 5 e tem de 10!

- Cinco e 10 o quê?

- Cinco e 10 reais.

- Vá vender atrás do cemitério, para o pessoal que prepara aqueles trabalhos.

- Ãh, este é para os motoristas usarem, quando a fiscalização pegá-los. Eles já podem levar o sangue para o exame.

- Por que a diferença de preço?

- Ãh, o de 5 é meu, e o de 10 é da Mulher Número 2...

- Por que o dela custa mais?

- Ãh, é que ela não bebe...

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12.9.08

460 - Os invisíveis

Foto: Wikipedia
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Os invisíveis

Por Paulo Heuser


Eu jogava conversa fora com alguns colegas, após o almoço que não faço, como sempre faço. Uma da tarde, dia nublado e lá veio uma daquelas figuras que colorem o Centro cinza da cidade. Não era pessoa que voltaria. Percebe-se logo quando eles não são da Praça. Vem de algum lugar incerto e longínquo, e partem para outro. Esse parecia fugido da Bolívia, pelas feições marcadamente andinas. Um andarilho miserável, carregando todas suas posses num saco surrado. Nos pés, apenas sandálias havaianas fabricadas no Brasil, apesar da temperatura fortemente declinante. No alto da cabeça, coberta pelos cabelos descuidados, ele usava uma espécie de bandana encardida, em curioso petit-pois branco e preto. Sei que é sinônimo de má educação encarar a bandana dos outros, mas, olhando melhor, aquilo se parecia com uma gravata usada na testa.

Já havia passado um vendedor de santinhos. Preparei-me para o pior, pois o refugiado andino entrava na nossa roda, observando quem estava à esquerda e à direita, sem mover a cabeça, graças a uma estranha independência móvel ocular. Ou seja, os olhos dele não funcionavam aos pares. Era cada um por si, nenhum por todos. O medo aumentou quando a língua dele se esgueirou em meio aos zagueiros laterais ausentes. Aquele era um retrato complicado da imprevisibilidade. Dalí poderia sair qualquer coisa.

O diferente gera o inevitável preconceito. Algo lá no fundo manda acautelar-se frente a esses tipos muito exóticos. Pressenti o bote, provavelmente em espanhol, ou talvez nas línguas aimará ou quíchua, muito faladas nos Andes. Nem sempre um “não” é bem recebido pelos pedintes estrangeiros que visitam nosso país entre o Sete e os 20 de Setembro. Fora deste período, também não. Já estamos habituados com os índios apaches bolivianos que tocam tambores na Rua da Praia, acompanhados pela harpa paraguaia, e com os peruanos que tocam flautas acompanhando as melodias melosas de Kenny G. Porém, esse da bandana era novo. Ele nada tocava, aparentemente.

Do nada, apesar dos nossos olhares desconfiados, ele abriu um grande sorriso que permitiu à língua perscrutar os flancos, enquanto os olhos autônomos varriam as redondezas sem sincronismo aparente, nem horizontal, nem vertical. Então ele disse, em bom português:
- Vocês por acaso não seriam vereadores de Sapucaia?

- Não! – respondemos, quase em uníssono, ainda não refeitos da surpresa.

- Ah, eu percebi, pois posso vê-los!

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28.8.08

451 - O voto na praça


Foto: Paulo Heuser
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O voto na praça

Por Paulo Heuser

Corre por aí, à boca pequena, que isto ocorreu no início de agosto. Na reunião do conselho do Partido, já tarde na noite, o pessoal que trabalhava na campanha dos candidatos a vereadores queixava-se da dificuldade em se fazer campanha, frente à escassez geral de dinheiro, tempo na TV, espaço físico para afixar propaganda, além dos candidatos sem apelo algum. O corpo a corpo estava difícil. A maioria nem olhava para os candidatos, e os que aceitavam santinhos jogavam-nos fora logo a seguir, sem ao menos lê-los.

Todos olhavam para o Bocão da Urna, maior especialista do Partido, quando se trata de convencimento de eleitores sem candidato. Ele falava da necessidade de arregimentarem mais candidatos que chamassem a atenção do eleitorado. O prazo legal para a inscrição estava se esgotando. Bocão mostrou alguns vídeos do horário político da eleição anterior. Com aquela fração de minuto, disponível para cada candidato, o que se via e ouvia era algo como:

- MeunomeéCandidoAtoevouresolverasegurançaasaúdeea
educaçãovote99999!

