29.6.09

534 - Dúzia de dez

Foto: Paulo Heuser
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Dúzia de dez

Paulo Heuser


Teozinho arrasou. Após um MBA em marketing, inventou a dúzia de dez. Já houve a dúzia de treze, ou dúzia de frade, criada pela Igreja, como forma de cobrar seu quinhão. A origem da dúzia de doze, a clássica, é atribuída aos sumérios, que viveram lá por 3300 a.C. na região sul da Mesopotâmia. Eles usavam os dedos para contar. Não que eles tivessem doze dedos nas mãos. Eles foram mais espertos, na verdade, e usaram as falanges dos dedos para contar as unidades e o polegar para indicar a falange em que contavam. Isso na mão direita, onde eram capazes de contar até 12. Com a mão esquerda, eles implementaram um sistema quintal, de base cinco, e um sistema sexagesimal, de base 60. A perda de mãos, ou mesmo de dedos, levava à dislexia numérica.

O Teozinho analisou toda essa coisa, a pedido do Monopólio Central, à procura de uma forma de aumentarem o lucro com a venda de ovos. Ele logo percebeu o problema. Dúzias sumérias de doze eram conceitos para lá de antigos. O mundo havia mudado, e os novos tempos demandavam novos padrões, como a NDD - Nova Dúzia Decimal. Quem ainda contava falanges com o polegar? O Cartel reduziu a dúzia, de doze para dez, e manteve os preços, sem cobrar nada mais por isso. Logo vieram a meia dúzia de cinco e o ovo avulso sem surpresa, o contraponto do kinder ovo. As galinhas sabem fazê-los como ninguém. Em vez de brinquedos de montar, esses ovos avulsos contêm uma substância ranhenta e transparente circundando um fluido amarelo. Seria fantástico, se não fosse nojento. Segundo as instruções da embalagem, basta cozinhá-los em água fervente para que percam a aparência repugnante.

Quem sabe das coisas não dorme sobre os louros da vitória. Sucesso é coisa de momento. Teozinho trabalha em outro projeto, o do litro light. Ainda não há uma definição exata da dimensão do novo litro, mas tende a ter 750 ml. Menos calorias pelo mesmo preço.

Guardado a sete chaves anda o DSZ – Dispensador de Sabor Zero -, dispositivo implantado sob a língua do cliente, que libera essências diversas, tudo sem valor alimentício, completamente zero cal. O sujeito pensa na picanha, lá vem gosto de picanha. Petit gâteau de maracujá? Sem problemas, vem até o sabor azedo da fruta. O que o Monopólio Central ganhará com isso? Teozinho sabe, o DSZ tem interfaces 3G, wi-fi e bluetooth, em dentes brancos, para informar o consumo. A central do Monopólio coletará os pedidos e debitará da conta dos clientes, sem cobrar nada mais por isso.

É frustração do Teozinho não ter nascido antes. Ele poderia ter sido o responsável pelo lançamento do BDN – Bolo do Delfin Netto -, aquele que, depois de crescido, seria distribuído entre a população, sem cobrarem nada mais por isso.


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4.2.09

499,999 e 9/10 - Estímulos madrugadores

Foto: Wikipedia
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Estímulos madrugadores

Por Paulo Heuser


É Claro que levei um susto. Quem não levaria? Talvez um notívago, um obstetra ou um porteiro de obscuro e nada Claro lupanar? Recebi o torpedo às 04h15. Ouvi o toque ao longe pois dormia profundamente, mas ficou bem Claro que se tratava de aviso sonoro da recepção de torpedo. Sobressaltei-me, é Claro. Tentei voltar a dormir, mas não consegui, pois o misterioso torpedo madrugador não saía da minha cabeça. O telefone móvel encontrava-se ao alcance da mão, mas eu relutei em pegá-lo, pois temi perder o sono que eu já havia perdido. Após alguns minutos de luta contra a insônia, ficou Claro que, se não olhasse a mensagem, passaria o resto da madrugada em Claro. Poderia ser apenas uma bobagem, mas e se não fosse? Poderia ser o golpe do sorteio do Gugu, ou o do falso seqüestro, ou pior, o do falso seqüestro do Gugu.

