26.8.09

543 - O concerto nos tempos da gripe A


Retrato de Mussorgsky por Ilya Repin(1881),
pintado dias antes da morte do compositor.
Fonte: Wikipedia
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O concerto nos tempos da gripe A

Paulo Heuser


Um concerto, finalmente. Coisa rara nestes tempos de peste. Chegar cedo, é imperioso. Encontro os lugares com facilidade, ainda antes do primeiro toque da campainha. O teatro está relativamente vazio. Segundo toque da campainha atrai mais meia dúzia de gatos pingados. Onde andarão todos? Ainda temem a peste do momento? Terceiro toque. Turbas invadem o teatro, aos tropeços, e tentam encontrar, no escuro, as poltronas numeradas. A solista russa Marina Shevchenko já vai longe, em Khovanschchina, de Mussorgsky, quando uma mulher de estranho coque nos cabelos desaba na poltrona à frente. Para o espanto de muitos, ela diz, em muito alto e bom som, que não há pipoca à venda. Onde já se viu coisa dessas? Mussorgsky deve estar se revirando na tumba, pois nunca poderia imaginar que alguém ousaria executar sua 2ª Sinfonia num teatro sem pipoca.

Então, vem o ataque de tosse, algum resquício da peste. O coque sacode para frente e para trás. Mas, nem tudo está perdido. A companheira da mulher do coque estranho trouxe balas. Antes ouvir o ruído do papel das balas, pois a tosse pára. A mulher do coque ensaia uma espécie de ôla, agitando os braços, mas logo pára, pois ninguém a segue. Algo a incomoda, entre os dentes. Ela tenta tirar o corpo estranho usando apenas as unhas. Como não dá certo, ela apela para um método pneumático e dá chupadas, auxiliada pela língua, produzindo um “schluuurpt” que encobre a voz da solista. Carne dura aquela do almoço. Entre “schluuurpts”, a mulher do coque entabula uma conversa com as companheiras de poltrona. Observa que o sujeito do tambor fica parado lá, sem nada tocar. Recebe e não trabalha. Coisa de funcionário público. E a solista, então, bonita, mas nada em forma. A mulher do coque ensaia outro “schluuurpt”, do fundo da alma, quando seu celular toca. – Oi, meu amor! Tô sim, mas você não perdeu nada, ainda nem começou. Vô sim, quando sair daqui. Tá bom, me encontra lá. Tchau! “schluuurpt”!

O pessoal que, desgraçadamente, está sentado ao redor da mulher do coque faz “shhhh”, tentando calá-la, em vão, enquanto ela faz “schluuurpt”. Ela está visivelmente enfadada, pois se reclina sobre a poltrona à frente, enquanto bate com o pé no chão. O celular toca, novamente.

– Ainda não, meu bem, pode falar! O filme ainda não começou, mas tem uns tios fazendo uma gritaria, e, o que é pior, não tem pipoca!


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