Os candidatos também não ajudavam muito no aspecto físico. Todos eram comuns demais, como se fizessem parte do povo. Poderiam passar por vizinhos dos eleitores. O pessoal gosta de votar nos candidatos que se sobressaem, de alguma forma. Em outros tempos, quando havia fartura, era mais fácil fixar a imagem de alguém na cabeça do eleitor. Do jeito que ficou, terão de disputar os eleitores a tapa, na boca da urna. Em algumas seções haverá mais “orientadores” do que eleitores.

Bocão deixou a sede, a pé, e aventurou-se a caminhar pelo Centro, na companhia da Eufrázia, secretária do Partido. Talvez esta fosse a razão da aparente imunidade aos assaltos que experimentaram. Para quem não estava habituado, Eufrázia aparentava ter fugido da tela do King Kong. Ela se parecia com a irmã gêmea dele. Quando cruzavam corajosamente a Praça da Alfândega, Eufrázia soltou um grito pavoroso, enquanto saltava dois metros para trás. Bocão foi além, pulando sobre os ombros da Eufrázia. A razão do susto não era um assaltante, como seria de se esperar. Era o Nestor, expoente máximo da mendicância alfandegária. Eles se depararam com aquela figura estranha, balbuciando o tradicional me-dá-me-dá. Ao lado dele descansava a mulher número 2. O Nestor realmente estava feio. Talvez não fosse feio, enquanto abonado, mas ficou. Os anos de praça deixaram sua marca. O que assustava mesmo eram os olhos esbugalhados, destacados pela fuligem que tomava conta do seu rosto. Ele tinha algo de felino, pois fugia d’água como tal. Algo refeitos do susto, Bocão e Eufrázia seguiram na direção da Rua da Praia, supostamente mais segura.

Subitamente, Bocão vislumbrou a oportunidade que deixavam para trás.

- É ele, Eufrázia!

- Ele... quem? – disse Eufrázia, enquanto arredava os pêlos da testa.

- É ele, o Candidato! Aquele sujeito não passa despercebido nem no manicômio forense.

Na manhã seguinte, Eufrázia trouxe o pessoal do Partido à praça, à procura do Nestor. Encontraram-no atrás da escultura Teorema, de Bruno Giorgi, sua residência diurna. Ele descansava da labuta noturna. Estariam diante do mais novo candidato a vereador. Bocão já havia planejado tudo. Nestor apareceria, durante os sete segundos - espaço reservado para cada candidato -, e pediria o voto:

- Ãh, me-dá-me-dá-me-dá-...-me-dá!

Para não perderem nenhum me-dá, Nestor seguraria uma placa com seu número e a sigla do Partido. Que impacto causaria tal aparição! Ele atrairia todos os votos de protesto, de solidariedade, de antipatia e de qualquer outro sentimento não retratado na mesmice dos demais candidatos. Ao candidato a prefeito, bastaria aparecer ao lado do Nestor nos palanques. Estaria fatalmente eleito.

Não deu, desta vez. Nestor teria de reaprender a ler, tarefa para longo prazo. Mas, para 2012, quem sabe? Já há gente pisoteando os canteiros que rodeiam o Teorema. Alguns pensam em 2010, pois talvez ele não chegue vivo a 2012.

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23.8.08

447 - Puxa-puxa de Ijuí


Foto: Paulo Heuser
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Puxa-puxa de Ijuí

Por Paulo Heuser


Pela calmaria que se vê nas ruas, creio que esta será a eleição mais boca de urna de todos os tempos. O caixa ficou minguado, e a legislação não está ajudando muito. A simples proibição da afixação de propaganda nos postes transformou muitos candidatos a vereador em ilustríssimos desconhecidos. Aliás, eles já eram desconhecidos da população em geral. Apenas perpetuaram essa condição. Cidades grandes são, na verdade, complexos amontoados de gente, onde cada cidadão nunca cruzará pela maioria dos seus concidadãos. Portanto, muitos ficam sem saber em quem votar, especialmente aqueles que não são bem informados. Limitam-se a assistir aos programas de TV, geralmente dos estados do centro do País. Como aqui não podem votar no Datena, na Hebe, no Huck, ou na assassina da novela das oito, dependem da boca amiga na urna incerta. Três vivas à democracia, nos passos da Dança do Créu. É claro que a culpa pela desinformação não cabe apenas a um ou outro. Nem à democracia. Aparentemente, cabe a todos nós, que sofremos as conseqüências. Especialmente eu.

Esta campanha de boca em boca torna minha lagarteagem de rua um inferno. Outro dia, o clone da Whoopi Goldberg veio pedir voto. Aproveito a hora em que os outros almoçam para relaxar na praça. Então, eles aparecem. Os anônimos aduaneiros, já que a praça é a da Alfândega. O Nestor já anda meio incomodado, pois não querem pagar pelo seu voto.

