31.3.08

A perda do Pantoja

Foto: Radiobras
A perda do Pantoja

Por Paulo Heuser


O Pantoja acordou com uma certeza bem presente: ninguém se recordaria daquela efeméride. Povo de memória curta. Os mais velhos já a haviam esquecido. Os mais novos estudaram o assunto nas aulas de história, dando-lhe a mesma importância que deram a revolução mexicana de 1910. A coisa entrou por um ouvido, foi lembrada durante a prova e saiu pelo outro. Os personagens daquele ato se vão, aos poucos, levados pela vida ou pela morte. Seus gritos se desvaneceram, abafados pelos discursos da nova era. Os que se vão com a vida são aqueles que ontem gritavam palavras de ordem contra os atos que hoje perpetram ou apoiam, produtos de uma dialética harmônica que os leva aos extremos, ora na esquerda, ora na direita, passando por breves momentos pelo centro.

O café da manhã em família foi igual ao de qualquer outra segunda-feira. Nem a mulher do Pantoja, nem seu três filhos fizeram qualquer menção à data. Nem sequer dentro das próprias trincheiras ela seria lembrada. Será que o Travassos, velho colega de caserna, não ligaria neste ano? Nada no jornal, nada no noticiário. Esquecimento, apenas. Ele ficou tentado a puxar o assunto, mas se conteve. Ficou apenas sentado à mesa, de xícara na mão, com o olhar perdido em algum momento do passado. Não pode deixar de observar que a história é de cada um, e cada um a constrói conforme fez ou deixou de fazer. Somente podem compartilhar essas memórias aqueles que também compartilharam a vivência dos episódios. Mesmo assim, a percepção da história também é pessoal. Quem foi herói ontem poderá vir a ser vilão amanhã, e vice-versa. É tudo questão da releitura histórica, que acaba esquecida em alguma tese que junta pó na prateleira do autor.

Pantoja fez parte da história. Não se furtou ao dever quando chamado. Ainda se lembrava dos movimentos que eclodiram pelo País, exigindo o retorno das instituições políticas àquilo que julgavam mais adequado, como o pluripartidarismo e a tal de democracia. Ele abanava a cabeça, em sinal de desaprovação, enquanto afirmava: - Eles ainda se arrependerão!

O tempo passou, a democracia retornou, e tudo acabou bem para aqueles que antes gritavam palavras de ordem. Na nova era democrática havia partidos políticos para qualquer gosto e bolso. Só o Pantoja parecia insatisfeito. Seu neto Pedrinho notou que o avô andava meio cabisbaixo. Tímido, puxou a bainha da calça do Pantoja e lhe perguntou:

- Vovô, por que você está tão triste?

- Por causa da Revolução de 64, Pedrinho. Ninguém mais se lembra dela!

- Ela era boa, Vovô?

- O povo não gostou, mas pelo menos hoje seria feriado!

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26.3.08

A santidade presumida


Foto: www.camara.gov.br

A santidade presumida

Por Paulo Heuser


Tenho ouvido com certa freqüência comentários sobre a avidez dos empresários pelo lucro. Há quem reclame deles por só pensarem nisso. Ora, se o desempenho das empresas é medido pelo balanço, e o desempenho dos executivos é medido pelo resultado da empresa, é de se esperar que eles corram como desesperados atrás dos lucros. De outra forma, poderíamos taxá-los de incompetentes, coisa que os acionistas não perdoariam. São as regras do jogo em curso.


Há duas instituições que podem limitar os ganhos das empresas. Uma é o estado, através de legislação reguladora e da política fiscal. Outra é o mercado. Se os consumidores acreditarem que os preços são exagerados, deixarão de consumir o produto, desde que este não esteja inserido em algum esquema monopolista ou oligopolista. Esta é a teoria. Na prática as coisas não são tão bonitinhas, pois o estado é regulado pelas leis que são feitas pelos representantes dos segmentos que têm interesses, digamos assim. A política fiscal, por outro lado, deixa de fora quem realmente deveria pagar os impostos. E, finalmente, os monopólios e oligopólios estão aí, em todas as áreas. O sabão Cracrá sabor cheddar é fabricado pela mesma empresa que fabrica o queijo processado Crocró sabor coco e o creme dental Crecré sabor glicerina. A matéria prima é a mesma, mudam a embalagem e o sabor. Tudo bem regulamentado e fiscalizado, hipoteticamente.


O que causa mais espanto é o pessoal que reclama da avidez dos políticos por dinheiro. A única diferença entre os empresários e os políticos é a da santidade presumida dos últimos. Muitos são empresários, bem sucedidos ou não, que abandonam sua vida privada para sacrificarem-se na vida pública, em troca da satisfação que sentem em ajudar o próximo.


Há duas instituições que limitam seus ganhos. Uma é o estado, através de legislação reguladora e da política fiscal. Outra é o mercado. Se os consumidores (eleitores) acreditarem que os preços (ganhos) são exagerados, deixarão de consumir (votar) o produto (candidato), desde que este não esteja inserido em algum esquema monopolista ou oligopolista (alianças partidárias). Esta é a teoria. Na prática as coisas não são tão bonitinhas, pois o estado é regulado pelas leis que são feitas pelos próprios políticos, que têm interesses, digamos assim. A política fiscal, novamente, deixa de fora quem realmente deveria pagar os impostos. E, finalmente, os monopólios e oligopólios estão aí, em todas as áreas. O candidato Cracrá do PATO é apoiado pelo candidato Crocró do PILA, que também apóia o candidato Crecré do PECO. A matéria prima é a mesma, mudam a embalagem e o sabor. Tudo bem regulamentado e fiscalizado, hipoteticamente.


No final de contas, o mercado vota no que ganha mais. Afinal, reclamam do quê?