Com o pensamento mais Claro, abri o flip e constatei que efetivamente eu havia recebido um torpedo madrugador. Tateei pelos óculos e pus-me a ler. Descobri o seguinte texto, enviado pelo telefone 4001: “Loucura!! 36HP O melhor estimulante sexual so R$ 49,50 Ligue (51)2112-2525 e receba onde indicar!!!!!!...”. Às quatro e quinze da matina!

A princípio, fiquei sem reação. Fiquei sentado, no escuro, estudando algumas alternativas. Claro, o primeiro impulso poderia ser o de jogar o telefone pela janela. Porém, ela estava fechada, e o impulso causaria duplo prejuízo. Eliminei também a vontade de jogá-lo no vaso sanitário e acionar a descarga. Claro que também não seria uma opção racional, pois os desentupidores cobram por centímetro, ou fração. Após mais alguns instantes, eu já via tudo mais Claro. Eu não entendia por que enviaram aquele torpedo àquela hora. Afinal, poucos clientes da operadora gostam de ser acordados às 4h15 com um torpedo vendendo 36HP. Fiquei a imaginar a cara da Dona Basiléia, no alto dos seus 92 anos, recebendo aquele torpedo madrugador e tentando decifrar o que é um 36HP. Depois, durante o dia, descobri que muitos outros foram brindados com a missiva sexual. Claro, ninguém gostou.

Aprendi algumas coisas com esse evento. Não há mais hora para fazerem propaganda. Tampouco querem saber se há uma criança no outro lado. O importante é chegar ao potencial cliente, seja como for, seja quando for. Não adianta trocar de número do celular, pois essas mensagens são enviadas em massa. Só um aspecto ainda me intriga no ocorrido. Por que mandaram a mensagem às 4h15? Se a coisa não rolou até aquela hora, não há 36HP, por melhor que seja, que possa resolver o problema.

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3.2.09

499,999 e 8/9 - Na defesa do ambiente



Foto: Cristina Heuser
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Na defesa do ambiente

Por Paulo Heuser


Se os mais experientes contam com a experiência de vida, como o próprio adjetivo indica, os mais novos têm mais energia, sede de saber e uma memória fresca que tudo armazena. Os jovens sabem de cor e salteado os algoritmos e ábacos que os mais velhos sabem onde e como aplicar. Uns têm a ferramenta, outros sabem utilizá-la. Feliz da corporação que sabe combinar experiência e arrojo, através de um quadro de pessoal que combina essas virtudes.

Lizandro sempre soube o que queria ser quando crescesse. À pergunta, sempre tinha a resposta na ponta da língua: megaempresário. Para tanto, preparou-se muito e estudou tudo que havia a respeito de Economia. Seu histórico escolar faz qualquer professor chorar de emoção. É uma monótona série de As. Lizandro saiu da universidade diretamente para o estágio naquela imensa rede de hipermercados. Ele foi descoberto pelo caçador de cabeças da grande corporação. Após rápida entrevista, deram-lhe uma posição no departamento responsável pela prospecção de novos mercados.

Canabarro tocava aquele setor com um equilibrado jogo entre a cautela e o arrojo. Ele logo percebeu o potencial do jovem imaculado Lizandro. O rapaz nadava no fervilhante caldeirão do entusiasmo de iniciante. Canabarro deu-lhe asas para ver até onde o estagiário iria. Estudou com cuidado a idéia de abrirem pet shops, nas lojas da cadeia, para o banho e a tosa das mascotes dos clientes em compras. Quanto mais tempo os clientes ficassem na loja, maiores seriam as vendas. Alexsandro, o outro estagiário, complementou a idéia. Ele sugeriu que combinassem pet shops com salões de beleza, divididos apenas por uma parede. Compartilhariam a mesma mão-de-obra, pois a atividade seria essencialmente a mesma. Corte e tosa não diferem muito.

Em outro projeto, Lizandro ousou demais. Ele imaginou um carrinho de supermercado com funções de cadeira de dentista. Os clientes fariam revisões dentárias e branqueamento dos dentes enquanto percorreriam os corredores das lojas. O dentista tripularia uma espécie de sidecar invertido, acoplado à lateral do carrinho de compras. Essa idéia foi um pouco além daquilo que Canabarro considerava exeqüível. Além de duvidar de que alguém andaria pelo hipermercado, de boca aberta e com um dentista dependurado ao lado, enquanto escolheria nabos e rabanetes, ele considerou o investimento nos tais dos carrinhos demasiadamente alto. Havia também problemas técnicos, como a assepsia, e outros, de logística. Para isso que Canabarro estava lá. Dependurava lastro nas idéias demasiadamente arrojadas dos estagiários intrépidos.

