26.10.09

559 - Saudades da terra distante


Foto: Wikipedia
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Saudades da terra distante

Paulo Heuser

Anna Kovács Szabóné nasceu na Hungria. Ela é um daqueles exemplos de pessoas que viveram intensamente a História. Poucos sabem da vida dela, talvez pela sua discrição, talvez pela dificuldade para se expressar corretamente em português. Anna imigrou com o finado marido, András Szabó. Fugiram do nazismo. Saíram da pequena Domonyvölgy, aos pés do que hoje é a Gödöllöi Dombvidék Tájvédelmi Körzet. Anna chora de saudades do falecido. Chora também pelo que deixou para trás. Aquele, sim, é um povo que honra seus tremas. O jovem casal fugiu, através do Adriático, a bordo de um barco que transportava chucrute. Deram em Malta, de onde foram levados a emigrar, através de um navio mongol seqüestrado por piratas somalis. Após oito meses de viagem, chegaram ao porto de Rio Grande, no sul do Brasil. Dali eles foram levados à pequena Nova Ludovica. Foram assentados em meio aos descendentes de imigrantes prussianos, já que dominavam a língua falada pelos outros órfãos do Império Austro-Húngaro.

Os primeiros tempos foram difíceis, como também o foram todos os demais. Contudo, András abriu uma selaria, e dela tirava seu sustento. Anna se dedicou a fabricação de pães e biscoitos da saudosa Magyarország, a Hungria, em húngaro. Pobre pátria mãe, invadida pelos magiares, mongóis, turcos, habsburgos, russos e, finalmente, pelos mecdonaldos. Se os bárbaros modificaram os costumes de lá, Anna preservou-os aqui. O segredo do sucesso dos produtos fabricados pela Anna se chamava mákszem, as sementes de papoula, cuja importação foi recentemente regulamentada pela Anvisa, ou seja, ninguém mais consegue obtê-las. Os fregueses se foram. Anna protestou, em húngaro e em vão. A importação não está proibida, está apenas regulamentada, dizem. Antes estivesse proibida, pois assim, estaria liberada, como tudo está, nesta terra que recebeu o casal Szabó de braços abertos e papoulas fechadas. Os pães de Anna foram enquadrados pelo Escritório contra Drogas e Crime da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE), das Nações Unidas.

Apesar desse formidável obstáculo, apenas mais um na saga dos Szabó, a vida segue. Anna poderia resignar-se e descansar, pois conta com a aposentadoria de quase dois terços de salário mínimo. Mas, não! Quem sobreviveu à travessia do Adriático, a bordo de um transporte de chucrute, não esmorece tão facilmente. Ela transferirá a fábrica doméstica de pães para o Rio. Substituirá a semente de papoula por outra, verdinha, de mais fácil obtenção, não regulamentada, porém, proibida, portanto, abundante.
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N.A.: Este texto é um conto. Portanto, é ficção.

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22.10.09

558 - O mapa da Groenlândia

Imagem: Wikipedia
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O mapa da Groenlândia

Paulo Heuser

Tarde abafada. Tudo anda lento. Até as moscas se arrastam. É difícil vencer o cansaço. Em dia como este até a própria existência leva à exaustão. Os ombros do Roberto pesam uma tonelada. Ele chega e se joga na poltrona modernosa da antessala do chefe. Pereira já está lá, estatelado na outra poltrona, arrastando atrás de si o mesmo ar de cansaço. Distrai-se navegando pelo celular. Eles se cumprimentam com um aceno. Participarão da última reunião do dia, se Deus e o chefe quiserem, não necessariamente nessa ordem.

Roberto tira do bolso um sanduíche amarrotado. Passou pela cantina, pois a pauta da reunião é longa. Havia escolha, entre os sanduíches de chester, bacon e salame. Optou pelo primeiro, apesar de não imaginar a cara de um chester. Todos apresentam algo em comum, maionese, muita maionese, muita, mesmo. Ele está preparado. Traz vários guardanapos de papel e improvisa um babeiro. Do primeiro sanduíche natural ninguém se esquece, principalmente a camisa. Maquinalmente, Roberto oferece o lanche ao Pereira, que recusa e se queixa de dor de barriga. Coisas do estresse provocado pela vida de entra e sai em reuniões. Trinta anos de muita tensão, metas, cobrança de resultados e enxugamento.