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25.3.08

Meu primeiro Tigre

Meu primeiro Tigre

Por Paulo Heuser


Fala-se muito do nosso primeiro qualquer coisa. Talvez porque todo mundo lembra-se do seu primeiro relógio, seu primeiro celular, sua primeira mascote e seu primeiro carro. O primeiro é o que marca. Para muitos, o primeiro carro foi um fusca, para o Itamar, o último. O fusca foi o carro dos viajantes e dos religiosos, pois ultrapassava atoleiros e voçorocas como poucos. Também se apresentava muito resistente, pois havia pouco a se quebrar. O que lhe faltava em espaço para bagagem, lhe sobrava em versatilidade. Foi também o carro dos jovens, já que era o mais barato.

À medida que as estradas possibilitaram maiores velocidades, o fusca passou a perder terreno, pois sua tecnologia rústica começou a representar perigo para os seus ocupantes. Airbags, células de sobrevivência, barras de proteção, freios ABS e outros itens de segurança estavam ausentes no besouro. Os itens de conforto também contribuíram para o ocaso do saudoso carrinho.

Novas tecnologias e novas estradas demandaram o desenvolvimento dos itens de conforto, segurança, desempenho, economia e a preocupação com o ambiente. Os motores antigos bebiam e poluíam demais. Os mecânicos diziam que a qualidade de um carro podia ser medida pelo som produzido pelo fechar das portas. Os velhos mecânicos morreram com os fuscas, incapazes de lidar com a eletrônica embarcada dos novos carros, que não era compatível com martelos, pés-de-cabra e torqueses. Com o início do milênio vieram os carros multicombustível, que bebem o que estiver pela frente. No entanto, algo mudou, de alguns anos para cá.

A evolução dos carros não passou despercebida. Porém, poucos perceberam imediatamente a profunda alteração sofrida pelo ambiente no qual esses carros estão inseridos. As ruas e estradas voltaram à situação de anos atrás. As voçorocas invadiram as ruas e semearam buracos nas estradas - ou será o contrário? A segurança dos tripulantes melhorou muito em termos de preservação da vida em caso de acidentes. Contudo, os assaltos passaram a ser rotina para os motoristas. O sujeito pára o carro para comprar pão, e volta a pé, sem carro e sem pão. Há ainda o perigo representado pelas árvores que caem sobre os carros. Você dirá que a probabilidade de que isso aconteça é muito baixa, porém eu discordo, já que uma árvore caiu sobre o meu. O que falar dos pneus, então? Não resistem às falhas das novas ruas. Não podemos nos esquecer dos congestionamentos modernos, que deixam o motorista ouvindo músicas da moda durante horas, enquanto assiste ao cirque du soleil da vida real, com aqueles palhaços girando calotas nas esquinas. Os lavadores de pára-brisa tentam extorquir algum das mulheres desacompanhadas. Sacodem o carro delas violentamente, para depois pedirem, com cara de coitadinhos: - Tem um trocadinho – dez reais - pro pão, tia? Os saqueadores disputam a janela do carro com as promotoras de vendas e os vendedores de laranjas, bergamotas, cadeados, sofás, ou qualquer outra coisa.

Tudo isso me fez pensar muito na escolha do próximo carro. O problema pareceu insolúvel. Aparentemente não havia forma de conciliar todos os requisitos em apenas um carro. Até que eu assisti àquele documentário do History Channel. Lá estava ele, flamante e imponente. Não será meu primeiro carro, tampouco será zero. Porém, será meu primeiro Tigre. Um autêntico Königstiger II (Tigre) – leia-se tanque de guerra alemão da Segunda Guerra. Ele reúne todos os requisitos necessários, pelo menos nos aspectos segurança, conforto, durabilidade e desempenho, para que eu enfrente nossas ruas e estradas. Pode deixar um pouco a desejar no aspecto economia, pois seu motor V12 Maybach HL230 P30, desenvolvendo 700CV, não é exatamente econômico. O forte dele, mesmo, é o aspecto preocupação com o ambiente. Com o meu ambiente, pelo menos. Lá dentro estarei razoavelmente protegido contra os ladrões, a não ser os de sucata. Em último caso, sempre é possível apelar para o canhão. Como não há pára-brisa, não há o que limpar nos semáforos. Também não há janelas, espantando as promotoras do novo condomínio hiper-horizontal e os vendedores de sofás. Para o Tigre não há voçorocas ou buracos. Ele passa por cima deles. Dificilmente alguém dá uma cortada nele, nem mesmo os carros-fortes de transporte de valores. O amplo espaço interno permite o uso de um pequeno fogão e uma televisão, muito úteis nos congestionamentos. Até uma pequena biblioteca pode ser montada. O Tigre dá risadas quando as árvores caem sobre ele. Nem as marquises ele teme. Podem cair à vontade. Cintos de segurança e airbags são acessórios desnecessários no Tigre, pois ele não pára ao colidir, são os outros que se deformam. Na pior das hipóteses, ele passa por cima.
Em resumo, o Tigre tem tudo o que é necessário para um carro adaptado às nossas novas ruas e estradas. Talvez um pouco barulhento e fumarento. Com certeza, nunca me esquecerei do meu primeiro Tigre.



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19.3.08

A saga dos Yamamoto-Usongo

Gravura: Wikipedia
A saga dos Yamamoto-Usongo

Por Paulo Heuser


O nome do filme era para ser A saga dos Bolognese. Porém, o andamento do projeto modificou mais do que apenas o nome. O renomado cineasta italiano Amadeo Chiacchiere havia lido uma tradução para o italiano do romance homônimo, escrito pelo neto de um imigrante, que veio ao Brasil. O livro descrevia o sofrimento dos imigrantes italianos que embarcaram no navio Duca di Galliera, em Gênova, Ligúria, no final do Século XIX, até chegarem ao Rio de Janeiro. Sabedor da predileção dos brasileiros pelas novelas, e dos italianos pelas novelas brasileiras, Amadeo resolveu montar uma produção ítalo-brasileira, passando para a tela o que estava no livro.

O cineasta ficou encantado quando descobriu que havia incentivos à cultura que poderiam financiar parte da obra. Uma grande rede de televisão prontificou-se imediatamente para participar do projeto. O diretor de novelas Caio Durante Sena foi designado pela rede televisiva para assistir Amadeo, que começou a seleção do elenco logo após os trâmites burocrático-financeiros de praxe.

