17.9.09

547 - Dez metros de intestino

Hipócrates
Fonte: Wikipedia

Dez metros de intestino

Paulo Heuser


Os doentes precisam de carinho. Uma forma de dar-lhes carinho, é ouvi-los. Eles necessitam externar seu sofrimento para as pessoas dos seus laços afetivos, sejam da família, sejam do círculo de amigos. Sentem-se confortados, e a cura pode até se tornar mais rápida. Até agora, tudo bem, ninguém pode reclamar deste texto. É humano e decente, sem ironia. O que é curioso, nessa atitude de divulgar as perebas, é a purgação pública, quando o doente as externa para estranhos. Ela ocorre notadamente nas salas de espera dos hospitais e consultórios. Dona Heresilda mostra o quisto de doze centímetros, que ela carrega no pescoço, para o Seu Hilário, que, orgulhoso, contra-ataca com a pavorosa hérnia abdominal. A quistosa senhora ainda tenta retrucar e alega que a hérnia do falecido era muito maior, mas não há como contrapor provas vivas com evidências mortas. Quando chamado, Seu Hilário levanta-se, triunfante, segurando as tripas com a sebenta revista Caras da sala de espera. Dona Heresilda perdeu a batalha, mas não perdeu a guerra. Vê uma mulher que entra, gemendo baixinho, e dá o bote. – É pedra no rim? Minha vizinha me deu uma santa receita, vinagre, água benta, creme de barbear e fanta uva. Não falha! A senhora já viu o meu quisto? A recém-chegada apenas geme.
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Da purgação de velório, melhor não falar. Há outra, que virou moda. É a purgação preventiva. Os noticiários da manhã, na TV, dividem-se entre futebol e essa nova modalidade de catarse catódica. Falam sobre doenças, um bloco inteiro. Depois da receita de pamonha preferida do Tandertáison, atacante de um time de futebol de mesa da terceira divisão, um renomado profissional da saúde discorre sobre a Síndrome Oculta de Erdbeere-Korkenzieher, cujo primeiro e único caso foi relatado na Namíbia. Se não tratada na fase primária, essa rara moléstia evolui rapidamente para a temida Churryum vulgaris, conhecida popularmente por caganeira.

Essas coisas não costumavam me incomodar, pois deixei de assistir ao noticiário matinal da TV. Nem gosto de pamonha. Mudei de canal, para um onde o pregador promove curas pela fé. Troquei caganeira por churrio. Finalmente, desisti da TV aberta e apelei para a paga. Assisto ao House. Lá, pelo menos, as perebas são menos óbvias.

Essa tal de purgação me incomoda durante o almoço. Estou no restaurante de um clube, no Centro, muito freqüentado pelos que compunham a petizada, na década de 30, do século anterior. Há três senhores, na mesa ao lado. Discutem o progresso dos procedimentos cirúrgicos, algo como “quando eu operei a MINHA apendicite...”. Pronto. Estabelece-se novamente a contenda da purgação. A MINHA vesícula estava MUITO mais inflamada do que a sua, etc. O que aparenta mais idade, pelas maiores manchas senis, mostra toda a experiência nessas coisas. – Olha, gente. Quando operei a bexiga e a próstata, não me deixei abater. Mas, quando me tiraram dez metros de intestino, fiquei arrasado. Pudera, penso. Se me lembro de algo das aulas de Biologia do Prof. Hoppen, o intestino todo não tem isso.

No bufê, há mocotó, com tripa grossa.


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