28.4.08

390 - Sobe!

Imagem: NASA
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Sobe!

Por Paulo Heuser


O Zé chegava em casa, no típico fim de dia. Desviou dos cocôs de cachorro, no passeio, sorriu para o porteiro, verificou a caixa de correio e entrou no elevador. Quando pressionou o botão do quinto andar, a luz acendeu, e logo apagou. - Droga de elevador - pensou ele. Nova tentativa, mesmo resultado. A luz vermelha acendia, para apagar em seguida. Praguejando, ele insistiu. Ficou apertando o botão, até que o elevador entendeu sua intenção de subir. Com a luz do botão apagada, que fosse. O elevador finalmente se moveu. Cinco andares não era muito. Zé acompanhou indiferente a mudança dos números no indicador do andar. Dois, três, quatro, seis... Naquele catatonismo pós-expediente, ele não percebeu imediatamente a ausência do cinco. Percebeu que algo não estava certo quando o indicador virou no dez. Havia apenas nove andares no prédio. – Droga de manutenção! – exclamou. Quando o mostrador indicou a passagem do nonagésimo nono andar, a luz vermelha do alarme de perigo acendeu na cabeça do Zé. Pensando melhor, não era apenas o indicador que parecia errado, pois o tempo de percurso estava anormalmente longo. Aqueles segundos, ele não sabia exatamente quantos, transformavam-se em longos minutos, sem perspectiva de um fim próximo.

Zé tentou ligar para o porteiro, a partir do celular. Recebeu um indicativo de ausência de sinal, enquanto o mostrador indicava que haviam ultrapassado o nongentésimo andar. Resignado, ele pressionou o botão de alarme. Ouviu apenas o som de uma sirene muito distante, que se afastava cada vez mais. O mostrador passou a exibir 1k, quando passaram pelo nongentésimo nonagésimo nono andar. – Finalmente parou – pensou ele, pois os números indicados pararam de crescer. Aquele 1k ficou estático. Por algum tempo, até que mudou para 1,1k. Não havia parado. Apenas mudou a escala, medindo de mil em mil andares. Zé dormiu encolhido no canto do elevador, tiritando de frio.

O mostrador não indicava andar nenhum, quando a porta do elevador se abriu. – Consertaram esta droga! – pensou Zé, enquanto tentava adaptar os olhos àquela luz muito intensa, do lado de fora, onde um dos vultos dizia:

- Outro, chegou outro!

- Como é que este veio? – perguntou o segundo vulto ao primeiro.

- De elevador...

- De elevador? Mas, como?

- Deu problema no quinto andar e alguém se esqueceu de tirar a ponte. Veio direto.

- Menos mal, há como mandá-lo de volta. Ainda bem que este não veio de balões de aniversário!

- Desce!

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24.4.08

389 - Hurerê


Batalha Naval do Riachuelo - Victor Meireles, 1872
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Hurerê

Por Paulo Heuser


Trim... Trim... Trim... – Alô!

- Amorim?

- Sim, quem é?

- Lugo!

- Quem?

- Lugo, presidente eleito do ...

- Ah, sim, esse Lugo!

- Soube que o Lula não vai querer negociar!

- Nada disso, nós queremos pagar o que é justo!

- O que vocês consideram justo?

- O preço de mercado está bom? Achamos justo.

- Não precisa tanto, fechamos pela metade...

- Não! Nós exigimos pagar mais!

- Do que você esta falando, Amorim?

- De Itaipu, é claro!

- Oh, eu falava da outra dívida...

- Outra, que outra?

- A da Grande Guerra. Nós até hoje sofremos porque vocês se juntaram com a Argentina e o Uruguai e fizeram aquela tremenda safadeza. Nenhum governante eleito democraticamente poderá dormir tranqüilo enquanto não formos indenizados.

- Mas, isso foi em 1870, Fernando. Não há como responsabilizar uma nação pelos atos cometidos há tanto tempo! Se fosse assim, a Alemanha ainda estaria pagando a dívida de guerra, da Primeira, inclusive.

- Si, pero o Lula mandou pagar o que o Evo pediu. E disse que quer construir universidades na África para compensar a dívida moral contraída pelo povo brasileiro. Nos perdemos 300 mil bravos soldados naquela guerra. Isto que é dívida.

- Certo, mas o Evo era estratégico, e podia fechar a torneira do gás.

- Ora, Amorim! Eu construo uma taipa no reservatório e inundo vocês todos.

- Veja, Fernando: Vocês também têm uma grande dívida conosco, por conta dos carros roubados que cruzam a fronteira para o Paraguai todos os dias. O seguro dos nossos carros é caríssimo, pois contempla o roubo...

- Ora, ora, Amorim! Nenhum paraguaio rouba carros no Brasil. Nem no Paraguai, diga-se de passagem. Não há por que roubá-los, pois os carros brasileiros são muito baratos aqui. Se alguém rouba carros no Brasil, certamente é brasileiro. São vocês que exportam os carros para nós. Se não são capazes de cuidar da própria fronteira, nada podemos fazer.

- Certo, mas há o problema da muamba que vem da China, passa por aí e entra no Brasil.

- Ora, ora, ora, Amorim! Nós somos apenas um entreposto. Os chineses fabricam, vocês compram. Se comprarem, o problema é seu!

- Mas, Fernando, é tudo fruto de contrabando ou descaminho!

- Ora, ora, ora, ora, Amorim! A fronteira e a aduana são suas. Se vocês não sabem cuidar delas, o problema não é nosso! E chega de conversa fiada, senão vamos à guerra!

- Calma Fernando. O que você quer, afinal?

- Quero uma reparação territorial!

- Isso vai ser difícil! Onde, lá na Foz?

- Não me venha com Foz, Cacupé ou Hoaquina. Queremos no Hurerê!

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22.4.08

388 - Formigas, formigas!


Foto: Wikipedia
Formigas, formigas!


Por Paulo Heuser



O que leva um sujeito ao hipermercado no sábado à tarde? Martelar os dedos, dói muito menos. O fato é que milhares de pessoas vão, e gostam! Parecem divertir-se em meio a toda aquela gente que anda como figurantes de filme de cinema catástrofe, aleatoriamente, em todas as direções. Muitos levam toda a família, do vovô à netinha. Multiplicam-se os avisos sonoros de que foram encontradas crianças de estatura pequena e idade indefinida. Os pais e os avós podem ficar tranqüilos, desde que consigam encontrar o corredor ZX-247, até as 23 horas, bem entendido.

A transformação dos hipermercados em centrais de serviços rende cenas incomuns. Uma mulher circula pelo corredor externo aos caixas em trajes dignos de uma noiva extraterrestre. Na cabeça, usa rolos de cabelos cobertos por papel alumínio, conferindo-lhe ares de telhado de estação de esqui. O corpo está coberto com uma capa plástica branca, que lembra aquelas dos botijões de gás de 13 kg. A criatura anda de um lado para outro, pelo corredor, tomando sorvete, enquanto grita instruções para alguém que se parece com um marido empurrando carrinho, do outro lado dos caixas.

