26.2.08

Polvos albinos



Foto: Paulo Heuser

Polvos albinos

Por Paulo Heuser



Ouvi um relato de alguém muito decepcionado com um prato de massa al pesto alla genovese, molho que combina manjericão fresco, pinoli - pinhão do Mediterrâneo -, queijo tipo pecorino – de leite de ovelha – e azeite. É um molho cru, servido frio sobre a massa larga, preferencialmente tagliatelle. Na falta de pinoli e pecorino, improvisam com nozes e parmesão ralado. Mudam o gosto, mas mesmo assim fica bom. Prepara-se o molho no pilão, amassando os ingredientes até que se transforme numa pasta homogênea verde-esbranquiçada. A decepção do amigo deveu-se à forma como o pesto foi preparado: o pilão e os ingredientes deram lugar ao vidro da prateleira do supermercado. O cozinheiro preparou a massa e derramou molho pronto sobre ela. Molho pronto tem gosto de molho pronto. Há coisas demais lá dentro, que acabam produzindo aquele gosto comum às sopas de pacote, cubos de caldo de qualquer coisa e molhos prontos, todos fabricados pelas mesmas empresas. Assim, a sopa creme de aspargos acaba com o mesmo gosto do caldo de pizza de coração, que por sua vez apresenta o mesmo gosto do molho pronto de batatas fritas com bacon. Mudam apenas a apresentação.

Quem nasce nos perímetros urbanos, mais desenvolvidos economicamente, tende a desconhecer a comida de verdade, aquela preparada apenas com ingredientes primários ou não manufaturados. Comem comida pronta ou preparada em grandes porções, como no caso dos bufês. Essas pessoas adquirem gosto padrão, encontrando dificuldade para comerem os pratos menos presentes nas prateleiras de comidas prontas. Há vários exemplos de comidas que estão longe da unanimidade, entre a população. Um exemplo típico é a morcela (morcilha), preparada a partir do sangue do porco. A totalidade da população jovem urbana torce o nariz para tal iguaria preparada pelos nativos de terras menos povoadas. Outro exemplo é a copa, preparada a partir da carne defumada do pescoço do porto. Os urbanos preferem estranhos e pálidos presuntos, sem gorduras, sem gosto.

Os pães urbanos podem se apresentar nas mais variadas formas e composições, algumas muito boas, realmente. Contudo, o que predomina é um pão cheio de fermento que acaba completamente oco, quando assado. Regulamentaram sua venda por quilo, após constatarem que alguns pães apresentavam densidade semelhante àquela do ar. O pão de meio quilo poderia alçar vôo, frente à brisa mais forte.

Dia desses, almocei num restaurante do rodízio que serviu uma interessantíssima galinha caipira ao molho pardo. De caipira, nem o tataravô. O molho pardo, no entanto, parecia-se com um molho pardo de verdade, feito com sangue, como manda a receita original. Os garçons não mencionavam a composição do molho. Se o fizessem, provavelmente iriam defini-lo como um molho preparado com fluidos corpóreos vitais. Ou, quem sabe, ensopado de hemácias? Já inventaram os cubos de caldo de sangue de galinha caipira?

O que dizer do ensopado de dobradinha (mondongo), então? Qual seria a reação das crias de fast food, ao vê-lo? Posso imaginá-la! Sairiam correndo porta afora, gritando:

- Que nojo! Eles comem polvo albino cabeludo!

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25.2.08

Quartelada edilícia



Foto: Paulo Heuser
Quartelada edilícia

Por Paulo Heuser


Pantoja passou a vida profissional cuidando da segurança dos outros. Reformado, passou a cuidar da sua e da dos seus. Deixou para trás a cidade grande, com todos os seus perigos. Optou por morarem em local bem protegido. Pelo menos é o que o corretor lhe vendia. Um misto de natureza e segurança. Porém, o que Pantoja viu, quando lá chegou, de longe lhe agradou. Havia um porteiro esquálido e sonolento na cancela de acesso à fortaleza. E chamavam aquilo de muros? Com míseros quatro metros de altura?
O síndico ouviu uma hora e meia de rugidos telefônicos, exarados pelo Pantoja, a respeito da débil segurança daquele local. Por fim, até para se livrar momentaneamente do Pantoja, ele concordou em convocar uma assembléia extraordinária do condomínio, de cuja pauta constou apenas um item: segurança. Assembléias de condomínio que tratam desse aspecto costumam lotar a casa, com dois tipos clássicos de freqüentadores: os paranóicos e os apertados. Os paranóicos adoram qualquer tipo de investimento em segurança pessoal e patrimonial. Os apertados tentam evitar, a qualquer custo, novas despesas ou investimentos condominiais. E segurança é um negócio caro, muito caro.

