19.7.09

537 - O epílogo

Hamlet. Imagem: Wikipedia

O epílogo

Paulo Heuser


Essa mania de não pisar nos rejuntes tornava seu caminhar estranho. Seus passos pareciam resultantes de uma estranha marcha, na qual tentava constantemente acertar o passo. Além de contar coisas, como postes e pneus dos carros que passavam, ele apresentava essa mania de pisar somente no centro das lajes do passeio. A pé e contrapé ele avançava, alheio ao circo da vida real que fazia outra performance do dia a dia. Esmoleiros, flanelinhas, assaltantes, traficantes, rufiões e cafetinas zanzavam de um lado para o outro, provando que o negócio dos novos tempos era o setor de serviços. Uma prostituta loira - que já deveria batalhar no tempo dos bondes - tentou abordá-lo com o clássico: - Vamos fazer neném? O ruído irritante provocado por uma britadeira encobriu qualquer tentativa de resposta.

Humboldt Galifante passou quase toda a noite anterior trabalhando na encomenda de um cliente muito especial, o Grão Mestre da Nova Sociedade Imperial, agremiação que tentava reimplantar a monarquia como sistema de governo. Esse pessoal gostava das coisas à antiga, bem feitas, em materiais nobres. Humboldt preparou-lhes um novo carimbo, caprichando especialmente no brasão de armas dos Araujo Costa, família proto-imperial da nova ordem.

Os pensamentos na nova monarquia e o pisar errante foram interrompidos pelo livro que jazia bem no meio da laje sobre a qual pisaria. Humboldt parou e olhou para os lados. Centenas de pessoas haviam passado pelo livro, nenhuma parou. Apenas ele. Olhou para todos os lados, procurando algum eventual candidato a dono. Nada, ninguém, somente pessoas apressadas caminhando em todas as direções, como formigas saindo de um formigueiro recém-pisado. Ele olhou novamente para o livro órfão e o juntou. Não era seu, porém, seria inadmissível deixá-lo jogado no meio daquela laje. Afinal, era um livro. Colocou-o cuidadosamente na pasta e seguiu caminho.

A noite veio cedo. Em casa, Humboldt molhava bolachas no café com leite morno quando se lembrou do livro perdido. Ele depositou sua xícara de estimação na pia e abriu a pasta. Lá estava, um livro de capa pobre, sem orelhas, intitulado O sentido da vida, de um de tal Hieronymus Barbacena. Um pseudônimo, com certeza. Já vira esse título em diversas obras, mas desconhecia esse autor. A capa e as páginas internas não ofereciam pistas a respeito do dono do livro. Além do nome do autor, havia apenas o nome da Editora Hecatombe, outra desconhecida. Curioso, Humbold pôs-se a ler as primeiras páginas. Depois, as próximas. Encontrou um texto de leitura fácil, inicialmente, evoluindo gradativamente à profunda filosofia que levaria, aparentemente, à descoberta do sentido da vida. Quem seria esse escritor, que se escondia por trás de tão ridículo pseudônimo, capaz de criar obra de tamanha profundidade? O texto ficava cada vez mais rico e atraente, tornando impossível abandoná-lo. Leria mais algumas páginas, antes de deitar-se. Maria estranhou o desinteresse pela coleção de tampas de garrafas de leite, que ele manipulava todas as noites, após o jantar de bolachas, e quis saber o que ele fazia. – Estou lendo. - disse ele. Calou-se, a seguir, completamente absorto pela leitura que já se tornara voraz. O pulguento Rex roncava suavemente aos seus pés.

Humboldt ficou lendo, tendo por companhias a noite, o relógio de carrilhão, que dobrava a passagem das dez da noite, e o roncador Rex. Maria foi dormir. O relógio voltou a dobrar as horas seguinte. Humboldt pensou em dormir, diversas vezes, porém, o livro venceu. Fazia mais de vinte anos que ele não virava noite em claro. O silêncio da madrugada era quebrado pelo tique-taque e pelo som do virar de páginas. Finalmente, lá pelas cinco, chegou a hora da verdade, a hora da grande revelação. Ele viraria a última página. O tempo pareceu arrastar-se, e o fim da penúltima página demorou a chegar. Era hora. Veio-lhe aquela estranha sensação, misto de alegria pela chegada e de tristeza pelo fim de uma fantástica jornada pelas páginas dessa extraordinária obra.

Maria levantou-se, assustada, pois não encontrou o amado Humboldt ao seu lado. E, o que era mais estranho, não havia indícios de que ele havia sequer dormido naquela cama. Ela o encontrou sentado, onde o deixara, à escrivaninha. Ele estava acordado, apesar da aparência de catatonia profunda, segurando metade do livro em cada mão. – Humbi, o que houve? Por detrás de profundas olheiras, seus olhos finalmente se moveram. Ele tentou falar, mas sua voz não saiu. Maria apressou-se para lhe trazer uma xícara de café com leite morno. Ele mergulhou uma bolacha na xícara e a levou à boca. Então, murmurou: - Terminei o livro... Maria havia visto o título e não resistiu: - E então, Humbi, qual é o sentido da vida?

Humboldt juntou as metades do livro, como se pretendesse colá-las, e disse, olhando diretamente para algo que estaria atrás da parede:

- Não há epílogo. Leia a última página.

Maria tomou-lhe das mãos a metade final do livro e procurou a última página.

“A quem encontrar este livro, pedimos a gentileza de ligar para 0800-55555. Esta obra faz parte de um estudo desenvolvido pelos alunos da Faculdade de Literatura da Universidade Laica de Eirunepé, que espalharam livros, sem o epílogo, pelos passeios públicos das capitais. Assim, poderão estimar o número de leitores que ainda existem no País.”

A Humboldt restou apenas uma certeza, a de que não existe sentido na vida.

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