Fui diagnosticado de TH - transtorno heptapolar, ainda não descrito na bibliografia médica. Numa das fases sintomáticas agudas, da hipotética patologia, tenho compulsão de ir ao hipermercado, no sábado à tarde. Passo pelas moças que me prometem o paraíso, caso eu assine o contrato do cartão MegaConsumo. Poderei pagar pelas compras, pelas quais não poderei pagar, em até 40 meses, com a primeira prestação só em 2010. A massa humana se desloca em todas direções. Surgem do chão, das paredes e do teto. Enquanto ecoa um aviso que pede para não consumirem alimentos no interior da loja, um casal escolhe maçãs enquanto come pêras. Duas pêras para cada maçã. Uma mulher bebe cerveja quente em lata. A demonstradora sorridente oferece Repugnitos – bolinhas amarelas de algo que cheira a suor de axila de elefante. – Assados, não fritos! – grita ela, repetitivamente. Pergunto-lhe sobre a origem do suposto alimento. Ela responde não saber, apenas teria sido paga para oferecer a coisa e afirmar que contém litotripsinas hepatoconvictas neurobacílicas vivas. Pergunto-lhe para que servem. Ela responde que não sabe, porém teriam dito no Fantástico que elas fariam bem, sem olhar para quem.

No setor das verduras estão divulgando ervilhas cúbicas pré-cozidas. Pergunto ao sujeito de uniforme sobre ervilhas frescas. Ele mostra-se enojado. A mesma cara de nojo faz a funcionária perguntada sobre a disponibilidade de massa caseira. Ela nunca ouviu falar de massa caseira. Há diversas marcas à venda, menos essa. Explico-lhe que é massa feita em pequenas quantidades, por método manual.

- Manual com as mãos? – pergunta-me ela, horrorizada.

- Sim, mistura de farinha e água, virada com as mãos.

- Que nojo! – grita ela, enquanto se afasta rapidamente.

O homem baixo e calvo, trajando um ancestral safári, observa tudo, enquanto diz:

- Formigas, formigas!

O escambo corre solto. A mulher que bebe cerveja quente encontra onde trocá-la por outra, agora gelada. Crianças trocam sucessivamente o pacote de bolachas pela barra de chocolate, pelo iogurte de prestígio, pelo ThunderWarrior, pelo... Dormem no carrinho, finalmente, para alívio dos pais. O casal que comia pêras, e pesava maçãs, descobre as uvas.

O homem baixo e calvo, saído sabe-se lá de onde, trajando um ancestral safári, observa tudo, enquanto diz:

- Formigas, formigas!

O alto-falante berra as ofertas relâmpago, válidas pelos próximos 48 segundos: o saco de sal de 20kg sai por apenas dois e oitenta, limitados a 18 sacos por cliente. O quilo da minhoca para jardim (para o que mais seria?) está em 17 reais, mais barato do que picanha! - ressalta a voz. Clientes desesperados procuram o corredor BF-029, do sal marinho, pois não perderão tal barbada. Qual será a próxima oferta? Vaporizadores de purgativos?

O homem baixo e calvo, saído sabe-se lá de onde, trajando um ancestral safári, observa tudo, enquanto diz:

- Formigas, formigas!

Sinto-me na obrigação de avisá-lo:

- São minhocas, não formigas.

- Não me refiro a isso! – diz ele, continuando – Refiro-me a esse pessoal enlouquecido, que age como formigas num formigueiro pisoteado!

- Neste caso, o senhor também não seria uma formiga, como as outras?

- Sou, porém sou a única consciente dessa realidade!

Dito isso, ele segue pelo corredor HJ-134, onde vendem o açúcar, e desaparece entre as frestas do piso.

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19.4.08

387 - Teoria e prática do caos



Teoria e prática do caos

Por Paulo Heuser


Edward Lorenz (1917-2008) morreu, e sua morte não passou despercebida para alguns de nós. Eu constatei que o meteorologista norte-americano, conhecido como o pai da Teoria do Caos, havia morrido no dia 16 de abril, porque os jornais noticiaram, e porque minha caixa de entrada do e-mail recebeu diversas mensagens trazendo a notícia. Ao contrário do que somos levados a pensar, o pai da Teoria do Caos não habitava palácios em nenhuma capital. Era professor do MIT – Instituto de Tecnologia de Massashusset. Ele se imortalizou ao explicar por que pequenas alterações nos sistemas dinâmicos, como a atmosfera, podem provocar enormes, e até imprevisíveis, modificações no conjunto. Ou seja, ele conseguiu explicar matematicamente por que ninguém conseguia prever o tempo, e por que andávamos de guarda-chuva nos dias de sol. Lorenz apresentou um trabalho intitulado: "Previsibilidade: O bater de asas de uma borboleta no Brasil desencadeia um tornado no Texas?", em 1972, também conhecido como Efeito Borboleta, criando uma revolução em diversas ciências apoiadas nas equações diferenciais não-lineares (caóticas).

Hoje se sabe que a maior parte dos fenômenos naturais pertence aos sistemas caóticos. Não é necessário nenhum Lorenz para se verificar que um simples charuto, que nem aceso estava, estremeceu a maior potência econômica e militar do planeta. Pergunte ao Bill. Um aparentemente pequeno e inofensivo absorvente higiênico conseguiu escandalizar o maior reino da Grã-Bretanha. E a culpa não foi do absorvente, foi de alguém que queria transformar-se nele. E assim, anônimos e inexpressivos coadjuvantes alteram o destino de muitos, muitas vezes sem sequer serem percebidos.

Ninguém no Texas percebeu o bater das asas da borboleta brasileira, nem esta percebeu o tornado texano, apesar de manterem uma hipotética relação de causa e efeito. Tampouco alguém percebeu aquela minúscula mosca que se sentou sobre a azeitona do pastel do Zé. A mosca deixou uma bactéria sobre a azeitona, que foi misturada com a carne moída, já para lá de maturada aerobicamente. A bactéria adorou aquela cultura e resolveu casar consigo mesma, gerando duas bacteriazinhas, que também se sentiram muito felizes, e resolveram gerar outras quatro, e assim por diante. Quando a coisa assumiu proporções de explosão demográfica do Terceiro Mundo, o pastel já estava intestinado no Zé, que andava fazendo bico como motorista do candidato a presidente do CBV – Clube de Biriba da Várzea. Zé foi oito vezes às moitas, nos 34 quilômetros que separam a cidade da Várzea. Se o Zé não houvesse demorado tanto a chegar, a Dona Frida teria esperado, na cozinha do clube da Várzea, para preparar a salada de batatas durante o discurso do candidato. Ela queria reduzir o risco inerente à mistura dos ovos crus com as batatas. Porém, como o candidato se atrasou, graças às incursões sanitárias do Zé, ela teve que voltar para casa enquanto ainda havia luz natural. Chegado o candidato, inicio-se a sessão de tapas nas costas e degustação das bebidas típicas da região. Enquanto isso, o solidário e exaurido Zé se dispôs a preparar a maionese, usando a receita da vovó. Pena que a vovó não lhe ensinou a lavar bem as mãos antes de manusear alimentos, especialmente após haver ido às moitas a cada 4250 metros. Ele preparou a maionese artesanal com as próprias mãos, enquanto seguiam os intermináveis discursos, inclusive o do Padre Antão.

