31.5.09

525 - Do Cálculo e suas aplicações


Foto: Paulo Heuser
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Do Cálculo e suas aplicações

Paulo Heuser


Eu percebi logo que algo havia acontecido. Nada de bom, com certeza. O Zé entrou na sala, feito zumbi, e sentou-se sem nada dizer. Ficou a fitar um horizonte que certamente estava muito além da parede. O que mais me chamou a atenção foi a gravata. Melhor, as gravatas. Zé usava duas, uma azul com listras brancas, outra amarela com listras azuis. Antes de causar dó, espantava. Ele compunha uma figura patética, especialmente quando balbuciou:

- O Konguetsof se foi...

- Quem?

- O Konguetsof!

Quem diabos seria Konguetsof? Quando eu terminava de entortar o ponto de interrogação, me veio a lembrança do Leônidas Konguetsof, autor daquele clássico livro de Cálculo integral e diferencial, de 1974. Sabe-se lá que idade ele teria hoje, mas novo não seria, com certeza.

- Morreu?

- Roubaram meu carro...

A voz dele sumiu, como se fosse seu definitivo estertor. Então, percebi que o Zé não falava coisa com coisa, pois gritou:

- O teorema de Ostrogradsky-Gauss se foi!

Lágrimas lhe desceram pela face enrugada. O homem chorava, feito criança contrariada na prateleira de doces do supermercado. A camisa preta combinava com as gravatas, devo reconhecer, produzindo algo como um mafioso estereoscópico. Eu não sabia o que dizer, já que nada entendia. Ele percebeu, talvez, porque continuou, entre soluços de choro:

- O ladrão pôs fogo no meu carro!

Foi o suficiente para que eu entendesse o drama do Zé. Ele morava num apartamento que não comportava fisicamente sua biblioteca. Incapaz de vender alguns livros, ele transformou o porta-malas do carro em biblioteca ambulante. Quando viajava, as malas ocupavam o lugar dos livros, e os livros iam para o maleiro. Ele fazia rodízio dos livros, como fazem rodízio de presos. Quis a infelicidade que nessa etapa do rodízio os livros de Cálculo fossem para o porta-malas e os piromaníacos fossem à liberdade. Um deles roubou o carro do Zé e o queimou, numa miserável viela de um paupérrimo bairro de Gravataí. Lagrange, Laplace, Newton e Fermat, todos foram imolados, ironicamente em meio a uma vila onde os habitantes sequer sonhavam com o Teorema Fundamental do Cálculo. Nada saberiam da diferenciação e da integração. Tentei parecer otimista.

- Tem certeza de que é o seu carro?

Alguma luz se acendeu, bem lá no fundo dos olhos do Zé, uma pequena chama de esperança. Algo ilógica, mas a esperança quase sempre é ilógica.

- Será que pode ser um engano?

Ele mostrou súbito ânimo.

- Quem sabe nós vamos até lá, para confirmar?

E assim seguimos para um depósito de carros em meio a um matagal nos fundos dos arrabaldes de Gravataí. Quando lá chegamos, perguntamos à sorridente moça da recepção se ela sabia onde jazia o carro do Zé. Ela conteve o riso e disse que o encontraríamos depois do morro, ao lado de um caminhão. Andamos por uma estrada barrenta, com centenas de carros de cada lado. Sucatas, na sua maioria. Milhares de faróis nos encaravam, ao cair da noite, como que pedindo adoção. Faróis redondos, caolhos, espichados e quadrados, todos apagados. O Sol sumia pelo horizonte, quando vimos o tal do caminhão. O Zé olhava em todas as direções, procurando pela sua amada biblioteca ambulante. Não a encontrou de imediato. Porém, ao perscrutar novamente as redondezas, seu olhar caiu sobre uma carcaça calcinada, jogada sobre o solo de barro vermelho. As formas lembravam as do carro dele, mas não havia pneus, vidros, plásticos nem borrachas, somente latas retorcidas pelo fogo. No lugar dos faróis, buracos escuros.

- Este não pode ser o meu carro!

Ele olhou para o interior do calcinado veículo, procurando por algo familiar. Apenas cinzas escuras. Até que chegou ao que foi o porta-malas. Lá, em meio ao negro uniforme, havia um pedaço de papel, branco no centro e queimado ao redor. Temendo pelo pior, Zé pegou o que parecia ser o resto de um livro grosso, quase que totalmente incinerado. Congelou. Novas lágrimas transbordaram das caudalosas rugas dos seus olhos. Frente aos seus olhos estava uma equação diferencial com um lagrangeano inconfundível, era a Equação do Calor.

Calei-me, cruzei as mãos e assumi postura de pranteador no enterro da mãe do gerente. Ficamos lá parados, enquanto o Sol finalmente se punha. Aquele era o carro do Zé, com certeza, pois ninguém mais seria tão idiota a ponto de levar livros de Cálculo para passear.

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