Amadeo imaginou um casal de italianos típicos do norte da Itália, Carlo e Palmira, como tantos que aportaram no Brasil, a procura de uma vida menos sofrida para si e para os quatro filhos que os acompanharam na longa e penosa viagem. Vieram movidos pela esperança de encontrar uma nova terra prometida. A seleção dos atores procurou um homem moreno e uma mulher loira, que representassem bem o biótipo dos imigrantes daquela época. Da mesma forma selecionariam os atores mirins, para o papel dos filhos. Amadeu escolheu o ator italiano Gianfrancesco Faggioli, para o papel de Carlo Bolognese, e a atriz brasileira Camila Moranga, com ascendência italiana por parte da mãe adotiva, para o papel de Palmira Bolognese, nascida Milanese. A primeira indicação de que não fora uma boa escolha partiu de Caio.

- Amadeo, acredito que sua escolha do elenco foi fantástica e profissional, porém há um pequeno problema técnico. O pessoal do financiamento está achando que o filme é discriminatório.

- Como discriminatório? Escolhi um ator italiano e uma atriz brasileira! Isto é discriminação?

- Não, tecnicamente. Porém, há os efeitos subjetivos da ausência de outras culturas em um filme patrocinado pelo órgão que defende a igualdade étnica.

- É um filme sobre um casal de italianos! Espera-se que eles tenham cara de italianos!

- Sim, hipoteticamente. Porém, em nome da integração, é recomendável que as outras culturas também sejam contempladas.

- Quais etnias?

- Veja, há o problema do índio. Não há nenhum índio no filme, pelo menos não na partida e na viagem.

- Como, se os índios estavam no Brasil?

- Sim, tecnicamente. Porém, seria interessante colocar pelo menos um ator ou uma atriz índia no filme.

De nada serviiram os argumentos que Amadeo utilizou. Sem índio, sem grana. Acabou colocando uma atriz índia no papel de filha do casal.

- Amadeo, há o problema da igualdade racial. Será necessário colocar um negro ou uma negra no elenco que virá a bordo.

- Mas como, não havia negros na Itália! De onde teriam vindo?

- Ora, o navio não fez escalas?

- Fez, em Tanger, no Marrocos, e em Las Palmas, nas Canárias. De onde teriam saído os negros?

- Bem, crie uma escala no Congo ou na Nigéria.

Assim, Palmira virou Usongo. Carlo viajaria com a esposa congolesa. Porém, os problemas ainda não haviam acabado. O financiador não aprovou o projeto porque outras etnias não haviam sido incluídas. A partir de então, Carlo, o italiano, viajou com a esposa Usongo, congolesa, o filho alemão Heinz, a filha polonesa Wyborowa, o pequeno russo Mikail e a menor de todos, a índia Maiara. Viajaria, pois alguém percebeu que faltava um japonês. Quem viajou, na verdade, foi o jovem Yamamoto, com sua esposa Usongo, e seus filhos Heinz, Wyborowa, Mikail e Maiara. Uma típica família italiana. Foi então que o Amadeo enfartou. Com razão, exigiu que pelo menos um dos personagens fosse italiano. Já nem reclamava mais do fato de o navio seguir pela rota Gênova, Tóquio, Odessa, Gdansk, Hamburgo, Tanger, Las Palmas, Kinshasa e Rio de Janeiro. Rota bastante inverossímil, porém a família era muito mais. Uma Torre de Babel a bordo de uma estranha Arca de Noé étnica. O financiador concordou com a inclusão do personagem italiano. Havia de ser algum papel destacado.

Caio Durante Sena resolveu o problema da inclusão do personagem italiano. Incluiu a Nonna Lucia, mãe do Yamamoto. E o filme finalmente foi rodado, apesar do protesto das colônias libanesa, coreana, chinesa, turca, grega e suíça. A cena mais emocionante é a da chegada ao Rio, quando avistam a baía. Yamamoto abraça a mãe, duas vezes maior do que ele, e grita: Mama, che bello! O filme acabou levando o prêmio de melhor absurdo estrangeiro, no Festival Dromedário de Ouro.


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18.3.08

Telequaresma



Bacalhau - Wikipedia


Telequaresma

Por Paulo Heuser


Mateus foi educado em Chattanooga, Tennessee, capital mundial da gagueira. Uma conseqüência óbvia da educação naquele país foi o empreendedorismo que tomou conta dele. A volta ao País foi triunfal, de canudo na mão, com MBA, MSC, PHD, MHO, CIF, AVC, FXU e VUE. Mateus desprezou ofertas de emprego dos mais respeitados conglomerados econômicos daqui e de lá. O rapaz era um empreendedor nato.

Empreendimentos bem sucedidos requerem pesquisa de mercado, coisa que Mateus tinha bem em mente. Outra coisa que ele aprendeu lá em Chattanooga, durante seu AVC em Marketing, foi que o maior inimigo de um empreendimento pode ser a cultura de povo. Muitos empreendedores fracassaram ao desprezar a tradição local. Os estudantes passam anos comendo Garbagys – salgadinhos de litotripsina transanodisada ß -, lá em Chattanooga, e depois tentam vendê-los aqui. O pessoal daqui prefere torresminho, amendoim ou caju. Um colega nipônico lançou sashimi de peru, marca Tencsguiven, no Japão, fracassando igualmente.

Mark Hethero foi o orientador do FXU do Mateus, que defendeu a dissertação A destruição sistêmica das tradições culturais enraigadas como ferramenta mercadológica alavancadora para a estruturação de nichos estratificados dos mercados globalizados nas comunidades neoceltas autônomas. Mateus provou que seria possível fazer com que os escoceses trocassem seus tradicionais kilts – saiotes xadrez – por calças em padrões florais, desde que convencidos de que seus testículos emanavam o gás CO2, causador do efeito estufa. Calças florais fariam a absorção imediata do gás.