O pessoal nunca perdoou o candidato, pelo caos intestinal que se instalou na Várzea, naquela noite gorda de comício. Nem mesmo o Padre Antão o perdoou. Metade das 173 almas lá residentes purgou durante dois dias seguidos. O candidato dispensou o Zé, que deixou de freqüentar comícios, não se candidatando a vereador nas eleições municipais. Desiludido, sem mais o que fazer, Zé foi morar no Tibet, onde trabalhou para uma ONG que distribuía perucas para os monges. O destino quis que o Zé fosse transferido para a nova filial da ONG, no Butão Novo - na confluência da China, Tibet e Butão Velho -, onde se tornou amigo e confidente do sultão Tsensong Pogam. Influenciado pelas idéias políticas que o candidato (da Várzea) incutira no Zé, Pogam botou fogo na política regional, iniciando uma revolta que desceu montanhas, afetando o grande tigre chinês adormecido, vizinho de baixo que se julga dono do de cima.

Um novo trabalho publicado, agora na área da infectologia, poderia se intitular: “Previsibilidade: O defecar de uma mosca no Brasil desencadeia uma revolução no gigante adormecido da China?”. Tudo de acordo com a Teoria do Caos.

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15.4.08

386 - Hemodinâmica

Orlok - Foto: Wikipedia
Hemodinâmica

Por Paulo Heuser


Triim, triim, triim...

- Multidiagnose Hemolística, às suas ordens!

- Boa tarde! Qual é o horário de funcionamento para os exames de sangue?

- Vinte e quatro por sete! Nós não fechamos!

- Qual é o endereço?

- É o seu!

- Como?

- Nós vamos coletar o material para o exame na sua casa, no seu escritório, na praia, no vôo, ou onde o senhor estiver.

- Mas, eu preciso fazer um hemograma...

- Pois então, nossa motogirl enfermeira irá a sua casa, ou onde o senhor estiver, para coletar o material.

- E se estiver chovendo?

- Essa é uma preocupação nossa, senhor! O senhor entra com o sangue, nós com a logística!

- Quanto custa um hemograma?

- Isso depende, senhor!

- Dependo do quê?

- Bem, depende. Nós estamos na semana promocional do Combo C+, proporcionando-lhe sete exames em um pacote promocional.

- O que é C+?

- É a promoção Comfort Plus, incluindo hemograma completo, Lues, Machado Guerreiro, Glicose, Uréia, Creatinina e Urina. No pacote também estão incluídos os descontos de três por cento no Z-Park e de 24 por cento no ingresso do HemoCine.

- Hemocine?

- Pois então, senhor. O senhor poderá assistir ao clássico Vampiro de Düsseldorf, a preço promocional Combo C+, enquanto nós coletamos o material, no próprio cinema.

- Mas, eu só preciso do hemograma...

- Precisa hoje, senhor, hoje! Amanhã, quem sabe? Quando o senhor retornar ao médico, com o exame, ele lhe pedirá outro. O Combo C+ evita a realização de exames posteriores. E tem mais, até o dia 31, clientes que fizerem o Combo C+ ganharão bônus de cinco reais nas pizzas de morcela sem borda da Hemopizza.

- Tudo isso para um hemograma?

- Apenas isso, senhor, pois se a sua opção for o Combo H+, outras vantagens se somarão a essas já obtidas no Combo C+!

- O que é esse H+?

- É o exclusivíssimo HemoPlus, só oferecido a poucos clientes, escolhidos a dedo.

- Qual é a diferença?

- Toda! Com o H+ o senhor receberá um drinque de boas vindas e ganhará uma caçarola de ferro da Hemokitchen. E isto não é tudo, pois o senhor receberá degustações grátis do exame da próstata da Hemo-reto e da hemodiálise da Hemodiálise. Adicionalmente, o senhor estará recebendo os Bônus de 12 reais da HemoTur, para os pacotes promocionais dos novos cruzeiros marítimos, da HemoLínea, para assistir ao Degelo Antártico. Todos os roteiros são na modalidade all aboard, com 47 tipos de exames incluídos, e fornecimento de fluidos vitais cinco vezes ao dia, ou quando requisitados à copa.

- É tudo muito tentador, mas eu só preciso de um hemograma simples...

- Hemograma simples? Oh, lamento, senhor. Não trabalhamos mais com essa modalidade de exames!

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14.4.08

385 - O Homem Xaxim

Wikipedia
O Homem Xaxim

Por Paulo Heuser


As sextas-feiras são dias diferentes dos outros, o que, por si só, não chega a constituir uma constatação espantosa. É na sexta-feira que os tipos mais estranhos juntam-se a fauna reinante no Centro. Os tipos que passam por ali todos os dias deixam de chamar a atenção. Destacam-se tanto como os postes e os bancos da praça. Os da sexta-feira são diferentes, a começar pela periodicidade com que freqüentam o lugar. Não sei o que fazem no resto dos dias da semana.

Na sexta-feira passada, surgiu um novo, pelo menos para mim. Era um sujeito com ares de quem apanhou muito da vida. Mal cuidado, ostentava uma barba escura muito cerrada, indo-lhe até a cercania dos olhos. Lembrava o Dr. Cornelius do Planeta dos Macacos – o filme. O homem chamava a atenção de todos os passantes porque aparentava esmurrar uma parede de salpique, coisa tremendamente estúpida para se fazer. Os passantes só não se viravam para olhar porque temiam que o pugilista interrompido mudasse de alvo.

Parei na banca de revistas, olhando disfarçadamente para o pugilista, enquanto fingia observar as revistas da semana. O jornaleiro percebeu o foco do meu olhar e disse:

- É o Homem Xaxim. Andava sumido, mas voltou.