Por segurança, Pantoja convenceu o síndico a colocarem um porteiro extra, na entrada da sala da assembléia, para identificarem os presentes. Sem identidade, nada feito. Nem o Seu Olegário – primeiro morador do condomínio – conseguiu entrar, pois não aceitaram sua identificação visual. Ou documento, ou nada feito. Segurança é segurança! O Pantoja continuou inovando, ao convencer o síndico a convocarem a segunda chamada para o horário da novela das oito.

Aos doze minutos do início da assembléia o síndico jogou a toalha e renunciou. Anunciou que voltaria à cidade grande, longe do Pantoja, recém eleito novo síndico, numa autêntica quartelada edilícia. Informada pelo marido, Dona Lupanária gritava: - Ele não pode fazer isso! – Mas, a novela das oito gritou mais alto. Ela ficou, Pantoja triunfou.

O salão de festas transformou-se em quartel general. Não era tempo para festas, era tempo para lutarem pela segurança! De lá partiram as novas regras e ordens que transformaram completamente a vida intramuros, a começar pelos próprios muros, cuja altura foi elevada para oito metros, recebendo também o arame farpado, cacos de vidro e a eletrificação. O calcanhar de Aquiles – a portaria – recebeu novo pessoal e novos equipamentos. Lanças fura-pneus operadas pelo pessoal da Legião Estrangeira Nacional, para-empresa de vigilância inspirada na célebre instituição francesa, garantiram a segurança no acesso. A comunicação mostrou-se um pouco falha, pois Dona Candinha borrou-se nas calças ao ser barrada por dois soldados vestidos de preto e com tocas ninjas, portando metralhadoras Chukrutnikov, que lhe pediam a senha enquanto miravam no meio dos seus olhos. O caso rendeu um pedido público de desculpas, por parte da tropa, durante a solenidade diária de asteamento do pavilhão condominial e da leitura da ordem do dia.

As visitas de parentes e amigos passaram a ser agendadas com um mês de antecedência, tempo suficiente para investigarem a vida pregressa dos estranhos. Havia tempo também para efetuarem todos os exames clínicos e laboratoriais que atestassem a boa saúde dos visitantes. O pessoal aprendeu rapidamente a agendar as tele-entregas com boa antecedência. Difícil foi convencerem os motoboys a realizarem todos aqueles exames, mesmo quando pagos pelos clientes. Das notas de entrega das pizzas passaram a constar novos itens, como: honorários médicos, hemograma, sorologia e outras coisas menos pronunciáveis. Por fim, o próprio Pantoja encontrou uma saída para o problema representado pela restrição de acesso aos serviços externos. Montou uma intendência, própria do condomínio, que passou a servir pizzas clássicas, como a Monte Castelo, Waterloo e Trafalgar. Tudo muito seguro.

Pantoja descobrira há muito que a dinâmica do condomínio deveria ser mantida, para manterem alto o moral da tropa – dos condôminos, no caso. Na última ordem do dia anunciou a instalação de diversos pára-raios. O pessoal estranhou, mas Pantoja logo explicou: os pára-raios impediriam o ataque inimigo a partir de helicópteros.

Pedrinho foi a única voz dissonante na fortaleza inexpugnável. Tímido, puxou a calça do Vovô Pantoja e lhe perguntou:

- Vô, é verdade que estamos na praia?

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24.2.08

O que é uma fêmea?



Foto: Paulo Heuser

O que é uma fêmea?

Por Paulo Heuser


Hipermercados são isso mesmo, são hiper. Perde-se um hipertempo lá dentro, realizando hipercaminhadas para comprar salsinha. A lógica da distribuição das mercadorias no interior dos hipermercados também é hiper, a hiperlógica que define que a salsinha deve ficar ao lado dos pneus. Os pneus para jipes 4X4, naturalmente. Os outros ficam ao lado dos defumados. Os hipermercados têm hiperquantidades das coisas que eu não desejo comprar.