Mateus já havia percebido, na prática, o que aprendera na teoria. Para destruir uma cultura era necessário começar por baixo, ou seja, pelas crianças. Elas ainda não internalizaram alguns comportamentos culturais, mantendo-se mais volúveis. Dessa forma um egresso de Chattanooga conseguiu tornar simples hambúrgueres no sonho de consumo de todas as crianças, bastando acrescentar brinquedos e embalagens diferenciadas. À medida que cresciam, as crianças transformaram-se em jovens, e estes em adultos que passaram a levar seus filhos para o templo dos hambúrgueres com embalagens diferenciadas. Estabeleceu-se o círculo vicioso.

A cultura local já estava toda desvirtuada. O marketing já havia transformado o Carnaval em festa de peão boiadeiro. O Natal virou um festival de vendas. O Greenpeace protestou contra a venda de ovos de chocolate da Páscoa, talvez temeroso de que os coelhos entrassem em extinção. Nenhum evento escapou da ação dos novos vendilhões do templo. Até a Sexta-Feira Santa, ou da Paixão, foi desvirtuada, mesmo não sendo uma efeméride festiva, muito antes pelo contrário. O dia de jejum e da abstinência transformou-se em data para refestelarem-se em orgias gastronômicas. Mateus percebeu a oportunidade apresentada pela mudança de hábito quando tentou comprar bacalhau na semana da Páscoa. Uma multidão impressionante invadia o mercado, engalfinhando-se em luta corpórea atrás dos peixes para qualquer gosto ou desgosto. Uma senhora que exigia peixe fresco, ao lado dos viveiros montados do lado de fora, acabou levando uma traíra viva, que se apressou em devorar a sacola, debatendo-se pela rua.

Mateus criou um novo produto, aproveitando a oportunidade: a Telequaresma. Ele vende kits para a Sexta-Feira, através de tele-entrega. Entrega caixas com conteúdos a escolha do freguês, inclusive o Abstinência Plus, contendo pão e água da bica. É o mais caro de todos.

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15.3.08

Bienvenidos a España


Foto: Wikipedia
Bienvenidos a España

Por Paulo Heuser


Não é de hoje que os brasileiros são barrados no aeroporto de Barajas, sem nenhuma tentativa de armar um trocadilho. Há dois anos já eram seis por dia os mandados de volta. Hoje, são 15. As causas para o aumento são diversas. Os EUA não se apresentam mais como modelo de terra prometida para os emigrantes tupiniquins. A construção civil, destino da maior parte dos nossos emigrantes, está desmoronando por lá. Hoje muitos brasileiros estão fugindo de volta. Por outro lado, Madri passou a ser uma opção para os latino-americanos que desejam chegar a Londres ou Lisboa, onde há maior rigor no controle da imigração. Os ingleses foram invadidos por hordas de estrangeiros que entram no Espaço Schengen – países da União Européia que derrubaram suas fronteiras comuns – por outras capitais. Uma vez em Madri, onde a fiscalização imigratória antes não era tão rígida, tomam vôos internos a Europa, livres de outros embaraços. Os demais países chiaram e a Espanha teve de endurecer os controles de imigração.

Endurecer significa realmente endurecer, na Espanha. Agentes de imigração não são simpáticos em lugar nenhum, pois a cara feia faz parte do trabalho deles. Porém, os agentes madrilenhos de Barajas sabem levar essa característica ao extremo. Eles xingam os turista e xingam-se entre si. Lembram tiranossauros de antigos filmes B, que devoravam homens, cachorros, palmeiras e a si próprios, em meio a grande algazarra. O mocinho cavernoso sempre salvava a mocinha cavernosa enquanto os ditos cujos se distraíam devorando-se mutuamente. Esse truque não funciona em Barajas, pois mocinho e mocinha necessitam do carimbo no passaporte, chamando a atenção dos tiranossauros. Xingar parece fazer parte da cultura deles, mesmo fora do aeroporto. É o jeito deles. Meu amigo Zé presenciou a cena inusitada protagonizada pelo maitre do restaurante de um hotel quatro estrelas em Madri, que gritava com os clientes, mandando-os embora, porque era muito tarde. Um brasileiro descobriu que gritando da mesma forma ambos se entendiam. É tudo uma questão de se entrar no clima. Contudo, essa atitude não é muito inteligente quando se trata da imigração, no aeroporto. Entrar na Espanha sem xingamentos é fácil, basta entrar por Lisboa ou Paris.

É injusto dizer que todo mundo naquele aeroporto é antipático. O Zé viu uma mulher desabar na escada rolante, espalhando bagagens e sacolas por todos os lados. Prontamente, um grupo de franceses juntou seus pertences e os devolveu à proprietária, prontificando-se a levá-la ao atendimento médico. O Zé também conheceu um motorista de van colombiano muito simpático. O homem tem na ponta da língua o índice de pontualidade de todas as companhias aéreas que operam em Barajas. Ele leva os passageiros que perderam conexões ao hotel. Ainda no aeroporto, havia um atendente do balcão da companhia aérea argentina que abriu um largo sorriso ao ler o sobrenome do Zé e perguntou-lhe se falava alemão. Um casal de senegaleses que arranhavam português também lhe pareceu muito simpático e sorridente. Ou seja, muito do que se fala de Barajas é exagero.


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13.3.08

Alucinações culinárias


Foto: Wikipedia
Alucinações culinárias

Por Paulo Heuser


Quando jovem, faz tanto tempo, conheci um rapaz que morava numa república de estudantes lá pela Francisco Ferrer, no Bairro Bom Fim. Ele fazia um estilo bicho-grilo, muito comum na época. Hoje, alguns ainda são vistos quando alguém ameaça seus redutos nos porões universitários, como a antológica Resistoca. É mais fácil depor o Hugo Chavez do que retirar os bichos-grilos de lá. Enfim, o rapaz era viciado em orégano. Jurava que fazia incríveis viagens psicodélicas quando inspirava a fumaça gerada pelo orégano que queimava em um cinzeiro, enquanto, enrolado em um lenço, sentava-se numa daquelas posições indianas e entoava mantras ao som de Genesis ou Pink Floyd. Os demais também viajavam, jurando encontrar-se numa pizzaria. O prédio todo cheirava a orégano.

