25.5.09

524 - Remando contra a correnteza

Foto: Wikipedia
Largo Glênio Peres
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Remando contra a correnteza

Paulo Heuser

Essa sexta-feira foi diferente das anteriores. A decadência do Centro seguia seu curso inexorável. Prédios e pessoas se esfarelavam, espalhando-se pelo chão imundo. Na Praça Parobé, uma jovem aguardava o ônibus junto ao terminal, quando foi atacada por uma mulher que lhe arrancou a correntinha do pescoço. Até aí, nada de novo. Pura rotina. Apenas mais uma na estatística que sequer é feita. Contudo, essa jovem vítima contrariou tudo aquilo que as autoridades e as pessoas em geral apregoam. Não reaja, dizem, com razão. Sabe-se lá do que esses cidadãos são capazes, no exercício da sua nobre profissão de mão grande. Andam armados, em grupos, prontos a defender seu subjetivo direito de exercer algo que ainda chamarão de profissão. Besteira da moça, dirão, pois ninguém tem o direito de andar com uma correntinha no pescoço. É pedir, dirão. Pois essa jovem lutou contra esses dois dogmas pós-modernos. Ela usou a correntinha e, quando roubada, reagiu, contrariando tudo que recomenda o bom senso.

A jovem correu atrás da assaltante e agarrou-a, em pleno Largo Glênio Peres, outro reduto dos trabalhadores dos ofícios contemporâneos alternativos. Ela pôs-se a gritar por ajuda, enquanto segurava a mulher que tentava fugir. Nessas horas, cada um cuida da sua vida. Nas outras, também. Em outra sexta-feira qualquer, nada disso teria acontecido. A jovem teria ficado parada, com cara de oferenda de sacrifício, enquanto a labutadora do informal teria vendido o fruto do seu trabalho a qualquer receptador de plantão. Essa sexta-feira foi muito diferente. A conjunção de Júpiter com Alfa do Centauro quis que outro cordeiro vestisse a pele do lobo. Um cidadão que havia ido ao Mercado para comprar lingüiça, daquelas que levam trema, contrariando tudo o que se esperava dele, foi em auxílio da jovem e subjugou a trabalhadora do Código Penal. Lá o trabalho dela está plenamente tipificado. Então, tudo mudou. A sociedade indiferente às mesmices do cotidiano reagiu indignada. Lincha, gritavam, à cautelosa distância, como cães que ladram atrás da cerca. Comprovando que aquela, definitivamente, era uma sexta-feira única, outro cidadão desprendeu-se da massa anônima e buscou a ajuda dos policiais do posto da José Montauri. Acabaram todos na delegacia, após passeio de camburão. A jovem recuperou sua correntinha, mesmo que arrebentada. Recuperou algo mais, algo da sua dignidade. A operária dos ofícios modernos foi para o Madre Pelettier, pois aquele não era o seu primeiro emprego. Ela já “devia”. Os dois cidadãos levaram a gratidão e provaram que essa foi realmente uma sexta-feira diferente. Remaram contra a correnteza. A multidão, deixada à deriva, teve seu quinhão de circo.

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