Lá ia eu, compenetrado, procurando por um afiador de facas, de molas, quando aquela morena vistosa interrompeu minha busca e falou:

- Por favor, o que é uma fêmea?

Um turbilhão de respostas girou em torno da minha mente surpreendida pela pergunta. Sei lá porque, selecionei uma resposta que passou aleatoriamente pela minha frente. Apenas a peguei, e lhe respondi:

- Bem, sendo sincero, uma fêmea é uma mulher. - Simples assim.

- Oh! – disse ela – Não esse tipo de fêmea. Falo da tomada fêmea...

- Ah, bom. É aquela com furos. A outra, com pinos, é macho.

- Vou levar uma de cada! – exclamou ela, aparentemente feliz com sua dupla descoberta.

Logo a expressão dela mudou para a dúvida, denunciada pela testa franzida.

- Será que elas se encaixam? – continuou.

- Com certeza, nasceram uma para a outra! – afirmei.

E lá saiu ela, feliz com seu casal de tomadas. Eu fiquei lá parado, por um instante, pensando naquela pergunta até certo ponto estúpida. Como poderia alguém desconhecer uma tomada fêmea? Desisti do afiador de facas e fui procurar o item dois da minha lista de um item: a rúcula. Eu morro de inveja dos donos de churrascarias baratas. Parecem ser os únicos que conseguem comprar rúcula decente. Eu só consigo encontrar rúculas secas, no hipermercado. Não sei nem como se atrevem a vender aquelas folhas secas e quebradiças. Até que encontrei a rúcula com alguma facilidade. O gerente me informara, já na entrada, que a rúcula estava ao lado das tochas de jardim e das baterias de automóvel. Hiperlógica de hipermercado. Desisti da compra, ao deparar com aquelas folhas horríveis. Hora de voltar. Já estava escurecendo eu ainda teria de achar meu carro no hiperestacionamento, antes das 23 horas.

Quando eu passava pela seção de aquários para barracudas, lá pelas 22 horas, outra mulher interceptou minha jornada. Fazia um estilo refinado, tanto pelo nariz de grife, como pelas jóias. É o tipo de mulher que não bebe chá. Não em xícaras, pelo menos. Ela usa chávenas. Tampouco usa pasta de dente. Usa dentifrício. Durex? Nem sonhar, ela usa fita adesiva. Ela me olhou sem olhar, como esse tipo de mulher sabe fazer. Perguntou-me na lata, sem firulas:

- Onde está o almeirão?

- Ah, o almeirão. Bem, ele está ali, logo depois das seções de mangueiras de incêndio e colheitadeiras de trigo.

A mulher seguiu, sem pestanejar nem me agradecer. Ainda bem, pois eu ficaria com a consciência um pouco suja.

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20.2.08

Os invisíveis


Foto: Wikipedia
Os Invisíveis

Por Paulo Heuser


Émile Durkheim (1858-1917) foi um sociólogo francês que explicou porque uns são mais iguais do que os outros. Considerado o pai da sociologia moderna, Durkheim estudou a estratificação social – as pessoas estão inseridas em determinadas camadas sociais, ou castas. Na Índia, por exemplo, as pessoas já nascem inseridas nas castas, a não ser que pertençam ao substrato da população composto pelos párias, ou intocáveis. A complexa e tão admirada cultura hinduísta acredita que os intocáveis vêm do esterco, portanto impedidos de tocar nos elementos das outras castas e nos alimentos, pelo temor de que vão contaminá-los. Até os escravos pertencem a uma das castas, na Índia. A hierarquia das castas sobrepõe-se à hierarquia das relações de trabalho. Aos intocáveis resta aquele tipo de atividade que ninguém pertencente às castas deseja fazer, como a limpeza das fossas sépticas. Os intocáveis literalmente mergulham nas fossas, como fizeram seus pais, os pais destes, e assim por diante.

Aqui há semelhanças. Nascemos inseridos em algum substrato social ao qual nossos pais pertencem. Porém, temos mobilidade entre as castas, ao contrário do que ocorre na Índia. Faz-se a ascensão social às outras castas através do acúmulo de capital ou da política. Um paria tupiniquim poderá tornar-se brâmane – a mais alta casta hinduísta – enriquecendo ou sendo eleito ou nomeado para algum cargo que lhe dê poder. Aqui há também o caminho inverso. A perda do capital ou do poder implicará a queda para algum substrato social inferior, proporcional ao tamanho da perda. Alguns perdem o cargo sem perderem o poder, o que é muito comum na política. Tornam-se consultores e mantêm o poder econômico.