Ontem li sobre as propriedades alucinógenas da sálvia, aquela que plantamos no fundo do quintal ou compramos na fruteira. Sim, isso mesmo, aquele tempero ancestral. Dizem hoje que é a mais potente droga alucinógena natural. Dá barato orgânico. A rapaziada anda fumando bagulho de sálvia. Vários estados norte-americanos já pensam em proibir a posse de sálvia, como proíbem a posse de maconha. Compram e vendem donuts livremente, porém serão presos se carregarem sálvia. Isso explica o gosto culinário deles.

Há um aspecto desta história que me assusta. Os salvieiros juram que os efeitos alucinógenos também podem ser sentidos quando mastigam as folhas da sálvia. Sou obrigado a confessar, antes que o consumo dela seja considerado crime, que sou um adicto da sálvia. Mastigo sálvia! Sobre pizza – a mais clássica delas -, corniccione ou bruschetta. Meu consolo, é que não sou o único adicto da sálvia. Todos italianos são meus comparsas do futuro crime de mastigar a nova velha erva maldita. Camões poderia chamá-la “a última erva do Lácio”.

Amsterdã verá nova onda de empreendimentos no mercado de bares temáticos? Ou os que já vendem outras ervas servirão pizzas recheadas com sálvia, coisa que será proibida em outros países mais altos? Cultivarão o péssimo hábito de fumar enquanto comem. A pizza da casa poderá ser a meia canábis, meia sálvia, com orégano sobre tudo. Para beber, uma coca. Barato blended, com drogas para qualquer gosto.

As colunas policiais dos jornais deverão se adaptar. Manchetes como “Apreendido carregamento de 100kg de sálvia”, ou “Descoberta pizzaria!”, serão comuns. E o Datena gritará: - Cadê o poder público nessa hora em que esses vagabundos enchem o povo de sálvia? As mamães orientarão os filhos a nunca aceitarem pizzas de estranhos, na entrada do colégio.

Qual será a nova vítima da ciência? Temo pelo manjericão.


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11.3.08

Perpetua elettorale



Foto: Paulo Heuser



Perpetua elettorale

Por Paulo Heuser


Gianfranco Anarchico perambula pelo Alto da Bronze, no centro velho da cidade. Perambula, pois parece não ter destino definido. Simpático, lá pela casa dos 70, usa barba e cabelos longos grisalhos presos em forma de rabo de cavalo. As bermudas largas acentuam a magreza. Seus olhos vivos não deixam nada fugir, apesar das grossas lentes dos óculos de armação redonda. Ele não perde oportunidade para uma prosa com qualquer um que passe, conhecido ou não. Gian – como é conhecido por lá – nasceu na Toscana, onde seu pai militava em um movimento anarquista. Gian seguiu os passos do pai e foi convidado pelo PAIS – Partido Anarchista Independente Sectário – a vir ao Brasil para fundar uma célula local entre imigrantes daquele país. Apesar de o PAIS estar ligado a uma seita que cultuava Baco, não conseguiram mais adesões, senão aquelas dos dois membros já filiados. Mesmo após o fracasso, que até poderia ser encarado como sucesso, pois o partido manteve-se acéfalo e anárquico, Gian ficou por aqui e abriu uma gráfica de fundo de quintal para a fabricação de brindes.

Gian descia a Rua da Praia, na direção do Gasômetro, quando passou pelo Bar da Elvira, meio escondido entre os demais. Dois sujeitos que ocupavam a parte externa do bar - os dois degraus junto à soleira da porta - discutiam acaloradamente um dos assuntos do momento: se as obras públicas são eleitoreiras. Um rapaz com ares de estudante de Administração, com ênfase em Desestatização do Estado, afirmava que a Mãe do PAC – Ministra Dilma Rousseff – seria a candidata à sucessão do Presidente Lula, e que o plano seria puramente eleitoreiro. O outro, com ares de estudante de Governança, com ênfase no Terceiro Setor, rebatia afirmando que havia eleições demais, tornando qualquer coisa eleitoreira, pelo menos na aparência.

Duas pessoas formam um comitê. Três, um comício – pensou Gian, enquanto acomodava-se entre os dois, no segundo degrau.

- Ciao, ragazzi! Sabem que vocês dois têm razão! – disparou ele, sem convite. Essa sempre foi uma forma estratégica para entrar numa conversa sem ser expulso imediatamente. Contentava metade de cada lado. E continuou, antes que se refizessem da surpresa:

- Meu falecido pai, Armando, defendia a renovação constante do parlamento, coisa que meus conterrâneos parecem levar a sério. – referindo-se à nova queda do parlamento italiano. Antes que os rapazes pudessem esboçar qualquer reação, Dona Elvira já havia alcançado um copo de requeijão light – ainda com o rótulo – para que Gian se servisse de meio copo de cada cerveja. Novamente, não tomou partido. Tomou duas marcas de cerveja, misturadas, elogiando ambas.

- O poder não pode ser exercido por tanto tempo, mesmo que emanado do povo, pois não há nada mais corrupto que o povo acomodado. Já em 1959, defendíamos as eleições anuais, em agosto, mês que não tem Natal, Carnaval, Páscoa, Ano Novo ou qualquer outra data que venda brindes e ocupe o setor de serviços. Nem casamentos há em agosto. O que fazem os fotógrafos e os promotores de eventos? As eleições anuais movimentariam a economia e reduziriam essa sensação de obra eleitoreira. Logo poderíamos implantar as eleições em 12 turnos. Já imaginaram o salto de qualidade? O candidato assumiria representatividade nunca dantes vista.

Dona Elvira já ouvira essa história um sem número de vezes. Mudava apenas a introdução, conforme o papo que rolava no momento da chegada do Gian. Ele fez sinal para que ela trouxesse mais duas cervejas para os rapazes. Um deles tentou estabelecer um diálogo:

- Mas, isso vai virar bagunça...

- Bagunça não, mobilidade sociopolítica desprovida de hierarquia institucionalizada. Um novo e dinâmico sistema de perpetuação do poder do povo. Já pensávamos nele em 1959.