Uma idéia do Lizandro deixou Canabarro especialmente intrigado. O rapaz sugeria a venda de sacolas ecológicas não-descartáveis, que os clientes trariam a cada visita à loja, em substituição aos sacos plásticos descartáveis e poluentes, como se faz na Europa. Canabarro até entendeu a motivação ecológica, típica dos jovens, mas havia de pensar nos aspectos econômicos. Após uma venda inicial, poucos clientes comprariam novas sacolas ecológicas. Seria um negócio de curtíssimo prazo.

O que Canabarro ignorava, apesar de toda sua experiência, era que nenhum dos clientes se lembraria de retornar as sacolas às lojas, nas próximas compras. As sacolas ficariam esquecidas, em casa, e eles comprariam outras. O próximo passo seria a ecologicamente correta eliminação das sacolas descartáveis. Tudo em nome da natureza.

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8.9.08

457 - 2391-0010



Fonte: Wikipedia
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2391-0010

Por Paulo Heuser


Ah, como esperei por esta manhã de sábado! Ansiava por uma hora a mais de sono, que fosse. Apenas uma hora a mais. O maldito resfriado veio forte, e com esse clima nada melhor do que curtir a cama. Nestes dias a cama se parece com o paraíso, principalmente quando a chuva bate na janela. Então o maldito telefone tocou. Quem ligaria a essa hora da manhã? Seriam más notícias ou engano. Ninguém me acordaria a essa hora se não tivesse um assunto muito importante a tratar. Era uma máquina.

Uma máquina me ligou! Já sou obrigado a falar com máquinas quando utilizo os serviços dos maravilhosos SACs, Call Centers ou seja lá que nomes lhes dão. Porém, desde que o Lula ligou, na eleição anterior, nenhuma outra máquina me ligou. Desta vez não foi o Presidente pedindo votos. Foi a 2391-0010. A máquina de voz feminina não queria comprar votos. Ela queria me vender novas amizades pelo preço de uma ligação local. Acordei, a contragosto.

O Lula eu ainda posso xingar, ligando para alguma ouvidoria. Posso alegar que nunca ninguém antes neste País me ligou tão cedo para pedir voto. Mas, contra uma máquina anônima, o que posso fazer? Ela não tem nome nem endereço. Tenho o número do telefone dela – 2391-0010 -, o que em nada me ajudaria, pois seu eu ligasse para ela, cairia na armadilha. É exatamente o que ela queria que eu fizesse. Faria novos amigos, seu eu ligasse? Amigos baratos, sem dúvida, pois custam o mesmo que custa uma ligação local. Novos amigos em promoção, portanto.

Já que eu estava acordado, resolvi tentar encontrar o dono da máquina. Foi então que descobri que o Tio Google não estava nem aí. Culpa do meu acesso Internet que apresentava forte soluço, fazendo eco a minha tosse. De nada adiantou segurar a tosse, pois o soluço continuava. Fazer o quê! Disquei para o SAC do provedor e segui o menu apresentado pela... pela... máquina! Outra máquina, esta muito simpática.

- Disque 1 para problema de sinal da Internet... Disque 2 para problema com o sinal da TV... Disque 3 para problema com o telefone... (esta é curiosa, discar como?)... Disque 4 para problema com mais de um dos anteriores... Disque 5 para problema com todos os anteriores... Disque 6 se você é deficiente auditivo... Disque 7 se você esqueceu o que eu falei antes... Disque 8 para ouvir musiquinha... Disque 9 para falar com alguém, após ouvir a musiquinha, é claro.

Teclei 1 e descobri que outra máquina me atenderia. Essa bem mais informal que a anterior, pois veio falando direto na íntima demais segunda pessoa do singular. Íntima demais para uma máquina. Foi também uma máquina esperta, pois captou logo o problema. Ela intercalou alguns “entendo” no diálogo (?). A coisa terminou por aí. As ligações foram interrompidas pelo tu-tu-tu-tu. Fiquei sem atendimento, mas não fiquei sem Internet. Tenho uma vizinha muito prestativa. Ela empresta xícaras de açúcar, farinha, ovos e sinal de Internet sem fio.