Os sistemas sociais estratificados, como o nosso, adotam regras diferenciadas de punição aos infratores da lei. O brâmane tupiniquim que deixa cair o pote de caviar no bolso do Armani é um doente. Só pode ser, já que não necessita tomar posse daquilo sem realizar uma transação comercial – forma elegante brâmane tupiniquim de descrever um furto. O autor de tal ato falho – outra forma brâmane tupiniquim de descrever o furto – poderá ser condenado à sala de espera do amigo psicanalista, que lhe receitará um tratamento calcado na terapia ocupacional. Deverá participar de 12 jantares beneficentes. Sem apropriar-se de potes de caviar.

A história da manteiga furtada pelo pária é velha e não precisa ser repetida. A manteiga era de marca consumida pelos brâmanes tupiniquins e o sujeito foi em cana. Lá ficou, enquanto os criminosos mais perigosos saíam por abrandamentos de pena previstos em lei. De tudo isso veio a falácia de que apenas os párias vão em cana. Puro sofisma! Esqueceram-se do substrato que nem definido está, o dos invisíveis, espécie de subpárias. Estes estão fora do nosso sistema social, não nascem, não morrem, não votam e não são ibgeados. Pontos fora de qualquer curva estatística. Eles perambulam pelas ruas, mimetizados com as cores da sujeira. Inconscientemente, desviamo-nos deles. Quando dormem sob marquises, seus apartamentos preferidos, damos passo ao lado e seguimos nosso caminho. Paramos para socorrer os cães, pois eles pertencem à casta dos seus donos. Os invisíveis não têm cães, pois dali nem osso de sopa usado sai. O invisível somente se tornará visível se cometer um ato realmente pavoroso contra um elemento de casta. A Carta Magna não se aplica aos invisíveis. Se não lhes dão direitos, deveres não lhes poderão cobrar. Podem andar pelados pelo meio da rua, perpetrar pequenos delitos e conduzir toscos veículos de tração humana ou animal sem obedecerem qualquer norma de trânsito. Obedecem a tacitamente instituída lei da sobrevivência. Lei não enche barriga, dirão com razão.

Há quem tente mudar o estado em que essas coisas se encontram. Tenho visto com alguma freqüência um sujeito magro que cruza celeremente a praça, sempre com o telefone celular colado na orelha esquerda. O braço direito movimenta-se em ritmo de marcha, enquanto ele segue a passos largos, olhando para o infinito. Até ontem repetia sempre a mesma ladainha, num inglês com sotaque do Azerbaijão: - You are an idiot! I told you! You are an idiot!. Ele surgia por um lado da praça, trazendo um crescente “You are an idiot!” e saia pelo outro lado, deixando outro “You are an idiot!”, decrescente desta vez. - Lá vem o Yuarenidiot! - comentavam os engraxates. Até ontem, pois hoje o Yuarenidiot inovou, tanto na prosa como na idéia. Até no instrumento. Hoje veio armado de megafone, subiu no banco da praça e realizou o comício de um homem só. Defende a extensão do sistema de cotas às castas. Propõe a reserva de vagas nos presídios proporcionais ao número de habitantes nas castas sociais. Não apenas. Defende também a inclusão dos excluídos brâmanes tupiniquins e dos invisíveis, no sistema de cotas prisionais. E as prostitutas fazem coro com os engraxates, gritando: - Yuarenidiot!

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18.2.08

Os dentes da Frida


Foto: Wikipedia
Os dentes da Frida

Por Paulo Heuser


Minha mulher apareceu em casa com um DVD do grupo sueco ABBA – nome formado pelas iniciais dos casais Agnetha e Björn; Anni-Frid (Frida) e Benny. Lembro-me bem da época em que Dancing Queen enchia os alto-falantes das rádios AM para jovens, lá pelo meio dos inesquecíveis e formidáveis anos 70. Tempos em que tocavam em piano de verdade, aquele feito de madeira de verdade, com martelos, pedais, cordas e teclas brancas e pretas. Naquele grupo juntaram o talento de dois compositores de mão cheia com duas cantoras muito boas. O resultado foi um sucesso. Ouve-se Abba até hoje. Música fácil e gostosa. Em 1994 as músicas do grupo fizeram parte da trilha sonora da ótima comédia australiana Priscilla – A Rainha do Deserto, que contou a história de drag queens que cruzaram o deserto na Austrália a bordo de um ônibus chamado Priscilla.