Roberto fura o invólucro do lanche e meleca o dedo com maionese. Comida de estagiário, pensa. Afasta o plástico e morde com o canto direito da boca, tomando o cuidado de inclinar a cabeça para a esquerda, de modo que o excesso de maionese escorra para o babeiro. Sempre escapa um pouco e empasta rosto e dedos. Ele esfrega o guardanapo impermeável no rosto, aumentando a área melecada. Os traços de maionese se estendem da orelha ao nariz. O tomate picado cai, pois o pão seco deixa o conteúdo vazar. Enquanto equilibra uma ervilha com a língua, Roberto observa a sala. Gastaram um bom dinheiro nela. Melhor do que isso, só na Diretoria, no andar de cima. Olha para o teto, pela primeira vez, e observa que ele é de vidro, assim como o piso do próximo andar. É estranho olhar as pessoas dessa forma. Vê muitos sapatos e sandálias, pois há algum evento social ocorrendo sobre a sua cabeça. Olha direto para cima, e tomates e ervilhas fogem do controle. Pudera, há uma mulher de saia exatamente sobre o lugar onde ele está sentado. Ele fica lá, boquiaberto, olhando diretamente para cima. Esquece um pouco o sanduíche e a maionese e, ainda boquiaberto, olha para o Pereira, que, pelo visto, também viu aquilo. Sem tirar os olhos do teto, ele pergunta ao Roberto:

- Sabe quem é?

- Não, Pereira, você sabe?

- Sei, é a Ritinha, da Contabilidade.

Roberto pensa, em meio a um ataque repentino de torcicolo, em como o Pereira a reconhece, por aquele ângulo, já que tudo que vêem são duas solas de sapatos e um par de longas pernas que sobem até um lugar que se assemelha ao mapa da Groenlândia.


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19.10.09

557 - Plutônio-168


Fonte: Wikipedia
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Plutônio-168

Paulo Heuser

Levou 37 anos, mas, aconteceu. Demolélio encontrou um livro, O despertar dos deuses, do finado Asimov. Em primeiro lugar, faz-se necessário apresentar o Demolélio, já que ele vive em um universo paralelo ao nosso. Parece confuso. Porém, é muito mais confuso do que parece. Em poucas palavras, ele é o um ex-descendente dos representantes de uma antiga ONG, os Pobres Cavaleiros do Rei Salomão, também conhecidos pelas designações Pocaresa e Templários. Pois bem, esses cavaleiros eram mercenários para lá de ricos, até que endividaram um político importante, o tal de Guilherme de Nugget. O sujeito não deixou por menos e conseguiu que o manda-chuva, chamado Clemente Vê, nada clemente, terminasse com a ONG medieval. Depois disso, os sobreviventes da confraria se esconderam. Guardavam segredos milenares. Conta a lenda urbana que os Pocaresas escondiam um objeto fantástico, um cálice sagrado.

Demolélio caiu na mão de agiotas e ficou na mesma situação do Nugget, quebrado. Como não havia mais Clemente, teve uma idéia, coisa de empreendedor. Comprou uma xícara pavorosa, numa loja de 1,99 e tentou vendê-la aos confrades, que até então procuravam a famosa porcelana. A situação era embaraçosa, a ONG havia perdido a xícara, em algum momento do passado. Contudo, ele não contava, nem com a presbiopia, nem com a marca da xícara. Qual foi o idiota que colocou marca numa xícara de 1,99? A marca estava ilegível, mas, lia-se claramente made in Biguaçu. Desmascarado, Demolélio vê-se na rua, ninguém mais lhe dá emprego ou ajuda. Os Pocaresas continuam procurando pela xícara e todo mundo acredita que eles a têm.

A rua fez um estrago considerável no semblante do ex-cavaleiro de Salomão. Barba e cabelos se misturam num emaranhado que só pode ser definido como pêlo. O sorriso lembra uma ficha de compensação, puro código de barras.

Demolélio revirava uma lixeira, lá pelo Bonfa, quando encontrou o livro. Trinta e sete anos após a publicação, os olhos embaçados devoravam as páginas de uma história estranhíssima. Seria melhor não aumentar a confusão, mas é necessário. Em mais umas poucas palavras, alguém trocou uma amostra de tungstênio-168 por uma de plutônio-168, num laboratório. Rarará, dirão, plutônio-168 nem existe! É verdade. Qualquer um sabe disso. Além de não existir, não pode ser obtido, nem pela transmutação por decaimento. O personagem, Dr. Hallan, logo conclui o óbvio, aquela amostra veio de um universo paralelo. Em pouco tempo, alguém tem a idéia de construir um dispositivo que troca o estável tungstênio-168 pelo instável, portando físsil, plutônio-168. O que é estável aqui, torna-se instável lá, e vice-versa. O que parece uma fonte inesgotável de combustível nuclear, na verdade, mostrar-se-á como um esquema que levará à destruição de ambos os universos.