Ele explicou-me que o apelido viera da barba grossa e espessa, que dava ares de xaxim ao infeliz. Realmente, ele se parecia com um tronco de xaxim ambulante, vestido no traje que algum dia fora preto. O jornaleiro continuou contando mais uma dessas lendas urbanas sobre pessoas que foram do sucesso à miséria. O Homem Xaxim era um outrora renomado consultor em vendas, que treinava as equipes das melhores empresas do País e do exterior. Seu nome verdadeiro era Abraão Weizenbierstube. O homem era graduado em Medicina, especializado em Anestesiologia, pós-graduado em Geologia, doutorado em Marketing e membro laureado do CBEP - Colégio Brasileiro de Empinadores de Pipas. O antes Abraão, agora Homem Xaxim, defendeu uma tese em Marketing que conquistou os meios acadêmicos. Segundo suas pesquisas, os agentes do mercado deveriam ressignificar os paradigmas dos modelos afetivos de relacionamento roll-in/roll-out, perseguindo a excelência de crossover do hipocampo trans-hemisférico lateral. Traduzindo, na linguagem daqueles que não empinam pipas, comprador e vendedor deveriam chegar a um acordo. Essa tese passou como um furacão sobre os mercados. Abraão aprofundou-se nas técnicas para sugestão assistida da vontade de comprar, por parte dos agentes fornecedores do mercado, e da sugestão assistida da vontade de fornecer, por parte dos agentes receptores do mercado. Ele estudou as técnicas de sugestão desenvolvidas pelo desconhecido Dr. Yuri Kalashnikov, desaparecido prematuramente durante um bombardeio no Afeganistão. A lenda urbana reza que o agora Homem Xaxim hipnotizou a si próprio, enquanto Dr. Abraão, produzindo uma dicotomia vendedor/comprador, na mesma pessoa, apoiada na falácia de falsa bifurcação pré-frontal. Desde lá, ele vem oscilando entre os dois papéis de mercado. Ou seja, tenta vender desesperadamente, para si mesmo, ora como vendedor, ora como comprador. Esse dilema leva à tentativa de autodestruição, contida no último instante pelo pólo oposto. Enquanto cresce a cinética vendedora, reduz-se o potencial comprador, e vice-versa. O Homem Xaxim nunca consegue vender para si próprio. Chega muito próximo da venda, mas nunca chega lá. Esse fenômeno já é conhecido, nos meios acadêmicos, como o Paradoxo Weizenbier-Xaxim.

O mistério estaria resolvido, se não fosse a pergunta que continuava no ar. O jornaleiro pareceu adivinhar novamente meus pensamentos:

- Você quer saber o que ele tenta vender a si mesmo? Ora, um espelho.



prheuser@gmail.com

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13.4.08

384 - Refrações da vida real

Madonna des Kanonikus Georg van der Paele de Jan van Eyck


Refrações da vida real

Por Paulo Heuser


Travo uma antiga relação de ódio com os meus óculos. A relação de amor seria difícil, pois não há o que amar nos óculos. Eles sujam, geralmente quando não temos com que limpá-los, a não ser aqueles guardanapos de restaurante que, se não arranharem as lentes, as sujam mais, espalhando a mancha. Caminhar na chuva usando óculos é como dirigir um carro na chuva sem limpador de pára-brisa. Óculos embaçam, como os pára-brisas, só que aqueles não vêm com ar-condicionado para desembaçá-los.

Se eu detestava os óculos quando jovem, agora os abomino. A idade trouxe as lentes multifocais, que prefiro chamar de multifecais. Elas permitem visão para perto e para longe, desde que sua cabeça assuma posições realmente peculiares. Não há como ler um livro, na cama, usando óculos com lentes multifecais. O umbigo fica perfeitamente nítido. Mas, como não leio com o umbigo, sou obrigado a usar óculos com lentes para perto – aqueles vendidos pelos camelôs. A grande vantagem dos óculos vendidos na praça é o preço. Por déirreal, esperar o quê? O problema é que os vendedores estão sumindo, pela ação da fiscalização. Levei mais de hora para comprar os últimos. Tive de me intestinar naquela massa de barracas da Marechal, perguntando a todos sobre algum vendedor de óculos. Desconversavam apenas, enquanto tentavam me vender jogos para Playstation, software alforriado – software preso que recebeu uma certidão virtual de alforria – e outras tantas mercadorias protolegítimas. Sei, é errado comprar óculos de camelô, porém dispensa uma série de procedimentos burocráticos com oftalmologistas e despesas com óticas. Imagine só se as escovas dentais fossem vendidas apenas mediante prescrição odontológica. No dia seguinte haveria outro produto à venda, lá na praça.

Meus óculos possivelmente adivinharam meus pensamentos. No sábado passado, fui colocá-los sobre a mesa de cabeceira e plec! Uma das hastes da armação se quebrou. A grande surpresa veio da óptica. O vendedor forneceu-me o endereço de uma casa especializada no conserto de armações - viva! Porém, julguei prudente ir ao oftalmologista, para fazer uma revisão. Olhos e carros têm algo em comum. As revisões sempre dão prejuízo. Marquei consulta com o Dr. X, recomendado por um amigo. Eu já havia consultado com ele, no passado. Quando comentei com esse amigo, que havia marcado consulta com o Dr. X, ele perguntou-me sobre eu haver enlouquecido, pois o Dr. X estaria errando todas as prescrições de lentes. Então, fiz o que julguei mais prudente. Encontrei um Dr. Y, também conveniado com meu plano de saúde, e marquei consulta com os dois, para o mesmo dia, com uma hora de diferença, no mesmo prédio. Uma espécie de junta médica monodisciplinar involuntária. Na quarta-feira, lá estava eu na sala de espera do Dr. X, lendo Caras. Essa revista foi feita sob medida para as salas de espera dos oftalmologistas, pois lá dentro não há o que ler. Há fotos por todos os lados, mas nada de texto.

Não cheguei a folhear duas Caras, e o Dr. X já me atendeu. Enfiou meus olhos na máquina 1, na máquina 2, conferiu com lentes o que as máquinas receitaram, pingou gotinhas nos olhos e enfiou algo luminoso neles. Pronto. Dirigi-me ao outro andar, para a consulta com o Dr. Y. Nova secretária sorridente, as mesmas Caras, e um oftalmologista que não sorria. Foi o primeiro que vi, até hoje, que não sorri. Máquinas iguais. Quando ele foi pingar aquela coisa nos meus olhos, levei medo e confessei ser ele o segundo a pingar gotas nos meus olhos na última hora. Fazia parte da minha equipe oftalmológica involuntária. O Dr. Y não aparentou se importar com o fato. Saí do prédio com duas receitas de óculos para perto e duas receitas de óculos com lentes multifecais. Receitas iguais, por sinal. Fiquei aliviado.

Liguei para o amigo e lhe disse que eu havia obtido uma segunda opinião que coincidira com a do Dr. X. Ele disse:

- Quem é o segundo médico?

- É o Dr. Y, recomendado por alguns colegas...

- Ficou louco? O Dr. Y quase cegou minha tia cega!

Procuro o Dr. Z, aquele que ninguém conhece, nem recomenda.

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12.4.08

383 - A vida de Bárion


Oak Ridge (Foto: Wikipedia)
A vida de Bárion

Por Paulo Heuser


Bárion não sabe exatamente onde nasceu. Sabe apenas que viaja sozinho, desde que perdeu seus companheiros. Ele gostava especialmente do pequeno Lépton, que corria alegremente em torno dele. Bárion foi arrancado de uma comunidade que cresceu além do que ela própria poderia suportar, e foi expulso, sem destino certo. Nem o seu fiel companheiro Férmion o protegeu na hora da expulsão. Isso que eles mantinham uma relação realmente íntima.