O DVD mostra algumas coisas que podem passar despercebidas ao observador desatento, aquele que se deixa levar apenas pelo áudio. Os cabelos e roupas chamam logo a atenção. Longas costeletas e roupas coloridas, bem ao estilo da época. Nota-se também uma tentativa, bem sucedida, por sinal, de transmitir a ausência de estrelas no grupo. Todos mereceram tempos semelhantes defronte as câmeras e sucediam-se no primeiro plano, fraternalmente. Na falta dos atuais “defeitos” especiais, o responsável pela fotografia usou e abusou de recursos como foco em planos diferentes e closes. As coreografias parecem um pouco ridículas para quem não se insere no clima da época. Hoje nos acostumamos com muita luz, corpo de balé, cenários de megaproduções de Hollywood, muita fumaça e pouca música.

Há algo naquelas performances, no entanto, que salta aos olhos. O quarteto tinha dentes. Dentes de verdade, como o piano. Dentes feitos de dentina e sabe-se lá do quê. Naturais, orgânicos, como diriam hoje. Coisas produzidas pela própria pessoa, que cresceram sem o molde de aparelhos, formas e guias. A abundância dos closes permite a visualização de pequenas imperfeições, frestas e desalinhamentos, tudo completamente natural. O que mais me surpreendeu foi o fato de eu me surpreender tanto com isso. Perplexo, deixei escapar um comentário: - Nossa, eles têm dentes! – ou tinham, pelo menos. Olhando mais atentamente, pude observar que a Agnetha – a loira - tinha a boca levemente torta. Bela, mas torta. De qualquer forma, ninguém dava a mínima ao fato de ela ter boca torta. O que interessava era o que saía dela.

Outros tempos. Pegavam uma boa música, ou um bom grupo, e lançavam-nos no rádio. Prensavam as bolachas e distribuíam. Se a cara do ou da vivente fosse muito terrível, colocavam uma foto de outra coisa na capa do disco. A foto de uma guitarra, por exemplo. Hoje as coisas se complicaram. Encontram alguém plasticamente perfeito, reúnem a orquestra sinfônica, o corpo de balé, o coral, canhões robotizados de laser e... e... O que vieram fazer, mesmo? Ah, sim! A criatura deve cantar. Que saudades da boca torta da Agnetha e dos dentes separados da Frida!


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14.2.08

A cana do Brasão




A cana no Brasão

Por Paulo Heuser


A leitura matinal do jornal tornou-se enfadonha. Cartões, cartões e cartões. Tudo gira em torno dos cartões de crédito. Apenas uma notícia chama a atenção, destoando entre as denúncias de mau uso dos cartões. O deputado Clodovil Hernandes apresentou o Projeto de Lei 2310/07, para modificar o Brasão das Armas Nacionais. Sugere a troca das folhas de fumo que fazem parte do brasão por galho de cana-de-açúcar.

O deputado alega que o fumo causa doenças e que já não representa a mesma riqueza que representava em 1889. O projeto não é inédito, tendo sido apensado a outros dois, o 1345/1999 e o 4149/1998, este já acendendo velinhas. Confesso que eu não sabia que aquelas folhas eram de fumo. Se os nobres deputados não apresentassem esses projetos de lei importantíssimos, eu talvez nunca viesse a sabê-lo. Eles devem acreditar que muitas pessoas deixarão de fumar, prolongando suas vidas, se o galho de cana substituir as folhas de fumo. É aquela história, o sujeito perde a vontade de fumar ao olhar para o Brasão de Armas Nacionais sem folhas de fumo. Não seria o caso também de retirarem as folhas de café, que lá estão? Café em demasia pode causar problemas de saúde.

Algo me preocupa nesses projetos de lei. Se a retirada das folhas de fumo reduz a vontade de fumar, a presença do galho de cana-de-açúcar não aumentará a vontade de tomarem pinga? O deputado alega que a cana-de-açúcar é matéria prima para a fabricação de açúcar e do álcool combustível. Entretanto, esquece-se de mencionar o álcool que também serve de combustível para a queima das frustrações do cotidiano. Temo que o novo brasão vá se parecer com um rótulo de garrafa de pinga.