Demolélio coça os pêlos da cabeça. Ele vive em um universo paralelo, que não é o mesmo daquela bela mulher que passa correndo ao lado dele, fazendo jogging, sem vê-lo. O código de barras do sorriso dela não tem barras, só brancos. Aquele livro o fez lembrar que outro mundo existe. O que acontecerá, quando interagir com o seu, ele já sabe. Destruir-se-ão, mutuamente. É puro plutônio-168. Confuso, porém, físsil prá caramba!

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17.10.09

556 - Quarenta e três vinte e seis

Imagem: Wikipedia
Quarenta e três vinte e seis

Paulo Heuser

Caminhar na rua é coisa de pobre. Rico caminha na esteira. Pois, lá vou eu. Desfruto este sábado maravilhoso de primavera. Nem frio, nem quente, apenas perfeito. Deixo a esteira para trás, já que nem a tenho. Opto, compulsoriamente, pela rua. Maravilha. Sigo, pela 24 de Outubro, e paro para atravessar a Cel. Bordini Flores. Quem lá sabe que a Bordini é Flores? Aperto o botão e aguardo, conforme instruções. Aguardo, aguardo e aguardo. Quando já me esqueço do que fui fazer lá, o bonequinho do sinal muda, de vermelho, para verde. Aguardo ainda a passagem dos últimos 27 carros, que queimaram o sinal, e inicio a longa travessia. A visão do boneco caminhante verde é obstruída, repentinamente, pelo ônibus 4326. Nenhum carro passa, somente aquele imenso ônibus 4326, vindo da 24, ignorando o sinal e ingressando na Bordini, o Flores se foi, de susto. Ficamos, eu e o bonequinho verde, nos encarando. O 4326 se vai, Bordini abaixo, não antes de uma brecada, para que o motorista pudesse gritar qualquer coisa a respeito dos pedestres idiotas que, como pinos de boliche, acreditam nas carreirinhas brancas ornadas pela luzinha do boneco verde. Agora, mais calmo, percebo meu erro. Não usei o Novo Sinal. Besta, eu. Sou retrógrado, escrevo com tremas e atravesso no sinal, sem medir conseqüências. Saramago pode escrever daquele jeito, sem medo, porque é português. Nós, brazucas, temos de matar as ideias e fazer o Novo Sinal. Saramago desdenhou a Reforma Ortográfica muito antes de ela sequer ter sido imaginada. Se Cabral houvesse navegado segundo um manual escrito pelo conterrâneo, Nobel das letras, seríamos groenlandeses.

A verdade é uma só, sinto-me ridículo fazendo o Novo Sinal. A luz vermelha, na cara do motorista do 4326, o bonequinho verde, a faixa de retenção, a faixa de pedestre, a Lei e um mínimo de civilidade deveriam ser suficientes para pará-lo. Mas, não são.

De alguma forma, apesar do 4326, consigo chegar a Redenção. Na volta, evito a 24 de Outubro, pois temo o retorno do 4326. Prefiro descer a Padre Chagas, onde há muito de belo. Belas pessoas, belas lojas, tudo belo. Tenho dificuldade para cruzar o passeio do café chique. As mesas ocupam a passagem, e eu necessito de mais espaço. O único espaço que ainda poderia servir está ocupado pelas mascotes mastodont terrier de duas senhoras, vestidas de meninas, que bebericam champagne, deixando marcas indeléveis de batom nos cálices. Um arroto de Bollinger transforma qualquer bafo de pudim de gambá em autêntico parfum de pouding de putois. Uma sorridente garçonete percebe o meu embaraço e avisa: mesmo de pé, devo consumir alguma coisa. Afinal, estou ocupando espaço.

Corro para a Farrapos, no Baixíssimo Morro Ricaldone.