O solitário Bárion vaga pela pequena eternidade que teve algum início, sem consciência de que sua vida terá um fim, próximo ou distante. É a lei natural das coisas. Antes a situação estava muito mais estável. Essa estabilidade durou mais do que a memória de Bárion poderia recordar. Ele desconfiava de que fora expulso por se manter neutro. Lá não havia mais lugar para quem ficava sobre o muro. O mundo estava em convulsão, e apenas os que tomavam algum partido eram mantidos nas comunidades. Havia forte coesão entre eles. Originado da família Hádron, Bárion tem parentes nada neutros.

O que Bárion não imagina é que ele mudará o curso da história. Logo ele, o solitário viajante errante, ao qual ninguém atribuiu valor. Por vezes é assim mesmo, alguém que aparentemente está apenas de passagem acaba criando uma revolução. Bárion estaria apenas de passagem, em outros tempos. Porém, algum evento dramático colocou outra comunidade no seu caminho. Com todo esse espaço vazio, quiseram o destino e a intervenção humana que o improvável acontecesse. Bárion entra com tudo, no meio daquela comunidade, sem pedir licença nem receber permissão. Não passa despercebido. A comunidade se agita, incomodada pela presença imprevista e indesejada do Bárion. Urânia nunca mais será a mesma, após a chegada dele. Em pouco tempo aquela até então estável comunidade divide-se em duas: Kriptônia e Bária - talvez assim batizada em homenagem ao provocador de toda essa revolução.

Além de dividir Urânia, Bárion consegue arregimentar dois seguidores, também Hádrons, como ele próprio. Expulso novamente, Bárion segue sua trajetória solitária. Assim fazem seus novos seguidores, um em cada direção. Novamente acontece o improvável. Aproximadas pelo evento violento, novas comunidades se põem na trajetória involuntária de Bárion e seus novos seguidores. Cada um divide novas sociedades e arregimenta dois novos seguidores, multiplicando o processo. A divisão das comunidades produz muito calor.

São 8h15m43s do dia 6 de agosto de 1945. Bárion, um nêutron, viaja de um átomo de Urânio 235, fissionado em átomos de Kritônio 92 e Bário 141, Devido à massa crítica obtida pela aproximação de duas cargas de U235, no interior da bomba atômica Little Boy, Bárion encontrará outros átomos pelo caminho, provocando novas fissões, que liberarão outros nêutrons como ele próprio, dando seguimento à reação em cadeia, gerando uma imensa quantidade de calor que pulverizará a cidade japonesa de Hiroshima.

Imitando o mundo das partículas, também há Bárions nas comunidades humanas, como os nêutrons térmicos da fissão nuclear. Chegam nas comunidades, como quem não quer nada. Parecem neutros. Inserem-se no núcleo social das comunidades e desestabilizam-nas, provocando a fissão social. Dividem a comunidade em partidos, mandando afiliados dividirem outras comunidades, numa reação em cadeia que não deixa nada de pé.


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10.4.08

A arca sem fronteiras


Edward Hicks
A arca sem fronteiras

Por Paulo Heuser


Pois o Noé andava cuidando da vidinha dele. Consertava uma cadeira aqui, uma mesa ali, até que lhe encomendaram o projeto da tal da arca. Perdeu-se em meio a esquemas, desenhos e cálculos. A mulher do Noé acreditava que ele enlouquecera, pois abandonara a carpintaria para se dedicar àquele projeto maluco. Não só ela, pois os clientes e vizinhos da Carpintaria Aricanduva passaram a caçoar dele. Porém, Noé não esmoreceu. Empenhou os últimos trocados e utilizou todo o estoque de madeira para iniciar a construção da nave.

Foi um longo e penoso trabalho. Mal iniciara o projeto, quando chegaram os fiscais da prefeitura. O alvará de funcionamento da Aricanduva era para uma carpintaria, e Noé desviara da atividade, constituindo um estaleiro. Mesa era mesa, navio era navio. Após oito meses, Noé conseguiu um novo alvará, graças à intervenção da ONG Burocratas Sem Fronteiras. Noé deixara de freqüentar o boteco do Jacó, pois o pessoal não parava de implicar com sua devoção ao projeto maluco. Então foi a vez do conselho de engenharia embargar a obra do Noé. Faltava-lhe responsável técnico, e a inspiração divina não contava pontos. Novamente a ONG Burocratas Sem Fronteiras entrou em cena. Conseguiram que um engenheiro naval mineiro assinasse o projeto.

Após doze anos de árduo trabalho, Noé desconfiou que a obra não avançava. Jurava já haver pregado a mesma tábua inúmeras vezes, sensação semelhante àquela sentida pelos leitores dos livros de cabeceira de auto-ajuda. Lê-se sempre a mesma página, e se cai no sono. Noé convenceu sua mulher a ficar de vigília, durante a noite, enquanto ele dormia. Ela logo descobriu por que a arca não crescia, ao contrário da favela lindeira, onde diariamente surgiam novos barracos de madeira. Acionada novamente, a ONG Burocratas Sem Fronteiras conseguiu alguns mercenários emprestados pela ONG Mercenários Sem Fronteiras. O pagamento pelos serviços dar-se-ia em troca do uso eventual da arca para o transporte de tropas.

Quando Noé já acreditava que veria sua nau singrando o Aricanduva, na direção do Tietê, apareceram os ecologistas. Eles descobriram que Noé pretendia encher a arca com casais das mais variadas espécies de animais silvestres. Nem a ONG Ecologistas Sem Fronteiras conseguiu retirar a interdição. A solução encontrada foi substituir os animais silvestres pelos exóticos. Noé embarcaria casais de elefantes, dromedários, javalis e formigas neozelandesas, além dele próprio e da sua família. Nada de tatus e taturanas. A ONG Diversidade Sem Fronteiras conseguiu liminar para incluir um casal exobiológico (ET) na relação.

Quarenta anos após o início da construção da arca do Noé, vencidas todas as barreiras burocráticas, ele embarcou os casais e sua própria família, cerrando as portas. Passaram seis dias lá dentro, em seco, ouvindo as piadas dos que passavam pela rua. No sétimo dia choveu. Choveu em 40 dias e 40 noites o que seria esperado em 40 meses. No quarto minuto de chuva o Aricanduva transbordou e invadiu o terreno da carpintaria. As garrafas PET trazidas pela chuva batiam no casco da arca. Aos seis minutos de chuva o Tietê transbordou, bem como o Pinheiros.

A arca do Noé singrou pelo oceano sem fim formado pela chuvarada. No quadragésimo primeiro dia a chuva parou e alguém abriu o ralo que começou a drenar lentamente todo aquele aguaceiro. Sabe-se lá de onde, surgiu uma pomba que trazia um ramo no bico, indicando que o dilúvio chegava ao fim. Certo dia, quando as águas se foram, a arca do Noé encalhou sobre um morro, onde antes ficava a Vila Ararat, no complexo da Favela da Turquia.

