11.8.09

539 - Réquiem para um par de sapatos


Foto: Paulo Heuser
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Réquiem para um par de sapatos

Paulo Heuser


Era segunda-feira. Às 18 horas, como sempre fazia, Humboldt Galifante retornou para casa, vindo da fábrica de carimbos. Abriu a porta, limpou os sapatos no capacho, duas vezes, e entrou. O pulguento Rex veio recebê-lo, meio manco, tentando fazer festa para o dono, enquanto se espreguiçava, após outro dia de ócio absoluto. Humboldt retirou o chapéu, usando três dedos da mão esquerda, e colocou-o cuidadosamente no criado-mudo, peça que expressava com perfeição a dinâmica daquela casa. O recém-chegado dirigiu-se à cozinha, como de hábito, onde daria um tapinha carinhoso na nádega direita de Maria. Ele a encontrou, escorada no marco da porta, a fitar seus pés. – Olhe para seus pés! – exclamou. Ele olhou, por alguns instantes, e pensou em lhe responder que eram dois pés, simétricos, mas resolveu permanecer calado, pois conhecia aquele olhar da mulher. – Olhe o estado desses sapatos! Você não tem vergonha, Humbi? Ela era a única que o chamava por algum apelido, talvez por ser a única a chamá-lo, de qualquer forma. Pensou novamente em responder, alegar que era um sapato Clark, de alta qualidade, comprado pelo seu pai, havia 35 anos, mas novamente manteve-se calado. Ele sabia do que Maria Galifante era capaz, quando contrariada.

Quebrando toda e qualquer rotina, deixaram a casa para trás, às 18h13, a bordo do Aero Willys azul-marinho, em direção ao novo shopping. Até então, Humboldt recusara-se terminantemente a conhecer aquela meca do consumo moderno. Ele e Maria haviam perdido a exposição de cadáveres, tornando-se, talvez, as únicas pessoas que nunca haviam pisado lá. Após rodarem alguns minutos no interior do estacionamento, Humboldt encontrou uma vaga. Mais algumas centenas de passos, percorridos a passo de cachorro que vai à pet shop, eles finalmente cruzaram os portões do paraíso moderno. Humboldt parou, embasbacado. Aquilo estava muito além das suas piores expectativas. Adentrara um imenso aglomerado de lojas. Maria conseguiu arrastá-lo à loja de sapatos mais próxima. Entraram. Um jovem sorridente veio atendê-los. O pedido foi perfeitamente especificado, um sapato marrom, em couro liso, com cadarços e solado de borracha, tamanho 44. O vendedor pareceu ignorar o pedido e perguntou-lhes se haviam gostado de algum dos modelos expostos. Humboldt limitou-se a refazer o pedido original. O rapaz deu de ombros e sumiu por alguns instantes. Retornou com uma pilha de caixas. – 44 não “estarei tendo”, mas estes 42 são de forma bem ampla. Bastou uma comparação, de um dos modelos com o seu, sola a sola, para que o infeliz cliente descobrisse que os dois números fariam toda a diferença. O vendedor arriscou outra tática de vendas. – Poxa, tio, esse seu sapato tá detonado, tá na hora de jogar isso no lixo!

O rosto de Humboldt transfigurou-se. Aquela expressão de animal assustado, na eminência da tosquia, deu lugar à indignação. – Ouça aqui, meu bom rapaz! Você não tem como julgar um par de sapatos apenas pela aparência! Saiba que esses sapatos pisaram solos com os quais você sequer é capaz de sonhar. Eles percorreram o solo por onde Teodorico I e Átila, o Huno, passaram, até o sítio da Batalha dos Campos Cataláunicos. Desceram à Terra dos Francos, seguiram os passos do imperador Maximiliano, através do Rio Inn, cruzaram as escarpas do Passo Brenner, atravessaram o Passo Pordoi, entre os grupos de Sella e Marmolada e pisaram as areias do Adriático. Não satisfeitos, percorreram as tumbas de Teodorico, de Gala Placídia e de Dante. Na sola destes sapatos há pó da cerâmica bizantina... Humboldt falou por mais algum tempo, terminando por perguntar ao rapaz das razões que o levariam a trocar os seus sapatos por um par de novos, que, se muito, pisaram apenas o chão desprovido de história daquele amontoado de lojas.

O vendedor ouviu tudo, calado. – Não “estarei tendo” um sapato como os seus – confessou, resignado. Então, surgiu um súbito brilho nos seus olhos.

– Um sapatênis, quem sabe?

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1 Comments:

At terça-feira, 18 agosto, 2009, Blogger José Elesbán said...

HUmboldt Galifante...
Nos passos de Teodorico...
Tamanho 44...
Um shopping na zona sul...
Um Aero Willys...
Maximiliano...
Tantas reticências...

 

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