Vida moderna é assim, não sei o nome dela, apenas o sobrenome. Algo como dlink.

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5.7.08

423 - Onde está você?



Foto: Wikipedia
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Onde está você?

Por Paulo Heuser


Todo dia surgem inovações tecnológicas que maravilham os tecnófilos. Há gente que não gosta de permanecer horas a fio olhando para pequenas telas, enquanto apertam minúsculos botões. Porém, a maioria gosta. Um habitat dos tecnófilos é o saguão do aeroporto. Eles usam mochilas de acampamento, trocando o saco de dormir pela parafernália eletrônica. Ambos são muito úteis, nos dias de hoje. O sujeito pode repousar, enfiado no saco de dormir, enquanto espera o aeroporto abrir. Para passar o tempo, acessam os sítios de tecnologia da Internet, onde encontram novas parafernálias eletrônicas, que exigem novas mochilas. Por falar nelas, algumas estão recheadas com baterias para os inúmeros dispositivos que fazem parte do uniforme de executivo moderno. Há modelos que foram dotados de painéis solares, carregando as baterias enquanto o usuário anda ao Sol, ou seja, nunca.

Quem carrega todos esses trastes está em um de três lugares: na sala de espera do aeroporto, na sala de espera dos clientes ou na sala de espera de casa. Eles nunca chegam, estão sempre esperando. Os tecnófilos sofrem muito com a depressão tecnológica provocada pela descoberta de que a sua parafernália eletrônica não é mais a mais moderna. Lançam algo mais avançado, e, o que é pior, sempre há pelo menos duas novas gerações de trastes, prontas para lançamento, na espera apenas pelo obsoletismo da anterior. Os compradores das tralhas têm apenas uma semana de prazer da novidade. Após o descanso do sétimo dia, tornam-se aqueles que têm o modelo anterior. Poucas coisas vexam mais um tecnófilo que a propriedade de um modelo anterior.

Os fabricantes das tralhas apelam para alguns artifícios, para venderem os novos modelos da parafernália eletrônica. Eles contratam pessoas com a aparência de tecnófilos bem sucedidos, que andam pelas salas de espera dos aeroportos, exibindo o objeto do desejo daqueles que adoram telinhas e ícones. As tralhas já vêm sem botões. Basta fincar-lhes a unha. Os mais sofisticados salões de estética já oferecem o trato de unhas compatível com iPhone Touch, maravilha que combina as funções de computador e uma série de outras coisas. Ah, é um telefone. De toque?

O melhor das tralhas eletrônicas ainda está por vir. Você deixará de ser apenas um ponto na multidão. Será um ponto identificado na multidão identificada. Seja através do chip do seu celular, seja através de reconhecimento biométrico, eles saberão onde você está. Quem são eles? Ora, são eles. Os que querem lhe vender algo. Você entrará numa loja de departamentos e o computador do marketing perceberá sua presença. Ele consultará o banco de dados, pesquisando quais foram suas últimas compras, seu crédito, seus hábitos, hobbies, etc. Aí você estará ferrado. Seu cadastro poderá indicar que é louco por lingiere feminina, graças a sua namorada, que levou seu celular por engano, no dia em que ela fez compras naquela loja. O sistema de som ambiental anunciará, a plenos pulmões:

- Boa tarde, Sr. Fulano. Recebemos novos modelos de espartilhos para seu manequim, na cor que você usa!

No restaurante, a coisa poderá ficar igualmente complicada, mesmo sem troca de identidade. O garçom poderá lhe trazer um cardápio alternativo, após verificar no banco de dados o resultado do seu último exame de colesterol. Você pedirá camarão frito e ele lhe trará peito de frango cozido no microondas. Você pedirá vinho, ele lhe trará suco de uva, pois o computador saberá que você entrou pelo estacionamento. Mesmo chegando de táxi, poderá ter problemas. Quem pedir um vinho mais caro, para impressionar a mulher que o acompanha, poderá ouvir:

- Excelente escolha, senhor! Porém, devo avisá-lo de que o sistema informa que esse vinho está além das suas possibilidades de consumo. Pelo seu retrospecto enológico, o senhor não saberá apreciar a bebida. Ele lembra também que a prestação do carro vence na segunda-feira, e a do motel, cuja última fatura o senhor parcelou, na terça. Para beber, lhe recomenda cerveja.