Quando Noé abriu a porta da arca, deu de cara com um comitê de boas vindas. Sobre um palco cheio de gente engravatada, um sujeito de capacete berrava ao microfone, ladeado pela mulher de olhar severo, também de capacete:

- Nunca antes neste País alguém fez chover tanto!

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9.4.08

Tlês tipos flitos

Foto: Wikipedia
Tlês tipos flitos

Por Paulo Heuser


Vir à Capital significava viver emoções novas. Uma das mais marcantes foi a ida ao restaurante chinês, o Lokum, lá na Venâncio. Tudo era exótico naquele local. A decoração cheia de dragões e lanternas vermelhas impressionava à primeira vista. Os adultos consultavam o cardápio e comentavam sobre pratos inimagináveis, como a sopa de barbatana de tubarão. Camarões empanados, frango xadrez, tudo era diferente. A maçã laqueada e o ábaco com o qual calculavam a conta fecharam a noite de surpresas. Virei fã dos restaurantes chineses. O Pagoda exibia imensas filas de gente bacana que se dispunha a esperar por uma mesa nas noites de sábado.

Numa dessas filas intermináveis do Pagoda, notamos que abrira outro restaurante chinês, um pouco adiante. Um casal de recém-chegados, não sei de qual das Chinas, tocava a casa a dois. Ele fazia as vezes de proprietário, maitre, gerente, garçom, sommelier de coca-cola e cerveja, e manobrista de táxi. Ela se desdobrava como proprietária, chefe de cozinha e cozinheira. Alguém lhes montara um cardápio numerado, com algarismos arábicos, que deveria ter um equivalente chinês na cozinha. Minha entrada preferida era a de número um, como convinha a uma entrada. Era o tlês tipos flitos. O que era, não sei, mas era muito gostoso. A sopa trovão, de número dois, também era boa pedida. E assim seguia-se, apontando os números ao chinês, que os copiava em um pequeno pedaço de papel, que, desconfio, servia como argumento de sorteio para o bilhete da sorte. Um misto de comanda com jogo do bicho. Havia números para tudo, inclusive para a coca-cola, a cerveja e o único vinho que constava da extensa carta. A interface de comunicação cliente x garçom era precária, porém a comida era muito boa. Por pirraça, fazíamos perguntas estapafúrdias ao chinês, que respondia algo ininteligível enquanto sorria. Deveria dizer algo como “ocidental estúpido”, se traduzido para português. Todo mundo parecia divertir-se naquele restaurante, dos donos aos clientes. De alguma forma, eles conseguiam cobrar as contas. Um dia, sumiram, como sumiu o Lokum.

Os restaurantes chineses foram atropelados pela praga tupiniquim dos bufês. Seus pratos foram feitos para consumo imediato, da wok para a mesa. Como servir um chapéu chinês numa cuba de bufê? Só mesmo se for o chapéu para colocar na cabeça. As cozinhas chinesa e italiana têm algo em comum, por incrível que pareça. Não há como servir massa em bufê, mantendo-se a qualidade. As massas devem ser servidas diretamente no prato, já acompanhadas do molho. Porém, tanto os chineses locais, como os italianos locais, renderam-se aos bufês e rodízios. A levíssima e delicada cozinha chinesa adaptou-se aos artifícios que a mantêm nas cubas. Hoje, contam-se nos dedos os restaurantes que se dispõem a preparar um prato na hora.

Houve época em que resolvi eu mesmo preparar meus pratos orientais. Saí para comprar broto de bambu, num sábado pela manhã. Encontrar a loja de produtos orientais não foi tão difícil. Difícil mesmo foi sair na rua com o broto de bambu. Eu imaginava algo semelhante à taquara. Contudo, o balconista abriu uma câmara frigorífica e retirou um saco plástico cheio d’água com uma estranha substância disforme e esbranquiçada ao centro. A coisa toda, incluindo a água, deveria pesar uns cinco quilos. Lá saí eu, pelo Bonfa, carregando aquele cérebro hidratado de ET. Várias pessoas me pararam para perguntar o que era aquilo. Seria um feto de baleia? Ou um fígado de marciano?

Lá em outubro, estaremos novamente defronte ao cardápio cheio de números, sem saber exatamente o que são aqueles pratos de nomes exóticos, como “esquerda laqueada” e “direita empanada”. Exóticos sabores que só provaremos quando servidos no bufê da democracia.

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6.4.08

O caderno

Max Planck (Foto: Wikipedia)
O caderno

Por Paulo Heuser


Em outros tempos, havia um costume seguido pelas colegiais, que hoje foi ressuscitado pelos colunistas sociais. Elas mantinham cadernos, como diários, que entregavam para os colegas, a fim de que preenchessem um questionário, sabe-se lá bem para quê. Para fazerem chantagem, possivelmente, já que os call centers ainda não haviam sido inventados. Pelo que me recordo, as meninas desenhavam borboletas e coisas do gênero, enquanto os rapazes tentavam enaltecer seus feitos gloriosos. As perguntas eram as mesmas de hoje, como sobre o cantor preferido, o último livro que leu, o grande amor da semana, etc.
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Eu recebi apenas um caderno desses, de uma colega da classe. Foi a primeira e a última vez. Até hoje não entendo bem o que deu tão errado. Lembro-me até hoje daquele dia de inverno. Eu voltava para a sala de aula, após o intervalo das dez, quando ela se aproximou de mim e alcançou aquele caderno exalando um perfume de reunião dançante de sábado. Nada falou, apenas sorriu, deixando-me parado com cara de bobo e joelhos frouxos. Será que eu fizera algo para merecê-lo?

Levei o tesouro para casa, cuidando para não produzir orelhas-de-burro nele, coisa imperdoável para se fazer num caderno feminino. Eu realmente caprichei quando preenchi aquele caderno, ainda mais porque sabia que ele passaria por outras mãos, e outros olhos. Li o que os outros haviam escrito até então, pois não queria parecer um pé-esquerdo dentre todos pés-direitos. Julguei ter percebido como a coisa funcionava. Todas as meninas eram loucas pelo Alain Delon, já que o Brad Pitt recém estava sendo alfabetizado. Entre a ala masculina, não havia unanimidade. Alguns sonhavam com uma já balzaquiana Brigitte Bardot. Eu particularmente me dividia nos sonhos entre Jacqueline Bisset e Jane Fonda, que aparecera fantástica no lisérgico Barbarella. Optei pela última, sabendo que não erraria.

Qual é sua música preferida? A maioria colocou Good Morning Starshine, da peça Hair. Então, resolvi ousar e coloquei a orgásmica copulante Je t’aime moi non plus, da Jane Birkin, rezando para que nenhuma mãe lesse o caderno ou ouvisse a música que suas filhas ouviam. Se você não sabe que música é essa, pergunte aos seus pais, eles sabem.

Na seção cinematográfica, Franco Zeffirelli papou todas as indicações femininas, com seu Romeu e Julieta. Vi uma excursão de freiras ir aos prantos, enquanto assistiam ao filme numa sessão vespertina, naturalmente. Fui de 2001: Uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick. O interessante sobre esse filme é que ninguém conseguiu entendê-lo, nem o próprio autor. Assim, podia-se dizer qualquer coisa sobre ele, pois não havia como contestar.