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12.10.09

555 - Dois palitos

Foto: Wikipedia
Dois palitos

Paulo Heuser

A solidão é cruel, e Sérvulo é a sua personificação. Não teve pais. Ou melhor, teve, mas nada sabe deles. Ele foi largado na porta dos Figueroa Brandenburgo, depressivos que, ao longo da vida, trocaram poucas palavras, todas referentes à falta de papel higiênico. - Papel! - gritavam, um ao outro. Sérvulo cresceu em meio ao silêncio mudamente pactuado. Não recebeu carinhos nem afagos, apenas o materialmente necessário à subsistência. Passou despercebido pela escola. Não foi aluno brilhante, nem foi mau aluno, foi apenas figurante. Ele não fez amigos, e, passados poucos anos, ninguém mais se lembrava daquele rapaz que aparecia no canto da foto de formatura. Como era mesmo o nome dele?

Alguns dias não são muito ruins. Porém, nas datas festivas a solidão rasga a alma. Sérvulo faz questão de sumir, antes do Natal, da Páscoa e, especialmente, do Dia das Mães. Ele sonha com a mãe que não teve. Nos sonhos, ela não tem rosto. Dos Figueroa Brandenburgo nada se lembra. Sequer guarda fotos deles. Aliás, jamais as teve. O velho foi primeiro, depois ela, ou seria o contrário? O fato é que deixaram de gritar pelo papel higiênico. O rapaz é apenas um número. Somente as máquinas sabem dele. Identidade, CPF, número de matrícula, contas e senhas, nada mais, ele é um amontoada de números e senhas. Enquanto delas se lembrar, será alguém, depois, será nada.

Chega o Dia das Crianças. Sérvulo não some. Enfrenta a data. Como que zombando da solidão, vai às ruas. No mercado, assiste à cena trivial, o casal compra mantimentos, acompanhado pelo filho. Defronte das conservadoras de congelados, a mãe abraça o marido e a criança e, apertando o pequeno contra si, oferece-lhe uma lasanha de microondas, coisa destes novos tempos. Aquela massa dos tempos da vovó, que não tinha mais nada a fazer, dá lugar à caixa de alimento congelado aquecida pelo aumento da energia cinética das moléculas de água. O magnetron despejará radiação, na freqüência de 2,45 GHz, e, voilà, o pequeno desfrutará da comida aquecida em casa, com todo carinho da mamãe. E do microondas. A cena comovente derruba Sérvulo. O casal se afasta, abraçado, levando sua prole e sua caixa de alimento congelado. Tocante. O solitário chora, pela primeira vez. A estranha sensação de abandono dá lugar à ausência de qualquer apego à vida. Ele zombará da solidão dando fim a tudo. Sem saber por que, vai ao toalete. Lá, sobre um dos mictórios, restam largados dois palitos de dente. Dois, um fazendo companhia ao outro. Nem os palitos de dente são tão solitários como ele.

Sérvulo não planeja, pois quer pegar a solidão de surpresa. Joga-se pela janela. A escuridão toma conta de tudo. Já? É tão fácil? Em meio ao breu, ouve uma voz, primeiro distante, depois mais forte:

- Número de série 1269.5301.9297/5, por favor, digite a senha.

Situação confusa esta, afinal, está morto. Ou não? Ele tenta sentar-se, mas não há onde, nem sequer há um chão. Apalpa o nada ao redor. Nada. A voz retorna.

- Número de série 1269.5301.9297/5, por favor, digite a senha.

Por fim, sem senha, não lhe resta alternativa senão voltar à vida.

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9.10.09

554 - A ditadura do peso


A ditadura do peso
Paulo Heuser


Teodorico baba. É um fato. Há quem diga que aquilo é salivação excessiva e descontrolada, mas é baba, mesmo. Vários médicos tentaram diagnosticar o mal. Afastaram causas prováveis, como acalasia, apoplexia, paralisia de Bell, síndromes de Guillán Barré e Shy Drager e a doença de Wilson. Nada. É pura baba. Por fim, o deixaram assim, babando. O filho do vizinho, que tem a língua presa, mas não baba, diz que “há babas que bem paba o bem”. A baba não impediu que Teodorico se tornasse um grande pesquisador. No máximo, empapou seus cadernos. Ele acabou se jogando na pesquisa da percepção sensorial das manifestações fisiológicas oriundas da derivação de modelos discretos de quantização e amostragem de funções descontínuas não-envelopadas, dentro de um intervalo indefinido, naturalmente. Ou seja, ele tenta provar que a magreza está na moda porque o cérebro humano evoluiu para um esquema neuronal de funcionamento onde só há dois potenciais discretos, constante ou nulo. Algo visceralmente binário.

