22.6.09

530 - Das gorjetas

Foto: Paulo Heuser
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Das gorjetas
Paulo Heuser

Vejo que a gorjeta tornar-se-á obrigatória, por lei. Se já não era de direito, era de fato. Ninguém sai do restaurante sem deixar algum. Os dez por cento farão parte do salário dos garçons. É justo, pensando bem. Se o dono do restaurante recolhe, tem de pagar ao empregado. Porém, fica um gostinho de jetom, emolumento recebido pelos parlamentares, por terem deixado de trabalhar. Eles ficam discutindo sua santidade recíproca e se esquecem de votar os projetos em pauta. Resultado: trabalham nas férias e ganham jetons. A gorjeta do garçom não deixa de ser remuneração pelo que já foi pago. Certo, estou sendo injusto com muitos garçons que merecem o adicional. Muitos prestam um ótimo serviço. O que dizer daqueles que conseguem trazer à mesa um cafezinho, sem molhar o pires? Heróis, heróis.

Há garçons e garçons, o que parece evidente e desnecessariamente óbvio. Contudo, uma classificação se faz evidente. O garçom de churrascaria de rodízio é um comunicador. Ele grita com os clientes, faz piada com a forma física deles, insinua que o vovô está gagá e que a menina encabulada flerta com o rufião da mesa ao lado. Chama de maricas os que recusam a aguardente de cobra curtida e pinga gordura e sangue sobre todos. Ele sempre acerta os fregueses. O papel de embrulho, que faz às vezes de tolha de mesa, sai incólume, mas a roupa dos fregueses vai direto para a lavanderia. Os espetos repletos de costelas e entrecotes viram floretes de uma luta entre garçom e cliente. Quando o cliente não agüenta mais, o garçom larga uma lasca de 530g de carne gorda no prato do pobre coitado e o desafia a liquidar o assunto. É o eterno conflito entre o capital (boi) e o trabalho (cliente).

Difíceis são os garçons estrábicos. Nunca se sabe para quem olham, quando tiram o pedido. Monótonos são os garçons de rodízio de mocotó. Completamente diferentes dos garçons de churrascaria de rodízio são os garçom de rodízio de galeto. O princípio é muito semelhante, mas a atitude é completamente diferente. Os últimos exercem uma profissão que tem mais a ver com a linha de produção e a cronoanálise, estudada por Frederik Taylor e Frank Gilbreth. Esses sujeitos estudaram, há quase dois séculos, como os clientes e garçons de uma galeteria produtiva devem se comportar. É uma ciência exata. Você e os frangos entram por uma ponta e você sai, empanturrado, pela outra. O garçom não pode transmitir emoções, pois estas podem retardar a linha de montagem, causando prejuízos. Piadas, então, nem sonhar!

Muitos vêm se queixar dos garçons franceses, que, por sinal, não devemos chamar de garçons. Monsieur é mais conveniente, principalmente quando o garçom é homem. Os garçons franceses só fazem questão de duas coisas: estarem a cavalo da situação e não servirem norte-americanos. Para satisfazer a primeira condição, faça-se de pobre coitado que não fala inglês, especialmente se você não falar inglês. Parecerá sincero. Diga logo, como puder, que você é brasileiro, antes que o confundam com um argelino recém-imigrado. Tudo muda, a cara carrancuda enche-se com um sorriso e eles falam:

- Ronaldaux, mulataux, caipirinaux e sambaux.

Pronto, você já foi aceito como avis rara, em terra de gente culta demais. Só não peça coca-cola, um dos maiores pecados que alguém pode cometer na França. Pode escarrar da Torre Eiffel, fazer pipi no Sena, comer sanduba no túmulo de Robespierre, porém, coca-cola, nunca! Se você não conseguir fazer nada disso, diga que veio de Emembaba. Eles acham exótico. Novamente, só não peça coca-cola. A propósito, se você for japonês, esqueça. Mesmo sem coca-cola, não será servido. Japoneses fotografam o garçom, sem autorização.

Se os garçons alemães não são simpáticos, tampouco são complicados. Oferecem-lhe a opção regional de comida típica: Sauerkraut, Wurst und gebratene Kartoffeln. É claro que o cardápio varia, de região para região. Se aquele é um prático típico da Baviera, Wurst, gebratene Kartoffeln und Sauerkraut é um prático típico da Baixa Francônia. Para quem gosta, ótimo. Só não peça chope, pois ninguém lá sabe o que é.

É na Itália que os garçons sabem exercer sua profissão com elegância e maestria. Não nos restaurantes ao ar livre da Praça de São Marcos, evidentemente. Um bom garçom italiano é mais do que o dono do restaurante. É a autoridade máxima, exercida com extrema elegância e firmeza, ao mesmo tempo. Será fácil agradá-lo, desde que não se peça o que está no cardápio. Deixe o pedido por conta dele, afinal, é ele que entende de comida. E prepare umas boas três horas para o almoço. Os garçons italianos ficam felizes quando descobrem que você é brasileiro. Dirão, via de regra, que a dançarina da boate do hotel também é. É difícil deixar de dar gorjeta aos garçons, a não ser que eles sejam espanhóis. Pedindo do cardápio, ou fora dele, você será xingado. Afinal, estará perturbando o local e sujando a louça, sem falar na cozinha.

Só temo que os nossos garçons imitem nossos parlamentares e criem uma nova comissão de serviços, de dez por cento, digamos, que poderão chamar de, como direi, gorjeta.

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