Cheguei à parte sobre gostos literários. Qual era o meu autor preferido? Saint Exupèry e Richard Bach eram unanimidade entre a ala feminina. Seus Pequeno Príncipe e Fernão, Capelo e Gaivota estavam na cabeceira de todas. Fiquei tentado a escrever Isaac Asimov, Arthur C. Clarke ou Brian Aldiss. Porém, resolvi ousar, novamente. Balancei entre Isaac Newton (1643-1727), considerado pai da Mecânica Clássica e do Cálculo Diferencial, e Max Planck (1858-1947), considerado o pai da Mecânica Quântica. Acabei escolhendo Planck, pois Albert Einstein debruçou-se sobre os estudos dele para explicar o efeito fotoelétrico. Minha escolha não poderia ter sido diferente, pois definiu meu livro preferido. Em 1905, chamado annus mirabilis – ano milagroso - da física, Einstein publicou um artigo com o singelo título Über einen die Erzeugung und Umwandlung des Lichtes betreffenden heuristischen Standpunkt - Sobre um ponto de vista heurístico concernente à geração e transformação da luz. O título traduzido não melhora muito, não é?

Eu não entendi por que as meninas não me entregavam mais seus cadernos, após eu haver preenchido aquele com tanto capricho. Talvez tenha algo a ver com a escolha do livro. Sei lá. Eu escolhi cuidadosamente cada resposta, inclusive aquela sobre o meu número preferido. Ora, não poderia ser outro senão a Constante de Planck: 6,626068 × 10-34 m2 kg / s.


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4.4.08

Cusparada


Foto: www.clinteastwood.net

Cusparada

Por Paulo Heuser

O assunto é nojento, porém fazer o quê? O fato é que ando impressionado com o número de cusparadas que vejo no dia a dia. O pessoal vem caminhando e manda uma, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Outro dia li um artigo que mencionava os dez maiores problemas que impediam o crescimento de Curitiba, na segunda década do Século 20. O oitavo era a falta de escarradeiras nas ruas. Vejam só, alguém já se preocupava com isso na época. A China desde 2006 vem tentando eliminar o hábito de cuspir. Em muitos esportes coletivos o ato de cuspir faz parte da coisa. O atleta entra em campo e cospe feito dromedário.

Aqui, nas ruas, havia latas de lixo que poderiam ser utilizadas como escarradeiras. Contudo, foram substituídas por recipientes plásticos com a boca para o lado, exigindo que os eventuais escarradores também lancem o produto para o lado, numa demonstração de contorcionismo bucofacial. Coisa que Clint Eastwood e Lee Van Cleef tiravam de letra nos Spaghetti Westerns, produções cinematográficas italofrancobelgogermâncias rodadas nas regiões áridas da Itália e da Espanha, nos anos 60 do século passado. Ao som da trilha sonora de Ennio Morricone, eles se revezavam nas cusparadas tão certeiras quanto os disparos que cuspiam fogo das suas armas. Cuspidores como aqueles exibiam técnica apurada, completamente diferente dessa usada pelos modernos cuspidores urbanos.

Hoje se cospe displicentemente, sem pompa nem circunstância. Aqueles homens do passado sabiam o que faziam. Qualquer cusparada de respeito iniciava pelo fumo, mascado ou fumado. Mandava a boa técnica que o sujeito antes de qualquer coisa criasse a massa crítica - feita noventa por cento de alcatrão. A seguir, deveria remoê-la durante alguns instantes, enquanto analisava o alvo, realizando cálculos mentais de balística – elevação, azimute, direção do vento, essas coisas. Quem estivesse virado contra o vento estava em evidente desvantagem, exigindo o uso das técnicas de cuspida oblíqua ou lateral. Isso tudo enquanto avaliava o alvo do tiro do revólver. Só posso acreditar que aqueles sujeitos conseguiam usar os dois lados do cérebro ao mesmo tempo. É como se jogassem tênis com duas raquetes e duas bolas. Curiosamente, a cusparada geralmente precedia o tiro do revólver. Não entendo por que não tiravam proveito desse verdadeiro anúncio de que em seguida viria chumbo. Bastaria disparar primeiro e cuspir depois. Um bom cuspidor fazia caretas com desenvoltura. Fechava lentamente um dos olhos, enquanto preparava o lançamento.

Tudo mudou. Clint Eastwood elegeu-se prefeito da cidade de Carmel, na Califórnia, e não cuspiu mais em público. Lee Van Cleef foi-se em 1989, para cuspir em outras paragens. Restaram apenas esses cuspidores amadores que se apinham nas nossas ruas. Alguns atiram, sem cuspir.

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2.4.08

A irmandade da morte


Foto: Wikipedia
A irmandade da morte

Por Paulo Heuser


A história está recheada de eventos que envolveram sociedades secretas, irmandades, confrarias e quaisquer outros ajuntamentos de pessoas com interesses em comum. Muitas dessas sociedades permeiam a sociedade sem aparentá-lo. Algumas foram constituídas para praticar o bem, sem olhar para quem. Outras são sociedades de ajuda mútua, onde os membros prestam favores entre si. Há algumas que se destinam à realização de festas, e assim por diante. Soube de uma sociedade secreta de adoradores de pé-de-moleque (a rapadura), que não tinham a coragem de confessar publicamente sua adoração pelos amendoins com melado. Reúnem-se semanalmente para comer a iguaria.

Há confrarias públicas de bebedores de uísque, de fumadores de charutos, de cozinheiros, e de qualquer atividade que possa reunir aqueles que partilham de gostos comuns. Nunca antes naquele país houve tantas sociedades secretas como nos EUA. Frase confusa, porém politicamente atual. Os norte-americanos inserem-se nas irmandades enquanto estão na escola. Tornam-se sigma-kappa-phi, ou vice-versa. Faltam letras no alfabeto grego para tanta irmandade. Eles passam pelas cerimônias de iniciação, onde juram a fidelidade a qualquer coisa que move aquela entidade. É um ponto alto na vida social dos jovens daquele país. Neste País, os trotes universitários estão mais para jogarem ovos, ou caldo de peixe podre, nos calouros. Lá os filhos tendem a ingressar na mesma irmandade que seus antepassados freqüentaram durante o ensino superior. Aqui tentam criar a Irmandade do Caldo de Traíra Podre e a Irmandade dos Bombardeados com Ovos Podres de Carijó. Seus filhos serão bombardeados com o mesmo caldo de traíra podre e os mesmos ovos podres de carijó, quando ingressarem na universidade. É a tradição que se perpetua.