Florescerá o mercado do celular-laranja. Venderão aparelhos com chips que levarão ao cadastro de monges contemplativos enclausurados, que nada consomem, além de comida e túnicas simples. Quando o reconhecimento biométrico for implantado por toda parte, as burkas – vestimentas muçulmanas que cobrem todo o corpo – serão muito utilizadas, inclusive pelos homens, na tentativa de passarem incógnitos.

Ontem, tememos os vendedores de enciclopédias. Hoje, tememos os gerúndicos telemarketeiros. Amanhã, temeremos a sombra. Ela pode ser biometricamente reconhecida.

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24.6.08

417 - Segunda via


Foto: Relojoaria.com
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Segunda via

Por Paulo Heuser


Noutro dia eu estava espiando um relógio de pulso, numa vitrine, pois percebi nele uma característica curiosa. Além de exibir o dia do mês, exibia também o anterior e o posterior. Fiquei pensando na utilidade daquilo. O dia do mês é uma informação completa, por si só, a não ser que o comprador do relógio seja um recém- libertado pelas Farc, e ignore o mês e o ano nos quais se encontra. Sei que muitos relógios sofisticados exibem informações utilíssimas, como o século, as marés do Mar Morto, as fases das luas de Urano, coisas fundamentais para qualquer ser urbano socialmente bem colocado. Ali parado, com cara de idiota, acabei chamando a atenção de duas vendedoras, que logo me cercaram.

- Pois não, senhor. Percebemos que o senhor se interessou pelo relógio!

- É verdade. Confesso que não entendi por que ele exibe três dias, em vez de apenas um, como os demais.

- Ah! – exclamou uma das vendedoras – O senhor reparou nessa característica única desse relógio.

- Sim, não há como não reparar.

- É fascinante, não é? – disse ela, orgulhosa.

- Não deixa de ser, em tese. Mas, qual é a utilidade disso?

- Ora, senhor. Essa exclusividade permite que o senhor saiba quando foi ontem, quando é hoje e quando será manhã!

- Assombroso! Mas, não bastaria que eu somasse ou subtraísse um da data de hoje?

- Oh, é claro, mas o senhor poderia errar! E no dia 31, o que o senhor faria? Diria que o dia seguinte seria o 32?

Sorri, agradeci, e saí de lá. Constatei que nem sempre falamos a mesma língua daqueles que falam a nossa língua. Notei também que a lógica das vendas tem parecido um tanto ilógica. Fiz um teste com um operador de telemarketing que não aceitava não como resposta à proposta de contratação do serviço que a empresa dele tentava me empurrar. Em resposta à terceira ou quarta pergunta sobre os motivos que me levavam a não aceitar a proposta, escancarei:

- Porque essa empresa não presta. Nada do que ela produz pode me interessar!

- Sim, mas então o senhor não estaria interessado no plano básico, mais em conta?

- Não!!!

- Qual seria a razão?

Fiquei sem razão. Não sabia mais o que pensar. Nada do eu pensasse seria compatível com os neurônios daquele ser, não-humano, pelo visto.

Hoje cheguei a uma daquelas empresas que identificam todos os visitantes, compreensivelmente. Eles cadastram todos os visitantes, por ocasião da primeira visita. Depois, basta apresentar o documento, cujo número é digitado pela recepcionista. Acostumado com o acesso instantâneo, fui surpreendido pela luz vermelha. Eu fui barrado. Após digitar algumas coisas, e olhar para a tela do comutador, espichando o pescoço, a recepcionista sorridente informou a razão:

- Ah, já entendi! O senhor apresentou a segunda via do documento, que não está cadastrada! Apenas a via original pode lhe dar acesso.

Pensei, por um momento, e resolvi seguir a lógica que ela seguia:

- Já sei! Voltarei para casa e mandarei minha segunda via, no meu lugar! Segunda via com segunda via pode, não pode?

Ela continuou sorrindo, pareceu apenas um pouco indecisa, mas falou:

- Bem, acho que vai funcionar...

