26.10.09

559 - Saudades da terra distante


Foto: Wikipedia
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Saudades da terra distante

Paulo Heuser

Anna Kovács Szabóné nasceu na Hungria. Ela é um daqueles exemplos de pessoas que viveram intensamente a História. Poucos sabem da vida dela, talvez pela sua discrição, talvez pela dificuldade para se expressar corretamente em português. Anna imigrou com o finado marido, András Szabó. Fugiram do nazismo. Saíram da pequena Domonyvölgy, aos pés do que hoje é a Gödöllöi Dombvidék Tájvédelmi Körzet. Anna chora de saudades do falecido. Chora também pelo que deixou para trás. Aquele, sim, é um povo que honra seus tremas. O jovem casal fugiu, através do Adriático, a bordo de um barco que transportava chucrute. Deram em Malta, de onde foram levados a emigrar, através de um navio mongol seqüestrado por piratas somalis. Após oito meses de viagem, chegaram ao porto de Rio Grande, no sul do Brasil. Dali eles foram levados à pequena Nova Ludovica. Foram assentados em meio aos descendentes de imigrantes prussianos, já que dominavam a língua falada pelos outros órfãos do Império Austro-Húngaro.

Os primeiros tempos foram difíceis, como também o foram todos os demais. Contudo, András abriu uma selaria, e dela tirava seu sustento. Anna se dedicou a fabricação de pães e biscoitos da saudosa Magyarország, a Hungria, em húngaro. Pobre pátria mãe, invadida pelos magiares, mongóis, turcos, habsburgos, russos e, finalmente, pelos mecdonaldos. Se os bárbaros modificaram os costumes de lá, Anna preservou-os aqui. O segredo do sucesso dos produtos fabricados pela Anna se chamava mákszem, as sementes de papoula, cuja importação foi recentemente regulamentada pela Anvisa, ou seja, ninguém mais consegue obtê-las. Os fregueses se foram. Anna protestou, em húngaro e em vão. A importação não está proibida, está apenas regulamentada, dizem. Antes estivesse proibida, pois assim, estaria liberada, como tudo está, nesta terra que recebeu o casal Szabó de braços abertos e papoulas fechadas. Os pães de Anna foram enquadrados pelo Escritório contra Drogas e Crime da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE), das Nações Unidas.

Apesar desse formidável obstáculo, apenas mais um na saga dos Szabó, a vida segue. Anna poderia resignar-se e descansar, pois conta com a aposentadoria de quase dois terços de salário mínimo. Mas, não! Quem sobreviveu à travessia do Adriático, a bordo de um transporte de chucrute, não esmorece tão facilmente. Ela transferirá a fábrica doméstica de pães para o Rio. Substituirá a semente de papoula por outra, verdinha, de mais fácil obtenção, não regulamentada, porém, proibida, portanto, abundante.
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N.A.: Este texto é um conto. Portanto, é ficção.

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1 Comments:

At sábado, 31 outubro, 2009, Blogger José Elesbán said...

O aviso lá ao final me lembrou as palavras de algum outro escritor: “é uma obra literária, é ficção, mas é tudo verdade!” ...

 

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