A baba pinga sobre as anotações. Teodorico não dorme faz dias, nem sabe quantos. Não há mais lenços secos. Sobre a mesa, além das anotações babadas, jazem restos de sanduíches e latas de refrigerante. Ele bebe muito refrigerante e produz baba com gás. Seus olhos estão semicerrados, e uma bolha de baba cresce pelo canto da boca. Entra Demência, a jovem bolsista orientada pelo gênio. Ela mantém distância prudente, pois teme a explosão daquela bolha. O colant branco anda está imaculado, mesmo após o espaguete ao sugo do almoço.

- Não dormiu, novamente, professor?

- Blub – a bolha explodiu –, sim, eu acho, ou não.

- Não adianta ficar acordado. O senhor tem de dormir.

- Só poderei dormir quando terminar de tabular esses dados.

- O que exatamente tenta provar?

- Blub, também, ainda não, talvez.

- Como?

- Bem, você não entenderia, de qualquer forma, falta-lhe o conhecimento básico.

- Tente, mesmo assim.

Teodorico demonstra impaciência, e nova bolha estoura, respingando baba no colant branco da Demência. Entre enojada e constrangida, ela cobre o seio direito, com o braço, e esconde a transparência revelada pela mancha de baba.

- Blub, tento provar que as pessoas estão engordando porque há uma alteração no mecanismo das sinapses cerebrais que as leva a comer mais e se exercitarem menos. É tudo muito neuroquímico, você não entenderia. Coisa de neurotransmissores, com sinapses entre vários neurônios, entre mais de 100 bilhões, que podem realizar 100 trilhões de ligações.

- Ah, tio! Não precisava todo esse trabalho. É só ajustarem o formato.

- Como, o formato das sinapses?

Demência age rápido, desta vez, e coloca a pasta em frente ao seio esquerdo, antes que estoure outra bolha de baba.

- Não, tio! O formato da imagem da tela de LCD. As pessoas só parecem gordas em formato 16X9. Ou, então, compre uma TV de tubo 4X3. É barata e emagrece.

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6.10.09

553 - Os Jogos Olímpicos

Imagem: Wikipedia

Os Jogos Olímpicos

Paulo Heuser

Os Jogos Olímpicos da Novíssima República iniciaram em 6 de outubro de 1897. Foi lá em Canudos, no sertão baiano. As tropas gregas federais haviam arrasado a cidade, após diversas tentativas de conquista, deixando milhares de cadáveres espalhados pelo arraial. Mel Gibson não teria feito melhor, teve sangue e tripa à vontade. As razões que levaram à Guerra dos Canudos são coisas há muito superadas, como a falta de terra e a má distribuição de renda. Os soldados da Olímpia do Rio de Janeiro, que participaram da derradeira e vitoriosa ofensiva, voltaram para casa e experimentaram um dos tradicionais costumes de governo, o calote. Ficaram sem soldo e foram morar no Morro da Providência. O morro acabou apelidado de Morro da Favela, em alusão àquele existente ao lado de Canudos, onde havia a planta favela. Então, prosperou o agronegócio, com as culturas extensivas de Erythroxylum coca, por parte dos gregos bolivianos, e de uma herbácea da família das Canabiáceas, ambas muito apreciadas pelos gregos republicanos que habitavam os baixios das praias da Olímpia do Rio de Janeiro. A estes vieram se juntar milhões de gregos de outros continentes que procuravam as maravilhas naturais da capital da Velha República, o sexo fácil e barato e os produtos pseudomedicinais derivados das plantas.

A acirrada concorrência entre os produtores agrícolas dos morros que cercavam a Capital iniciou a guerra civil, denominada Guerra dos Canudos II, lembrando a condição social dos gregos dos morros e um artefato utilizado no consumo dos produtos. Essa guerra se estende até os dias de hoje. Certa feita, o Zeus da Hora pensou numa forma de homenagear os gregos mortos em combate e idealizou encontros dos pseudo-helênicos de diversos morros. Como os conflitos entre os diversos grupos de gregos só cresciam, Zeus da Hora teve a idéia de organizar jogos com a participação de todos os habitantes dos morros que cercavam os baixios, quando haveria trégua. Os reis das Olímpias da Cidade de Deus, do Complexo do Alemão e da Rocinha, entre outros, pactuaram a paz temporária com o Zeus da Hora. Com o tempo, os gregos das demais Américas também se engajaram nos Jogos Pan-Helênicos-Americanos. O orçamento inicial, de 500 milhões de dracmas, logo foi estourado, tendo sido torradas 3,25 bilhões de dracmas, rombo coberto pelos gregos das demais regiões da Novíssima República. Findos os jogos, a guerra recomeçou.