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14.4.08

385 - O Homem Xaxim

Wikipedia
O Homem Xaxim

Por Paulo Heuser


As sextas-feiras são dias diferentes dos outros, o que, por si só, não chega a constituir uma constatação espantosa. É na sexta-feira que os tipos mais estranhos juntam-se a fauna reinante no Centro. Os tipos que passam por ali todos os dias deixam de chamar a atenção. Destacam-se tanto como os postes e os bancos da praça. Os da sexta-feira são diferentes, a começar pela periodicidade com que freqüentam o lugar. Não sei o que fazem no resto dos dias da semana.

Na sexta-feira passada, surgiu um novo, pelo menos para mim. Era um sujeito com ares de quem apanhou muito da vida. Mal cuidado, ostentava uma barba escura muito cerrada, indo-lhe até a cercania dos olhos. Lembrava o Dr. Cornelius do Planeta dos Macacos – o filme. O homem chamava a atenção de todos os passantes porque aparentava esmurrar uma parede de salpique, coisa tremendamente estúpida para se fazer. Os passantes só não se viravam para olhar porque temiam que o pugilista interrompido mudasse de alvo.

Parei na banca de revistas, olhando disfarçadamente para o pugilista, enquanto fingia observar as revistas da semana. O jornaleiro percebeu o foco do meu olhar e disse:

- É o Homem Xaxim. Andava sumido, mas voltou.

Ele explicou-me que o apelido viera da barba grossa e espessa, que dava ares de xaxim ao infeliz. Realmente, ele se parecia com um tronco de xaxim ambulante, vestido no traje que algum dia fora preto. O jornaleiro continuou contando mais uma dessas lendas urbanas sobre pessoas que foram do sucesso à miséria. O Homem Xaxim era um outrora renomado consultor em vendas, que treinava as equipes das melhores empresas do País e do exterior. Seu nome verdadeiro era Abraão Weizenbierstube. O homem era graduado em Medicina, especializado em Anestesiologia, pós-graduado em Geologia, doutorado em Marketing e membro laureado do CBEP - Colégio Brasileiro de Empinadores de Pipas. O antes Abraão, agora Homem Xaxim, defendeu uma tese em Marketing que conquistou os meios acadêmicos. Segundo suas pesquisas, os agentes do mercado deveriam ressignificar os paradigmas dos modelos afetivos de relacionamento roll-in/roll-out, perseguindo a excelência de crossover do hipocampo trans-hemisférico lateral. Traduzindo, na linguagem daqueles que não empinam pipas, comprador e vendedor deveriam chegar a um acordo. Essa tese passou como um furacão sobre os mercados. Abraão aprofundou-se nas técnicas para sugestão assistida da vontade de comprar, por parte dos agentes fornecedores do mercado, e da sugestão assistida da vontade de fornecer, por parte dos agentes receptores do mercado. Ele estudou as técnicas de sugestão desenvolvidas pelo desconhecido Dr. Yuri Kalashnikov, desaparecido prematuramente durante um bombardeio no Afeganistão. A lenda urbana reza que o agora Homem Xaxim hipnotizou a si próprio, enquanto Dr. Abraão, produzindo uma dicotomia vendedor/comprador, na mesma pessoa, apoiada na falácia de falsa bifurcação pré-frontal. Desde lá, ele vem oscilando entre os dois papéis de mercado. Ou seja, tenta vender desesperadamente, para si mesmo, ora como vendedor, ora como comprador. Esse dilema leva à tentativa de autodestruição, contida no último instante pelo pólo oposto. Enquanto cresce a cinética vendedora, reduz-se o potencial comprador, e vice-versa. O Homem Xaxim nunca consegue vender para si próprio. Chega muito próximo da venda, mas nunca chega lá. Esse fenômeno já é conhecido, nos meios acadêmicos, como o Paradoxo Weizenbier-Xaxim.

O mistério estaria resolvido, se não fosse a pergunta que continuava no ar. O jornaleiro pareceu adivinhar novamente meus pensamentos:

- Você quer saber o que ele tenta vender a si mesmo? Ora, um espelho.