Gian serviu-se de mais meio copo de cada cerveja. Olhou para os dois incrédulos e involuntários fornecedores de cerveja blended e continuou o diálogo com ares de monólogo:

- Após o primeiro ano poderíamos transformar os turnos mensais em novas eleições. Então, seria fácil alcançarmos nosso objetivo final.

Nem os rapazes, nem Dona Elvira, figuradamente careca de tanto conhecê-lo, ousaram perguntar-lhe sobre esse objetivo final. O final soou como terminal. Mesmo assim, Gian respondeu a pergunta que não fora feita:

- Meu falecido pai, Armando, sonhava com a continua perpetua elettorale – eleição perpétua contínua.

Gian seguiu caminho, sem destino, sonhando com contínuos e eternos comícios, enquanto os dois rapazes permaneceram sentados em silêncio. Subitamente, perceberam que a distância entre suas idéias não era assim tão grande, afinal.

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10.3.08

A casa do Nestor


Foto: Paulo Heuser
A casa do Nestor

Por Paulo Heuser


Na Praça da Alfândega ocorre um novo tipo de adoção da coisa pública pela iniciativa privada, provavelmente motivada pelas placas que oferecem áreas à adoção. Alguns usuários da praça usam a coisa pública como privada, literalmente. Uma das áreas já foi adotada pelo Nestor. Ele foi membro do MSP – Movimento dos Sem Praça – e pedia esmolas ao lado da loja do mel. Hoje, graças à adoção, Nestor já tem seu cantinho, junto ao monumento a só Deus sabe quem. Deus e o Nestor, pois o local foi cercado e tornou-se impossível ler o que restou da placa na base do busto. Nestor foi chegando, como quem não quer nada, e ficou. Montou a cama e organizou a cozinha. Tudo ao ar livre. Quem tem casa, quer casar, reza uma variante do célebre ditado. Logo uma moça interessou-se pelo Nestor e formaram um par. Hoje estão lá, felizes, pois o quintal é grande. Quem sabe, poderão até plantar uma horta?

O Nestor já conta com telefone. Há um orelhão próximo da sua nova morada. Ontem o telefone tocou. Nestor apressou-se em atender, pois poderia se tratar de algo urgente.

- Alô?

- Boa tarde! Eu gostaria de falar com o Seu Nestor.

- É ele!

- Como vai o senhor?

- Não tenho queixa enquanto não chover.

- Pois então, Seu Nestor. Sou consultora do Banco Basco, em nome de quem gostaria lhe fazer uma oferta.

- Quer me dar dinheiro?

- Pois então, Seu Nestor, nós poderíamos estar conferindo algumas informações, por segurança?

- Sim, se é para me dar dinheiro, pode mandar...

- Pois então, Seu Nestor, seu endereço é Praça da Alfândega. E o número, qual seria?

- É no lado do monumento do Tiozão, aquele que fica perto daquela mulher gorda. Não tem número. É só perguntar para as moças aqui ao lado, elas sabem.

- São secretárias?

- Bem, não é bem isso, mas elas sabem.

- O senhor é casado, Seu Nestor?

- Hoje sou, tem a Fulana, que se chegou por aqui...

- E o nome dela seria?

- Sei lá o nome dela, chamo de Fulana. Nos juntamos os trapos há apenas uma semana.

- Pois então, Seu Nestor. O Banco Basco estará lhe fazendo uma proposta...

- Se é dinheiro, manda.

- Pois então, Seu Nestor. O Banco Basco estará lhe oferecendo um seguro residencial com título de capitalização premiado. Três produtos em um só!

- Droga, se eu tivesse casa, não moraria na praça!

- Pois então, Seu Nestor. O senhor mencionou que estaria morando junto a um monumento.

- Sim, e daí?

- O senhor não estaria interessado no nosso Seguro Patrimonial Histórico-Cultural com título de capitalização premiado?



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9.3.08

Esporte espetacular

Foto: Wikipedia
Esporte espetacular

Por Paulo Heuser


Agnelídio levanta cedo nos domingos. Esse negócio de dormir até não poder mais não é com ele. Após uma semana mofando no escritório, a única coisa que ele deseja é o fim de semana dedicado ao esporte. Essa atividade faz parte da história e da evolução humana. Fomos caçadores, guerreiros, e terminamos como almofadinhas de escritórios climatizados – ele acredita. O espírito olímpico sempre foi chama viva na alma do Agnelídio.

Nem é necessário despertador para que esse atleta dominical caia da cama. Ele sempre acorda às 6h10, faça chuva, faça sol, inverno ou verão, Natal ou Carnaval. Já houve casos em que ele varou noite numa festa e chegou em casa às 06h20. Compensou com dez minutos a mais de esporte. Agnelídio acorda tão cedo porque cumpre um ritual. Não abre mão dele. Após espreguiçar-se por alguns momentos, levanta-se e vai à cozinha. Esporte exige um desjejum especial e reforçado. Ele não abre mão da vitamina esportiva especial, receita desenvolvida ao longo de anos e anos de práticas desportivas. Ele joga dois ovos crus inteiros, com as cascas, no liquidificador, e acrescenta um litro de gueitoreide, uma lata de patê de fígado de galinha – sem a lata -, um rim de porco – assado – e o conteúdo de uma lata de sardinhas no óleo comestível. Bate bem a coisa, até obter consistência indefinível, algo entre o líquido e o pastoso. Então, vem o segredo que faz toda a diferença. O elixir deve ser bebido no bico, diretamente do copo do liquidificador, se for possível desgrudá-lo de lá. O desjejum do Agnelídio é definitivamente frugal. Nada de pão ou qualquer sólido, apenas a vitamina desportiva. Enquanto manda a vitamina abaixo, ele dá uma lida na seção de esportes do jornal. Seu negócio dominical é o esporte, definitivamente.

Para Agnelídio, há apenas um esporte: o futebol. Ele respira e transpira futebol. Ele chama as outras modalidades desportivas de brinquedos. Brincam de jogar vôlei, basquete e tênis, segundo ele. Futebol sim, isso é esporte. Reúne multidões aos domingos, seja nos campinhos de peladas, seja nos estádios, templos máximos da modalidade. Lá que vive o verdadeiro espírito olímpico.