Porém, o que mais me preocupa é a reforma estética de um símbolo da Nação como se fosse logotipo de empresa, que deve ser atualizado periodicamente. O Brasão de Armas da Inglaterra existe desde o Século XII, durante o reinado de Ricardo I. Apesar de ostentar três leões passantes com garras azuis e línguas de fora, aparentemente ninguém tentou alterar aquele brasão. Convenhamos que os leões nunca foram uma riqueza da Inglaterra, mostrando-se piores para a saúde humana do que o fumo, conforme foi provado no Coliseu de Roma. Leões de língua de fora parecem debochar dos súditos do reino. Claro, digo isso porque não entendo nada de heráldica, a ciência que estuda essas coisas. Talvez consigam explicar também por que os leões ingleses têm garras azuis.

Caso venham a se tornar lei, esses projetos poderão movimentar a economia. A começar pelo concurso para a escolha do novo Brasão das Armas Nacionais. Poderão escolher algo mais moderno, com estrelas estilizadas. As plantas poderão simbolizar melhor o momento político nacional. Pepinos a abacaxis traduziriam bem este momento.
Uma alteração do Brasão das Armas Nacionais implicará alterações em todos locais onde é utilizado, incluindo as placas em todos os prédios públicos e os timbres dos documentos oficiais federais. Todas essas alterações envolvem custos. Ainda bem que poderão ser cobertos pelos cartões de crédito corporativos.


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12.2.08

O pastel do Mezenga

O pastel do Mezenga

Por Paulo Heuser


Dia desses, eu resolvi tomar o café da manhã fora. A única coisa que não faz parte do meu café da manhã é o café. Gosto de bebidas mais saudáveis, como fanta, fruki, mirinda ou sukita, coisa que aqueles que preparam os cafés dos hotéis ainda não perceberam. Alguns chegam a me perguntar: café ou chá? – Fanta, lhes repondo. Assim, adentrei o Bar do Mezenga, nos baixos da Caldas Júnior, atrás do famoso pastel da casa e de uma fanta gelada.

O Mezenga vendeu o ponto, faz algum tempo, e partiu para um restaurante de comidas mais gaudérias. Deixou saudade. Arrisquei assim mesmo. O lugar ficou estranho, com aquelas máquinas de videopôquer. Como não sou afeito ao pôquer matinal, preferi assistir ao noticiário da manhã na TV. O antigo pastel também se foi com o Mezenga. O novo não escorre como aquele. Havia uma técnica especial para comê-lo. Quebrava-se a massa em uma das extremidades e entornava-se a gordura no cinzeiro. Pastel fresco é assim, escorre.

Deliciando-me com a fanta, não tanto com o novo pastel, observei que a mesa ao lado estava ocupada por pai e filho, este de uns sete anos de idade, mais ou menos quatro, para ser bem preciso. O olhar do menino estava grudado na tela da TV, enquanto mastigava seu ex-pastel do Mezenga. Ele provavelmente nunca saberia o que é um verdadeiro pastel – pensei. Meio ovo, azeitona inteira e a cozinheira invisível, eis o segredo. Enquanto as mandíbulas do menino encontravam-se ritmicamente, o locutor falava da possibilidade de cassação do vereador que aparecia na imagem: um homem postado com as mãos para cima, usando imenso crucifixo dourado, com longos cabelos e barba, túnica branca e uma coroa de espinhos sobre a cabeça, – Jesus! – gritou o menino.

Horrorizado, o pai apressou-se em explicar ao menino que aquele não era Jesus, era o Cururu, vereador de Pelotas, enquanto o locutor informava da possibilidade cassação do edil por quebra de decoro, já que este havia vestido uma túnica branca, manipulado objetos e proferido palavras cabalísticas. – Ele é padre, pai? Novamente o pai respondeu-lhe negativamente, enquanto lhe explicava que aquela era uma cerimônia de vodu.

Entre um gole e outro de fanta, entendi a confusão que tomou conta do menino que assistia àquele espetáculo ritualístico-legislativo. Alguém vestido daquele modo efetivamente se parece com a imagem de Jesus nas pinturas religiosas. Confundi-lo com um sacerdote cristão também não é difícil, desde que se acredite que o hábito faz o monge. Curiosamente, o refrão que Cururu usou na fracassada tentativa de eleger-se deputado federal, informava que, além de ter micose nos dedos dos pés, dor na coluna, bicho-de-pé e coceira na cabeça, já fora vendedor de pastéis, entre outras coisas. E o homem foi eleito vereador com 4.643 votos, o quinto mais votado em Pelotas, em 2004. Portanto, representou legitimamente 4.642 cidadãos, além dele próprio, ou 2,42 por cento da população de Pelotas.