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17.8.07

O chá da irmã do Zé


O chá da irmã do Zé

Por Paulo Heuser


A irmã do Zé é o tipo de pessoa que passa despercebida. Não é alta, nem baixa. Não é gorda, nem magra. Chamá-la de feia seria exagero, de linda, também. Ela é medianamente média, eqüidistante dos extremos de qualquer adjetivo físico. Quando caminha, ninguém percebe, pois não rebola e não usa saltos barulhentos. Usa o cabelo preso atrás, de forma prática e nada chamativa. Maquiagem, só para disfarçar algo que possa chamar a atenção. Veste-se de cinza ou marrom. Ou seja, ela é comum, extremamente e monotonamente comum.

Quem conhece a irmã do Zé há mais tempo, sabe que, por dentro, é outra pessoa. Ao seu modo, conquista a simpatia de todos, com o decorrer do tempo. Contudo, ela sofre com a transparência de sua presença em ambientes estranhos e no trabalho. Quando chega à festa, ninguém nota, nem o porteiro que confere os convites. É a última a ser atendida nas lojas. Nunca foi a escolhida para os times de hóquei no barro e newcomb. Jogava muito bem, mas ninguém notava. Jogava bem sem ser espalhafatosa. Jogava xadrez, em silêncio, sem gritar a cada jogada nem ameaçar fisicamente os adversários. Passou despercebida, também no xadrez. Perdeu a vaga na equipe para aquela morena que gritava “hãããããã...”, a cada jogada, enquanto chutava as canelas dos adversários, por baixo da mesa.

A depressão acabou tomando conta da coitada. A gota d’água foi um assalto no restaurante onde ela almoçava. Os ladrões limparam todo mundo. Levaram até o celular de cartão do cozinheiro. Após deixarem todo mundo pelado, trancaram-nos nos toaletes. Menos a irmã do Zé. Deixaram de notá-la. Voltou para casa sozinha, vestida, com suas coisas, porém chorava as lágrimas do esquecimento. Se nem os ladrões a notaram, que homem a notaria? No trabalho, as coisas iam de mal a pior. Ninguém lhe dava a mínima, nas reuniões. Pedia a palavra, através de gestos, mas nunca foi atendida. Entrava como saía, quieta e despercebida.

O Zé bem que tentou mudar o modo de vestir e de ser da irmã. Comiserado, pois assistia ao sofrimento dela, porém sabedor de que ela não mudaria o jeito de ser, Zé lhe recomendou uma terapia alternativa. Não acreditava no método, mas poderia fazer com que a irmã percebesse que o problema residia nela mesmo. Sua mesmice e a falta de autopromoção causavam seu esquecimento. Uma amiga segredou ao Zé, que conhecia uma terapeuta fito-hidráulica, que curava qualquer coisa não-diagnosticável, utilizando chás como medicamentos.

A irmã do Zé teve de chamar a secretária da terapeuta duas vezes. Já lera todas as revistas de consultório, enquanto sete pacientes passaram à sua frente. A secretária desculpou-se, não a havia notado. Seguiram-se oito sessões de RIFH – Reposição de Imagem Fito-Hidráulica. Já a partir da segunda, a irmã do Zé notou que algo mudara. Passou a procurar o tolete com mais freqüência. Contudo, ninguém notava quando abandonava as reuniões para ir lá. Tentou outra abordagem, beber o chá durante as reuniões. Nada, ninguém notou. Quando tudo parecia perenemente esquecido, ela colocou um saco de chá na boca, deixando a cordinha e a etiqueta para fora. Não sabe por que fez, apenas fez. Quando deu por si, doze rostos olhavam para ela. Pode ouvir alguém perguntando ao colega: - Nossa, quem é essa aí?

Desde então, a irmã do Zé é outra mulher. Chega vistosa, em roupas coloridas esvoaçantes, chamando a atenção sobre si. Na rua, viram-se para olhá-la. Nas reuniões, basta um olhar, para que lhe dêem a palavra. Houve quem acreditasse se tratar de uma nova funcionária, ou alguém mandada pela matriz. Ela já não coloca mais o saquinho de chá na boca. Deixa apenas a cordinha e a etiqueta, penduradas para fora. O chá ficava muito forte.

A irmã do Zé sabe que tudo muda, tudo evolui, inclusive o marketing pessoal. Já pensa em trocar as etiquetas vermelhas pelas verdes. Uma cordinha amarela, quem sabe? Ela também sabe que o chá deixará de fazer efeito, qualquer dia. Está fazendo testes com uma nova tática. Colocará pastilhas de sonrisal sob a língua e beberá fanta uva, enquanto fala.
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