No início, a patroa foi contra as domingadas esportivas do Agnelídio. – Você ainda vai morrer disso! – gritava ela. Até que ela assistiu a um programa na TV sobre a conveniência de praticar esportes para manter a boa forma. Ele estava longe da boa forma, mais uma razão para mergulhar fundo no futebol. – Só não vá ter um tédio (piripaque)! – ela passou a gritar. É verdade que Agnelídio mudou um pouco os hábitos, com o passar do tempo. O namorado da coletora de palpites para a loteria paraestatal, que estuda medicina, contou-lhe que não é recomendável a prática de exercícios logo após acordar. Tem a ver com as plaquetas do sangue, que o tornariam mais denso, facilitando os piripaques. Desde então o Agnelídio dá um tempo antes do início da jornada desportiva dominical. Lá pelas oito horas, já vitaminado e com a densidade do sangue correta, ele prepara o equipamento. Estende sobre a cama o suporte atlético, as meias, calção, camiseta do timão e pega o par de chuteiras novas. Veste-se lentamente, com o mesmo cuidado que um astronauta veste seu macacão espacial. Verifica cada detalhe, pois pequenas dobras podem causar grandes bolhas. Chega a hora do alongamento. Panturrilhas, adutores e todos íceps do corpo recebem atenção especial.

Clarins imaginários soam pela casa quando Agnelídio parte em direção ao topo do Olimpo, apelido que a patroa deu ao sofá da sala, onde ele ficará estarrado pelo resto do domingo, assistindo a todos programas sobre futebol.


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3.3.08

27 anos


Esta é a tricentésima sexagésima quinta postagem.


Foto: Paulo Heuser
27 anos

Por Paulo Heuser


Estou francamente desolado. A globalização atropelou-me novamente. O pão daquela loja do supermercado foi padronizado com os demais da rede. Virou pão comum, como borracha. O que me atraía àquela loja era o pão, uma baguete quase francesa. Aparência e embalagem permaneceram as mesmas. A casca crocante, no entanto, foi-se com a venda da loja. Caiu o último bastião daqueles que sonhavam com um pão decente. Inscreveram o padeiro num curso de técnicas para fabricar pães sem graça. Pães para consumo com geléias industrializadas e margarinas fabricadas a partir de biocombustíveis. Da refinaria à mesa. Logo lançarão o pão de mamona, subproduto da moderna tecnologia para substituição dos comestíveis pelos combustíveis. Tornaremos-nos fósseis, afinal.

Outra coisa que me incomodou foi o pagamento de contas nas caixas do supermercado. A escolha do caixa, antes pautada pela quantidade de coisas que os da frente levavam no carrinho, transformou-se em algo semelhante à escolha das filas nos bancos. Somente a primeira vista, diga-se de passagem. Nos bancos devemos evitar as filas onde há jovens vestindo bermudas e com capacetes na mão. São potenciais office boys portadores de pastas recheadas com contas de difícil pagamento, que demandam inúmeros cálculos e consultas. Já nos supermercados, os potenciais perigos são outros. Cuidado com as senhoras idosas que carregam apenas um litro de leite e um pacote de bobs, no cesto de compras. Alguns dirão que não se vendem mais bobs no supermercado. Outros irão além, dizendo que nem sequer sabem o que são bobs. Ora, bobs são rolos de cabelo, dispositivos do tempo em que as mulheres e alguns homens - de extrema vanguarda - gostavam de ondular os cabelos. Depois alguém juntou dois ferros de passar e colocou uma dobradiça na base deles, inventando a tal de chapinha para alisar cabelos por incineramento.

Por trás daquela aparentemente inofensiva combinação de apenas dois itens pode haver uma bolsa com todas as contas do mês. Contas que serão pagas lá, na sua frente. A funcionária empacará a cada nova conta, chamando recursivamente um supervisor que consultará o gerente, que consultará o escritório central, etc. E você ficara lá parado, enquanto todos os demais clientes passam pelos outros caixas. Pagas as contas, finalmente, você será atendido. Não, faltou registrar os bobs. Ao passá-los frente ao leitor do código de barras, este entenderá que aquelas inúmeras linhas que se repetem cilindricamente são códigos de barra. Os mesmos códigos da maçã importada do Zimbábue. O impressor do caixa passará a cuspir rolos de papel com registro de maçãs, muitas maçãs. Ao chegar nos R$ 192,13 de maçãs, a caixa concluirá, após bocejar, que algo está vagamente errado, pois ela não pesou nenhuma maçã. Então consultará o supervisor que consultará o gerente, que consultará o escritório central, etc. O escritório mandará reiniciar o terminal do caixa que, mesmo assim, continuará expelindo lançamentos de vendas de maçãs. A você restará procurar outro caixa. Se for esperto, procurará uma das maiores filas – são as únicas que andam.

No sábado passado observei que o supermercado aderiu à campanha pró-obediência à lei que proíbe a venda de bebidas alcoólicas para menores de idade. Iniciativa louvável! Já havia passado uma dúzia de coisas quando o terminal parou, logo após passar o pacote de cervejas. Recusava-se teimosamente a registrar outros itens. O funcionário do caixa teve um lampejo repentino. Lembrou-se da obrigatoriedade de confirmar a maioridade do cliente, toda vez que o item selecionado é alguma bebida alcoólica. Ele digitou algo e o terminal seguiu em frente, sem registrar mais maçãs. Ao ouvir a explicação do rapaz, eu comentei, em tom de brincadeira, que era fácil constatarem que tenho mais de 18 anos.

- Dezoito não! São 27. – respondeu-me o caixa.

- Por que 27?

- Sei lá, eles pedem para verificarmos se o cliente aparenta ter mais de 27 anos de idade.

Fiquei encasquetado com os 27. Haverá estado norte-americano onde a maioridade só se dá aos 27? Seria uma margem de 50% para compensação de falhas de julgamento? Ou uma estratégia de marketing calcada na felicidade de alguém de mais idade que é confundido com alguém menor de 18 anos? As moças adoram. Imagine o diálogo:

- Lamento, senhorita, mas tenho ordens de não vender bebidas alcoólicas para menores!