Os ataques aos cultos legislativos do Cururu mostraram um lado por vezes oculto da discriminação. Os adeptos a outras crenças ficaram ofendidos com a performance do Cururu. Como reagiriam se a cerimônia fosse executada por um sacerdote pertencente às igrejas majoritárias? Um que vestisse túnica branca, manipulasse objetos e pronunciasse palavras ritualísticas?

Fim de fanta, fim do pastel. O menino ainda olhava para a tela da TV, com o olhar de quem nada entendia. Um dia, provavelmente lhe ensinarão sobre os sincretismos, religiosos e políticos. E ele nada entenderá, restando-lhe a fanta e a lembrança do pastel do Mezenga, do qual nunca chegou a provar. Assim é a democracia.


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7.2.08

O inalcançável IA32769.098/768-9

Foto: Paulo Heuser

O inalcançável IA32769.098/768-9

Por Paulo Heuser


Diego sentia-se feliz por ter conseguido aquele emprego. Os cinco anos do curso de Marketing, mais os seis anos de Mestrado e Doutorado em Psicologia afinal renderam-lhe os merecidos frutos. Seu pai investiu 132 mil reais na sua educação superior, mas valeu a pena. Conseguiu em emprego que paga setecentos mangos, mais vales transporte e alimentação. Coisa rara.

A segunda-feira começou como outro dia qualquer. Diego serviu-se de café com catchupe e rosquinhas fritas e partiu para a labuta. Colocou os fones e mandou ver. Nada, nem mesmo os 11 anos de educação formal o haviam preparado para o que se seguiu nos próximos três dias. O nome do pesadelo era Indivíduo-Alvo 32769.098/768-9, ou IA32769.098/768-9, para os íntimos. Diego mastigava a rosquinha frita fria quando o sistema contatou IA32769.098/768-9. Pelo canto do olho pode verificar que o IA seria alvo da nova campanha para venda de seguro de viagem para excursões ao centro do Sol. É, aquele mesmo, o Astro Rei. Diego sentia-se particularmente orgulhoso em trabalhar para o Cartel, única organização no planeta, quiçá no Sistema Solar, a vender esse tipo de seguro. Seguro é um negócio complicado. Se você não fizer um, já sabe, algo de ruim vai lhe acontecer. Portanto, melhor fazê-lo. Este foi o argumento que Diego sempre utilizou para convencer seus clientes.

O primeiro alerta surgiu na própria segunda-feira. Algo momentâneo, transiente, pensou Diego. O IA32769.098/768-9 estava fora da rede, por alguma razão incompreensível. Algo transiente, sem dúvida. A situação permaneceu inalterada pelo resto do dia. Na terça-feira a coisa se complicou. Diego nunca enfrentara uma situação como aquela. IA32769.098/768-9 estava em local incerto e não sabido. Algo inusitado, sem dúvida. Diego não conseguiu almoçar naquela terça-feira. Olhava para a rosquinha e via o ID do IA32769.098/768-9 piscando, em vermelho, na tela. Baixou propositadamente a luminosidade do vídeo, para que ninguém ao redor percebesse. Diego trabalho até tarde na noite da terça-feira. Tentou, em vão, estabelecer contato com IA32769.098/768-9. Lá se vai minha promoção, pensou ele.
Diego não dormiu, de terça-feira para quarta. Via o ID de IA32769.098/768-9 por onde passava. Na geladeira, no espelho do banheiro e no teto do dormitório. Não agüentando mais aquela agonia, Diego prometeu a si mesmo procurar o chefe, logo que chegasse ao batente, para confessar seu primeiro fracasso profissional. Não conseguira sequer entrar em rede com o IA32769.098/768-9.

Passava pouco das oito, quando Diego entrou na sala do Chefe.

- Bom dia, meu rapaz. O que deseja?

- Chefe, serei sincero! Não consigo estabelecer contato com um alvo, IA32769.098/768-9. Estou tentado desde segunda-feira pela manhã e nada! O alvo parece estar fora do ar propositadamente. Diego engoliu em seco, ao levantar tal hipótese.

