9.10.09

554 - A ditadura do peso


A ditadura do peso
Paulo Heuser


Teodorico baba. É um fato. Há quem diga que aquilo é salivação excessiva e descontrolada, mas é baba, mesmo. Vários médicos tentaram diagnosticar o mal. Afastaram causas prováveis, como acalasia, apoplexia, paralisia de Bell, síndromes de Guillán Barré e Shy Drager e a doença de Wilson. Nada. É pura baba. Por fim, o deixaram assim, babando. O filho do vizinho, que tem a língua presa, mas não baba, diz que “há babas que bem paba o bem”. A baba não impediu que Teodorico se tornasse um grande pesquisador. No máximo, empapou seus cadernos. Ele acabou se jogando na pesquisa da percepção sensorial das manifestações fisiológicas oriundas da derivação de modelos discretos de quantização e amostragem de funções descontínuas não-envelopadas, dentro de um intervalo indefinido, naturalmente. Ou seja, ele tenta provar que a magreza está na moda porque o cérebro humano evoluiu para um esquema neuronal de funcionamento onde só há dois potenciais discretos, constante ou nulo. Algo visceralmente binário.

A baba pinga sobre as anotações. Teodorico não dorme faz dias, nem sabe quantos. Não há mais lenços secos. Sobre a mesa, além das anotações babadas, jazem restos de sanduíches e latas de refrigerante. Ele bebe muito refrigerante e produz baba com gás. Seus olhos estão semicerrados, e uma bolha de baba cresce pelo canto da boca. Entra Demência, a jovem bolsista orientada pelo gênio. Ela mantém distância prudente, pois teme a explosão daquela bolha. O colant branco anda está imaculado, mesmo após o espaguete ao sugo do almoço.

- Não dormiu, novamente, professor?

- Blub – a bolha explodiu –, sim, eu acho, ou não.

- Não adianta ficar acordado. O senhor tem de dormir.

- Só poderei dormir quando terminar de tabular esses dados.

- O que exatamente tenta provar?

- Blub, também, ainda não, talvez.

- Como?

- Bem, você não entenderia, de qualquer forma, falta-lhe o conhecimento básico.

- Tente, mesmo assim.

Teodorico demonstra impaciência, e nova bolha estoura, respingando baba no colant branco da Demência. Entre enojada e constrangida, ela cobre o seio direito, com o braço, e esconde a transparência revelada pela mancha de baba.

- Blub, tento provar que as pessoas estão engordando porque há uma alteração no mecanismo das sinapses cerebrais que as leva a comer mais e se exercitarem menos. É tudo muito neuroquímico, você não entenderia. Coisa de neurotransmissores, com sinapses entre vários neurônios, entre mais de 100 bilhões, que podem realizar 100 trilhões de ligações.

- Ah, tio! Não precisava todo esse trabalho. É só ajustarem o formato.

- Como, o formato das sinapses?

Demência age rápido, desta vez, e coloca a pasta em frente ao seio esquerdo, antes que estoure outra bolha de baba.

- Não, tio! O formato da imagem da tela de LCD. As pessoas só parecem gordas em formato 16X9. Ou, então, compre uma TV de tubo 4X3. É barata e emagrece.

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