George Filho, assim como seu pai George Pai, freqüentou a conceituada Yale University, em New Haven, Connecticut. Ambos ingressaram na Ordem das Caveiras e Ossos, sociedade secreta criada em 1832. Diversas personalidades da vida pública norte-americana participaram dessa renomada sociedade secreta. Renomada e secreta, o que não deixa de ser curioso. George Pai quase iniciou uma guerra nuclear. George Filho começou guerras convencionais. Os membros dessa sociedade, também conhecida como Irmandade da Morte, são chamados bonesmen, o que poderíamos traduzir para ossudos, sem nenhuma tentativa de ridicularizá-los. São as natas da sociedade que se considera uma nata.

Apesar dos esforços de guerra do ossudo George Filho para convencer os muçulmanos da conveniência de se tornarem WARP – White American Republican (redneck) Protestants – Brancos americanos republicanos protestantes, eles não entendem esse esforço. Insistem em explodir-se por todo o lado. Sequer sonham em tornarem-se ossudos!

Os pensamentos de George Filho desviaram-se daqueles povos incompreensíveis quando a bolsa explodiu. Desta vez não foi a bomba na cesta de uma mulher suicida na fila do pão em Bagdá. Foi a bolsa do seu querido país, sede da sua secreta Irmandade da Morte. Nem o Alan Greenspan conseguiu salvar a aposentadoria das velhinhas que é aplicada na loteria dos papéis das saudáveis empresas WARP. Os bancos estremeceram, e não foram os da praça. George não sabia mais o que fazer. Derrotado na política externa, derrotado na economia interna, via modelos recusarem cachês em dólares. Essa foi a gota d’água! Então surgiu um conselho amigo, do Presidente Squid (Lula), daquele país cujo nome sempre esquece, mas sabe que fica próximo ao Orinoco. Squid insistia na aplicação de um pacote. Mesmo o cérebro privilegiado de George Filho conseguia entender que necessitavam urgentemente de um pacote. Mas qual pacote? A economia norte-americana não conseguia engolir pacotes facilmente. Squid prometeu mandar um pacote.

Quando o AirSquid pousou na Base Aérea de Andrews, perto de Washington DC, um imenso aparato de segurança estava preparado. Das entranhas da aeronave desceu apenas uma mala. Estaria nela o pacote salvador da economia do país das Caveiras e Ossos? Da porta da aeronave tupiniquim emergiu uma senhora baixinha: a Pack’s Mother – Mãe do PAC.

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1.4.08

A caixa do Anibal


A caixa do Aníbal

Por Paulo Heuser


Quem me contou o caso foi um funcionário da Logística Metalógica, empresa de vanguarda no ramo da logística, como o próprio nome indica. A Metalógica foi uma das primeiras empresas a se autoquarteirizar, recebendo um prêmio de gestão pela iniciativa ousada, inovadora e exterminadora.

Os escritórios da Metalógica refletiam a quarteirização. As pilhas de papel, pastas, escaninhos, e todos aqueles materiais utilizados nos ambientes de escritório, deram lugar ao ambiente extremamente limpo, despojado e esteticamente espartano. A ausência de processos levou à eliminação de itens supérfluos, como aparelhos telefônicos fixos, porta-canetas e lixos para papéis. Restaram mesas de tampo branco, sem gavetas. Sobre elas, laptops brancos. O silêncio fez-se presente. O máximo de ruído no ambiente passou a ser o som do roçar das meias da Karol. Os colaboradores com tosse foram convidados a curá-la em casa. Tudo estaria perfeitamente funcional e ergonômico, se não fosse o Aníbal.

O ambiente estava no mais profundo silêncio permitido pelo roçar das meias da Karol, quando o Aníbal entrou pelo corredor, fazendo um terrível qüique-qüique enquanto pisava. Seus sapatos de couro ecológico produziam um insuportável ruído, apesar da forração de 28 milímetros. Aníbal entrou pela porta sul, fazendo qüique-qüique, carregando uma caixa de papelão de aproximadamente 50 x 40 x 30 centímetros de arestas. Tanto o Aníbal quanto a caixa destoavam completamente daquele ambiente moderno, sofisticado e, acima de tudo, silencioso. Os qüique-qüiques chamavam a atenção de todo mundo. Antes que o Aníbal conseguisse atravessar metade do corredor, o Albuquerque – CEO – o arrastou até a única sala de reuniões, onde não havia mesas nem cadeiras, pois tampouco havia reuniões. Albuquerque fechou a porta antes de falar em voz baixa:

- O que é isso, homem? Você quer perturbar toda a empresa?

- Não, doutor! Eu só quero achar...

- Chega de explicações! Troque esse sapato, imediatamente!

- Mas, doutor, eu não tenho outro!

Albuquerque retirou duas notas de 50 do bolso, entregando-as ao Aníbal.

- Vá, homem! Compre uns sapatos decentes, que não façam esse terrível qüique-qüique!

- É muita gentileza, doutor! – disse Aníbal, enquanto voltava à porta sul, carregando sua caixa, ao som dos qüique-qüiques, para desgosto de todos. Quando a porta finalmente se fechou, restou apenas o som do roçar das meias da Karol.

Na manhã seguinte, a porta sul abriu-se novamente, deixando passar um Aníbal carregando caixa que caminhava sem produzir som algum. Com os sapatos novos, pelo menos. O som do roçar das meias da Karol logo foi abafado pela respiração ofegante do Aníbal, que andava de um lado para outro, olhando sob as mesas sem gavetas. Albuquerque interceptou-o junto à terceira mesa, levando-o novamente à sala de reuniões.

- O que é isso, homem! Quer ensurdecer todo mundo com essa respiração?

- Desculpe, doutor! É que estou carregando essa caixa, e ela pesa...

Albuquerque ligou para a empresa contratada pela quarteirização e encomendou uma solução logística e silenciosa para o transporte da caixa do Aníbal, que ficou proibido de entrar pela porta sul enquanto a solução não chegasse. O pessoal virou fim de semana projetando e executando o Translogsil – Transporte Logístico Silencioso. Por fim, optaram por um modelo de carrinho que utilizava rodízios com rolamentos de titânio lubrificados com óleo de baço de baleia. O modelo que utilizava colchão de ar mostrou-se mais ruidoso do que o roçar das meias da Karol.

Aníbal entrou pela porta sul, todo feliz, pois o peso da caixa saíra do seu ombro. Com os sapatos de couro e o carrinho silencioso, ele andou em ziguezague entre as mesas, logo sendo interceptado novamente pelo Albuquerque. O pessoal estava se queixando do ruído produzido pelo ranger da dentadura do Aníbal. Albuquerque mandou Aníbal procurar o plano odontológico da empresa para darem um jeito naquilo.

Eis que o Aníbal adentrou novamente a porta sul, agora também de mobília nova, acompanhando sua inseparável caixa. Andou em ziguezague entre as mesas, como se procurasse alguma coisa. Quando passou ao lado da mesa da Karol, ela parou de roçar as pernas e lhe perguntou.

- Quem é o senhor, afinal?

- Oh, sou o Aníbal, da limpeza.

- Certo, e o que leva na caixa?

- Nada. Eu estou tentando encontrar um lixo para jogá-la fora.

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