- Como? – gritou o Chefe – Quem faria tal coisa?

Diego encolheu-se visivelmente, antes de continuar:

- Bem, senhor. É o que parece.

- Que nojo! – o Chefe fazia cara de nojo, realmente.

Após passar os olhos pelos relatórios do computador da central, o Chefe deixou-se cair na poltrona imaginando como justificaria tal coisa ao Grande Chefe a Bordo.

Bem, na verdade, eu sou IA32769.098/768-9, sem sabê-lo. Fui veranear alguns dias numa praia onde o celular ficou maravilhosamente mudo. Transformou-se, com num passe de mágica, numa pequena caixinha de plástico, completamente inútil. IA32769.098/768-9 foi feliz, por alguns dias, talvez sem percebê-lo.

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6.2.08

Chevette turbo


Foto: Paulo Heuser
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Chevette turbo

Por Paulo Heuser


Esta não aconteceu em Veneza. Aconteceu em Punta Del Este, Uruguai. Mais precisamente na Rambla Cláudio William, na Parada Um da Praia Mansa, onde a Punta realmente começa a ser uma ponta.

Que o Uruguai é um país de contrastes automobilísticos, todo mundo sabe. Verdadeiros destroços móveis arrastam-se em meio aos carros modernos e caríssimos. E é exatamente na Punta que esse contraste se exacerba. O novíssimo Porsche Carrera divide a rua com o Renault 4CV – Rabo Quente – da década de 50. Caminhões Fargo, sabe-se lá de quando, caranguejam ao lado da Ferrari Qualcosa. E assim la nave va, especialmente na marina del Este.

O papo no bar ao ar livre girava em torno de um tal de Gaby Alvarez, relações públicas argentino que cobrava até 50 mil dólares para introduzir seus clientes numa das festas das celebridades que recheiam as noites da capão-canônica Punta del Este. Pois o tal RP cruzava pela Ruta 10 a 140 km/h, falando ao telefone móvel, na altura de San Ignácio, no carro dirigido pelo seu secretário particular, quando teve um faniquite e resolveu puxar o freio de mão, em protesto contra algo que seu interlocutor dizia. Provocou um acidente que matou um casal de turistas argentinos que trafegavam de moto pela pista contrária. Pois lá não há cesta básica que livre o Gaby da cadeia, nem aquelas recheadas com Taittinger e patê de foie gras. Gaby foi em cana, junto com seu secretário.

Em meio ao papo do momento e aos tim-tins dos cálices de champanha e vinho branco, um cabriolé Mercedes Benz estacionou na Rambla, chamando a atenção de quem por ali passava. Um casal de idade-inteira tripulava aquela fantástica máquina tedesca. Enquanto os tripulantes da nave atravessavam a rua, uma legião de farofeiros apressou-se em fotografar o carro, utilizando telefones móveis com câmeras. O felizardo casal, alheio ao furor que seu veículo causara, postou-se ao lado de um Chevette Hatch estacionado do outro lado da Rambla. Não era exatamente um Chevette Hatch. Fora, um dia. A ferrugem carcomera sua traseira e seu prumo lateral, transformando-o num destroço ambulante. Aquela coisa ainda era capaz de cruzar a Rambla, dar a volta pela Gorlero e passear entre os pelados de Chihuahua. Um sujeito, que ou era albino, ou pintor de paredes, desceu do naufrágio terrestre para conversar com o casal. Após rápida discussão, chegaram ao acordo comercial. O pinto albino saiu feliz da vida, a pé, contando um maço de dólares, enquanto o dono do cabriolé olhava satisfeito para seu novo Chevette-destroço.

Sem demora um jornalista do bar reconheceu Tony Fortunategaray, rico empresário argentino e novo proprietário do Chevette. A entrevista que se seguiu esclareceu algumas coisas. O entrevistador perguntou-lhe por que adquirira aquele monte de sucata e ferrugem, quando podia tripular coisas como aquela Mercedes SLR, alvo de tanta admiração de todos, lagosteiros ou farofeiros. Tony apressou-se em explicar:
- Nós estamos indo passar o verão no Brasil (pronuncia-se Brasssil) e ouvimos falar que as multas serão proporcionais ao valor do carro. Assim trocaremos a carroceria do SLR pela do Chevette.

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