- Não é senhorita, é senhora!

- Desculpe-me, por favor. Eu nunca poderia imaginar que alguém casasse tão moça...

- Tampouco sou menor de idade!

- Ah, deixe disso, não me engana...

- Pois bem, veja minha identidade!

- Nossa, que coisa incrível, como a senhorita, digo, senhora consegue manter essa incrível jovialidade? Eu não lhe daria mais do que 17!

- Ora, também não exagere...
.
- Não estou exagerando, senhora. Se a senhora levar 12 rolos de papel higiênico Maciez Terminal, na promoção, aí sim, poderei exagerar. Não lhe darei mais do que 15!

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1.3.08

Por detrás dos muros

Foto: Paulo Heuser
Por detrás dos muros

Por Paulo Heuser


Muros dividem. Ou não, dirão os neodialéticos de plantão. Os muros protegeram contra os invasores de outros feudos. Eram muros altos, do alto dos quais jogavam óleo fervente, chumbo derretido, pedras e outras coisas para rechaçar os inimigos. Os muros dos anos de ouro – décadas de 50 e 60 – desceram ao metro, ou próximo disto. Eram mais decorativos do que funcionais. Impediam a fuga das galinhas e dos cachorros. Estabeleciam também um limite de propriedade. Para passarem dali, deveriam bater palmas e gritar o ó de casa. Por alguma razão qualquer, os muros que separavam dos terrenos lindeiros eram mais altos do que os muros que separavam o terreno da rua. Lembro-me de um muro que foi construído porque meu cachorro lingüiça adorava galinhas e esponjas para lavar copos, aquelas com cabo de madeira. O ditado que diz que a galinha do vizinho é mais gorda do que a nossa vale também para os cães lingüiças. Estendido para as esponjas. Restava sob a sebe um rastro de pedaços de espuma e penas.

Os muros daquela época fizeram parte de uma rede de comunicação de notícias: a WallNews. Tudo iniciava com a Frau Seifenfresser, moradora da esquina. Ela ouvia o rádio, o dia inteiro. O primeiro acorde do jingle do Repórter Esso tirava a Frau daquele transe de quem realiza tarefas repetitivas, como depenar a galinha para o almoço. Ela ouvia as notícias e corria para o muro do fundo, do lado direito. A campainha de muro dos fundos era bater palmas e gritar o ó vizinha. Estabelecida a comunicação, a nova era transmitida, aos gritos, por sobre o muro. A vizinha, por sua vez, difundia as notícias para os terrenos vizinhos. Estabelecia-se a Wallnews.

Contavam que na noite de seis de março de 1937 o rádio da Frau, então Freulein (senhorita) noticiou a queda do Dirigível Hindenburg, em Nova Jérsei. Seja quem fosse esse tal de Hindenburg, deveria ser alguém importante. Mesmo sob intensa chuva, Frau Seifenfresser postou-se ao lado do muro direito para propagar a nova. O ó vizinha mostrou-se infrutífero, pois ninguém atendia. A vizinha fora à casa da Dona Ata, para trocar figada por ovos. A Frau teve de dirigir-se ao muro do lado esquerdo, mesmo a contragosto. Não que ela não gostasse da Viúva Racketenbauer. O problema é que ela era meio surda, alterando o texto das notícias retransmitidas. Essa surdez provocara a instalação de um sino, ao lado do muro. A Frau puxava a corda e toda a quadra sabia que lá vinham novas.

- Caiu o Hindenburg, em Nova Jérsei! – gritou a Frau Seifenfresser.

A Viúva ouviu, digeriu a nova, e arrastou-se até o muro seguinte, batendo palmas e gritando outro ó vizinha. Já alertada pelo sino, Dona Frida estava do outro lado do muro, aguardando o ó vizinha da Viúva Racketenbauer. Para avisá-la que já ouvira a notícia, Dona Frida costumava jogar de volta pequenas frutas, como butiás ou jabuticabas. Pega no contra-pé, durante uma entressafra, ela apelou para a única fruta disponível: o abacate. A Viúva Racketenbauer ganhou óculos novos e alguns hematomas no rosto. E assim a notícia correu muros, até chegar na casa da esquina oposta. Lá, após ouvir atentamente, Dona Fliegenjägerin gritou para o marido:

- Um tal de Linden morreu, em Novo Hamburgo!

Nenhuma rede é perfeita. Sempre há a possibilidade de ocorrer algum ruído na linha, durante a propagação das notícias sobre os muros. Contudo, aqueles tempos se foram. Os descendentes da Dona Frida, da Viúva Racketenbauer, da Frau Seifenfresser e da Dona Fliegenjägerin trabalham em modernos escritórios, onde há telefones em todas as mesas e acesso a Internet. A notícia está por toda parte, tropeça-se nela, principalmente quando deixam algum cabo solto sobre o piso. Os cabos também já se tornaram coisas do passado, substituídos por todas essas tecnologias de acesso sem fio a Internet. Os viciados nessas coisas já podem levar seus laptops ao toalete!

Ana - neta da Frau Seifenfresser – trabalha num moderno ambiente desses. É uma viciada em notícias, como foi sua avó. Mesmo sem percebê-lo, Ana segue exatamente a rotina da sua ancestral. Quando salta alguma nova notícia, na janela do canto da tela do seu computador, interrompe sua rotina – que não é a de depenar galinhas para o almoço – e grita por sobre a divisória da sua baia de trabalho:
- A vaca inglesa enlouqueceu!

A neta da Viúva Racketenbauer, sentada do outro lado da divisória, apesar de pouco entender, devido ao problema hereditário de audição, apenas responde:

- Não, sim! É aquela coisa, sabe como é... – Comentário que serve para qualquer interpretação.

Os muros continuam aí. Mudaram de nome, porém ainda servem de suporte às redes de notícias. Hoje, nos modernos escritórios, há as ChiqueirinhoNews.

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