O candidato anônimo anda sozinho, ou, no máximo, com mais um ou dois comparsas que carregam papéis e um modesto estandarte, que teima em ficar enrolado. Eles são a versão ao vivo dos operadores de telemarketing. O problema é exatamente este, eles estão lá em carne e osso, cara a cara. Com eles não funciona o argumento, que uso pelo telefone, alegando que o pai e a mãe não estão em casa, que o assunto deverá ser tratado com o Dr. Barbosa, no Setor de Enciclopédias, que lá não mora ninguém, etc. Também não dá para se sair correndo. Assim, há de se cortar o mal pela raiz, sendo chato.

Hoje a raiz veio junto. Quem já tem muitas horas de praça acha que já viu tudo, mas sempre há mais para ser visto. A abordagem de hoje foi feita por uma mulher na casa dos setenta, eu diria. Com certeza, ela só votaria por opção, não por obrigação. Era uma mulher um tanto rústica, com a aparência muito mal cuidada de quem trilhou outros caminhos ao realizar sinapses. Ou seja, aparentava ser doida varrida, daquele tipo que pára ao seu lado, sem nada falar, e fica a olhar de forma estranha. Então vem aquele constrangimento terrível. Interrompi a conversa que tabulava com outra pessoa, esperando pelo bote. Ela segurava meio pé de hibiscus, com raízes e tudo, numa das mãos, enquanto a outra empunhava sacos sabe-se lá do quê. Na cabeça, chamava a atenção o boné com a propaganda eleitoral de um candidato a governador nas Eleições de 1994. Ela quebrou o terrível silêncio, sibilando:

- Se fores para Ijuí, te faço puxa-puxa (?)!

Antes que alguém pudesse questioná-la, ela esclareceu:

- Não é chiclete de borracha (outro ?)!

Dito isto, seguiu, sorrindo um sorriso sem dentes. Ficamos a pensar que estas eleições terão bocas desdentadas de urna, mascando puxa-puxa que não é chiclete de borracha. Será alguma mensagem cifrada? Qual será o papel do meio hibiscus?