Foi de Luiz XIII a iniciativa de convidar os demais gregos do mundo para participarem dos Jogos Olímpicos da Novíssima Era. Gregos da Europa, da Ásia, do Oriente Médio, da Oceania e da África darão as mãos aos gregos das Américas para uma nova trégua. Será tempo de novos esportes, como a corrida de Caveirão. Os gregos dos morros escoarão seus estoques reforçados de especiarias agrícolas. Luiz XIII colherá os louros. Os gregos construtores do baixio forrarão os bolsos com dracmas.

Todos serão felizes, e, acima de tudo, haverá paz.


N.A.: Se você já leu o texto, até aqui, provavelmente percebeu que ele não apresenta fontes históricas muito confiáveis. Ele sequer menciona Antônio Conselheiro. Portanto, desaconselho seu uso como fonte para trabalhos escolares.


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2.10.09

552 - Foram-se as orelhas


Foto: Wikipedia
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Foram-se as orelhas

De um tempo para cá, as orelhas vêm sumindo. As orelhas dos livros, bem entendido. O constrangimento é inevitável. Nada mais normal do que se entrar numa livraria para ler nas orelhas. Porém, sem orelhas, resta o quê? Ler o livro todo? Fica chato. As livrarias ficarão vazias. Bem, em resumo, é isto. Quer saber mais? Leia nas orelhas.

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1.10.09

551 - Pâté de foie de chameau

Foto: Cristina Heuser

Pâté de foie de chameau

Paulo Heuser

Priscila joga pôquer. É noite de quinta-feira, noite da confraria das Madalenas. Ela e as demais confreiras reúnem-se na casa da Mercedes, única descasada, para tornarem os outros seis dias da semana menos miseráveis, psicologicamente falando. Elas esquecem-se dos maridos, filhos, sogras e de tudo mais que as cerca. Pedem pizza e comem com as mãos. Findo o jantar, jogarão rodadas e mais rodadas de carteado, até que o álcool e o sono as vençam. Odeiam cozinhar. Priscila só bebe às quintas, nada socialmente. Enxuga meia garrafa de uísque. Depois da terceira dose, bebe no bico, intercalando os goles com gargalhadas que fariam a sogra ter ataques de alguma doença de senhôras, assim mesmo, com acento. Ou, talvez, no assento. Algumas fumam charutos. As quintas são do diabo. Elas vêm de taxi, pois não encontrarão o caminho de volta. Lurdes senta-se ao lado de Priscila.

- Pri, como está o Nando?

- Igualzinho, hoje está naquela confraria de cozinheiros.

- O Mario tá querendo entrar.

- Não entendo os homens. Tem coisa mais besta do que se enfiar numa cozinha e passar toda a noite preparando papinha esquisita? Eu fujo da cozinha, ele espera toda a semana para vestir aquela roupinha branca e se meter no meio daquele monte de homem. Todos vestidos de branco, parecem pais-de-santo. Depois, dão comida, uns para os outros, e se auto-elogiam. A maioria daria um dedo por um filé à cavalo e arroz com feijão.

- Ah, mas ele aprende as receitas e, depois, prepara aquelas coisas deliciosas prá ti, em casa...

- Tô fora! Se ainda saísse algo comestível, como um espaguete, no capricho, mas só sai coisa estranha! Em vez de beberem o vinho, enfiam-no na panela. Chega a dar dó. Na quinta passada, o Nando pagou 40 contos por uma garrafa de vinho e a despejou dentro da gororoba que ninguém comeu. Ele trouxe aquela meleca para casa, pâté de foie de chameau. Já pensou, alguém moer fígado de dromedário?

- Nossa, Pri, vou tentar segurar o Mário. Ficarei em casa e farei comida para ele. Esta jogatina não é tão importante assim.

- Deixe, Lú. Eu descobri uma coisa. As meninas brincam de casinha quando pequenas. Os homens, depois de velhos.

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