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12.8.08

440 - O artista e o povo

Teorema, de Bruno Giorgi. Foto: Paulo Heuser
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O artista e o povo
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Por Paulo Heuser
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“Todo artista tem de ir onde o povo está” - canta o grande Milton Nascimento. Por vezes, não são os artistas, que vão, é a obra deles que vai ao encontro do povo. O escultor Bruno Giorgi (1905-1993), nascido no interior paulista, filho de imigrantes italianos, emigrou para a Itália, em 1911. Acompanhou a família, que para lá retornou. Em Roma, militou no partido comunista, o que lhe rendeu uma extradição, de volta para o Brasil, após amargar quatro anos no xilindró romano. Nos anos 30, foi estudar em Paris, nas prestigiadas academias La Grande Chaumière e Ranson.
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Bruno Giorgi voltou ao Brasil, em 1939, e estabeleceu-se em São Paulo. Ao longo de 40 anos de escultura, Giorgi deixou obras de grande expressão artística, como o Monumento à Juventude Brasileira (1947), que se encontra no Palácio da Cultura do Rio de Janeiro, antigo Ministério da Cultura e Saúde. Os Candangos (1960) enfeita a Praça dos Três Poderes, em Brasília. Outra obra de grande destaque é Integração (1989), que se encontra no Memorial da América Latina, em São Paulo. Bruno Giorgi foi professor do artista plástico austríaco, naturalizado brasileiro, Francisco Stockinger.
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Há uma obra de Giorgi na Praça da Alfândega, o Teorema. Pois o Teorema está cercado pelo povo. Nestor e suas famílias moram atrás do Teorema, durante o dia, pois diariamente perdem a marquise que os abriga durante a noite. Esse crescimento econômico, que tirou a maior parte da população da condição de miseráveis, trouxe a crise imobiliária para a minoria remanescente, na base da pirâmide. Bons mesmo foram aqueles tempos de crise, quando havia prédios para alugar, por toda parte. Sobravam marquises. Hoje, não. Basta o sol nascer para que Nestor e suas famílias sejam despejados pelos esquadrões da mangueira e do esfregão. Não respeitam nem sua mulher número 2, que espera outro filho. Ele nascerá sem marquise fixa.
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Noutro dia perguntaram ao Nestor sobre o número de filhos dele. Ele sempre responde o mesmo: dez. E continuarão sendo dez, após no nascimento daquele que a número 2 carrega no ventre, pois Nestor tem apenas dez dedos nas mãos. É aí que termina o sistema numérico dele. A Mega Sena acumulada paga dez, há dez árvores na praça, a idade do Nestor é dez, e assim por diante.Quase todas as pequenas cidades européias têm monumentos, nas suas praças centrais, aos soldados mortos durante as duas Grandes Guerras. São obeliscos com as listas dos nomes. Essas listas são particularmente grandes nos povoados próximos às fronteiras belga, luxemburguesa e francesa com a Alemanha. Lá ocorreram os combates que deixaram milhões de mortos e estropiados, homenageados através dos célebres monumentos ao soldado desconhecido. Sobre as cenas que lá presenciou, o médico britânico John McCrae escreveu um célebre poema, em 1917:
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“NOS CAMPOS DE FLANDRES
Nos campos de Flandresas papoulas estão florescendo entre as cruzes
que em fileiras e mais fileiras assinalamnosso lugar;
no céu as cotovias voame continuam a cantar heroicamente,
e mal se ouve o seu canto entre os tiros cá embaixo.Somos os mortos...
Ainda há poucos dias, vivos,
ah! nós amávamos, nós éramos amados;
sentíamos a aurora e víamos o poentea rebrilhar,
e agora eis-nos todos deitadosnos campos de Flandres.
Continuai a lutar contra o nosso inimigo;
nossa mão vacilante atira-vos o archote:
mantende-o no alto.
Que, se a nossa fé trairdes,
nós, que morremos, não poderemos dormir,
ainda mesmo que floresçam as papoulas
nos campos de Flandres.”
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Na Praça da Alfândega há apenas monumentos em homenagem àqueles que conquistaram as mais altas patentes. Nestor nunca lerá Nos campos de Flandres, até porque é analfabeto. Tampouco sonha onde fica Flandres, apesar de sonhar com uma telha de folha de flandres, para construir um puxadinho no Teorema. Talvez agora perguntem: o que tem uma coisa a ver com a outra? Bem, provavelmente Bruno Giorgi nunca esperou chegar tão próximo do povo, a ponto de morarem na sua obra. Tampouco esperava criar uma espécie de monumento em homenagem ao estropiado desconhecido, pracinha da miséria. Sem papoulas a florescer, resta algo de poesia ao Nestor. Talvez ele possa declamar Nos campos da Alfândega:
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“...ah! nós amávamos, nós éramos amados;
sentíamos a aurora e víamos o poentea rebrilhar,
e agora eis-nos todos deitados...”
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Disso, Nestor entende. Passa metade do dia deitado, e, pela facilidade que ele apresenta, para amar e ser amado, talvez aquele seja o monumento ao pai desconhecido.
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16.7.08

426 - O despertar

Foto: Wikipedia
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O despertar
Por Paulo Heuser


Talvez seja apenas outra dessas lendas urbanas que contam histórias fantásticas e inverossímeis a respeito de mendigos. Esta conta a história do Nestor, atual personagem número 1 da Praça da Alfândega. Ele sucedeu o antológico Penúltimo Caudilho, que foi varrer os quartéis da Rua da Praia. A praça andou meio sem dono. Foi-se também aquela senhora volumosa que agenciava as moças faceiras. Foi-se também a inocência dos jogos de damas, nos tabuleiros da Capitão Montanha. Deram lugar ao informal Cassino Alfândega, ironicamente vizinho do grande cassino do Governo. No horário de lagartear, após o almoço, Peru Louco e Tio Funério reinavam absolutos. Porém, faltava alguém que tomasse conta da praça em tempo integral. Um residente, portanto.

Nestor foi se chegando, durante o ocaso do Penúltimo, faz uns três anos. Começou com o característico me-dá-me-dá. Desfia uma interminável súplica, digna de derrotar uma equipe de beatas disputando uma novena olímpica. Ele é um sujeito moreno e calvo, que reparte as atenções das suas duas mulheres, uma jovem, outra mais castigada pela vida na rua. Com o tempo, Nestor ficou. Morar nessa praça, apresenta vantagens. O povo que circula por lá é mais abonado, pertence à classe média média. São os melhores para dar esmolas. Sempre sobra um pouco, ao contrário do que acontece com os pobres, e o coração deles é um pouco mais mole do que o dos ricos. Especialmente o das mulheres que vestem taieur claro. Azul claro é o melhor. São as vítimas preferidas para o achaque do Nestor. Ele gruda ao lado delas, que tentam se equilibrar sobre os sapatos de salto alto, enfiados nas frestas daquele infame calçamento da praça. Dão qualquer coisa, para se livrarem dele. Assim ele toca a vida, provendo casa e comida para as suas famílias. A casa varia de lugar, conforme sopra o vento.

Agora, vamos à lenda. Ela reza que o Nestor foi um empresário de sucesso, que sofreu grave acidente, em 1985. Ele havia angariado tal capital, que já se permitia viver de rendas, sem necessariamente tricotar. Nestor estava de malas prontas para viver em Bombinhas, Santa Catarina. Praia pequena, calma, com natureza exuberante, muito diferente da badalação que destruía o paraíso da Ilha de Santa Catarina. Nestor havia investido pesado no mercado de telecomunicações. Ele comprou mais de cem linhas telefônicas, algumas por quatro mil dólares, para viver da renda do aluguel. Homem calejado, no ramo dos negócios, ele investiu outro tanto na compra de uma rede de locadoras de fitas de videocassete. O homem estaria garantido, até o fim dos seus dias.

Então, veio o acidente, e Nestor ficou em coma durante os 20 anos seguintes. O maior azar dele foi acordar, finalmente. Havia perdido a mulher, que juntou os trapos com alguém que não passava os dias e as noites dormindo. Foi assim, do nada, que Nestor se viu acordado. Da centena de linhas telefônicas, sobraram as contas pendentes. A rede de locadoras quebrou antes da virada do milênio. Os antigos amigos fugiram dele. Nestor foi previdente, e guardou um milhão de dólares. Numa conta em um banco argentino. Da ex-mulher só ouviu uma frase:

- Eu vou enchê-lo de formigas, num canteiro de urtigas! – gritava ela, enquanto lhe dava guarda-chuvadas a rodo.

Só e desiludido, Nestor se mandou para a sua nostálgica Bombinhas. Viveria feito hippie, na beira da praia. Voltou, a pé. E na praça, conquistou novos amores.


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10.3.08

A casa do Nestor


Foto: Paulo Heuser
A casa do Nestor

Por Paulo Heuser


Na Praça da Alfândega ocorre um novo tipo de adoção da coisa pública pela iniciativa privada, provavelmente motivada pelas placas que oferecem áreas à adoção. Alguns usuários da praça usam a coisa pública como privada, literalmente. Uma das áreas já foi adotada pelo Nestor. Ele foi membro do MSP – Movimento dos Sem Praça – e pedia esmolas ao lado da loja do mel. Hoje, graças à adoção, Nestor já tem seu cantinho, junto ao monumento a só Deus sabe quem. Deus e o Nestor, pois o local foi cercado e tornou-se impossível ler o que restou da placa na base do busto. Nestor foi chegando, como quem não quer nada, e ficou. Montou a cama e organizou a cozinha. Tudo ao ar livre. Quem tem casa, quer casar, reza uma variante do célebre ditado. Logo uma moça interessou-se pelo Nestor e formaram um par. Hoje estão lá, felizes, pois o quintal é grande. Quem sabe, poderão até plantar uma horta?

O Nestor já conta com telefone. Há um orelhão próximo da sua nova morada. Ontem o telefone tocou. Nestor apressou-se em atender, pois poderia se tratar de algo urgente.

- Alô?

- Boa tarde! Eu gostaria de falar com o Seu Nestor.

- É ele!

- Como vai o senhor?

- Não tenho queixa enquanto não chover.

- Pois então, Seu Nestor. Sou consultora do Banco Basco, em nome de quem gostaria lhe fazer uma oferta.

- Quer me dar dinheiro?

- Pois então, Seu Nestor, nós poderíamos estar conferindo algumas informações, por segurança?

- Sim, se é para me dar dinheiro, pode mandar...

- Pois então, Seu Nestor, seu endereço é Praça da Alfândega. E o número, qual seria?

- É no lado do monumento do Tiozão, aquele que fica perto daquela mulher gorda. Não tem número. É só perguntar para as moças aqui ao lado, elas sabem.

- São secretárias?

- Bem, não é bem isso, mas elas sabem.

- O senhor é casado, Seu Nestor?

- Hoje sou, tem a Fulana, que se chegou por aqui...

- E o nome dela seria?

- Sei lá o nome dela, chamo de Fulana. Nos juntamos os trapos há apenas uma semana.

- Pois então, Seu Nestor. O Banco Basco estará lhe fazendo uma proposta...

- Se é dinheiro, manda.

- Pois então, Seu Nestor. O Banco Basco estará lhe oferecendo um seguro residencial com título de capitalização premiado. Três produtos em um só!

- Droga, se eu tivesse casa, não moraria na praça!

- Pois então, Seu Nestor. O senhor mencionou que estaria morando junto a um monumento.

- Sim, e daí?

- O senhor não estaria interessado no nosso Seguro Patrimonial Histórico-Cultural com título de capitalização premiado?



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