16.8.09

541 - De botecos e comidinhas





De botecos e comidinhas

Paulo Heuser



Armando separou-se da quarta mulher. Foi como das outras vezes, a paixão deu lugar ao amor, e assim a relação foi definhando. Ele não vivia só de amor, era um quarentão passional. Demorou a casar pela primeira vez, depois, não parou. A ressaca amorosa já durava uma semana inteira quando Elvira ligou. Ele não sabia dela desde a formatura do colégio, coisa para lá de 20 anos. Ela contou das suas andanças pelo mundo, trabalhou como tradutora, na Escandinávia, e retornou ao Brasil após a separação de Börg, que, apesar do nome klingon, deve ter sido o ex. Aquele Börg era pronunciado como um arroto. Armando percebeu um sotaque estranho que dava charme especial à voz da Elvira. Como quem não quer nada, obviamente querendo, ela o convidou para saírem. O mais próximo de um bar que Armando chegou, nos últimos tempos de casado, foi a tele-entrega de comida chinesa. Por isso, resolveu levá-la a um desses botecos da moda. Escolheu um por recomendação de amigos.


Ele chegou cedo ao boteco, meia hora antes do combinado, e escolheu uma mesa próxima da janela. O serviço lá era impressionante. Doze centímetros ainda separavam os fundilhos das calças dele da cadeira, e um chope já repousava sobre a mesa. Armando nem havia olhado bem ao redor, quando o garçom lhe ofereceu quitute de frango com crosta de sucrilhos. A decoração era despojada, mas, afinal, era um boteco. Mesas e cadeiras simples, sob muita luz, formavam o cenário que cairia melhor na Volta do Mercado. A sede fez com que a metade do copo sumisse, quase que de um só gole. Pronto, outro copo foi depositado sobre a mesa, sem dar chance para uma eventual recusa.

Quando Elvira chegou, quatro bolachas acompanhavam o copo no qual Armando não tinha coragem de tocar. O serviço lá era exageradamente bom. Ele já havia recusado diversas comidinhas típicas gaúchas, como o espetinho de purê de abobrinha com lascas de coalho, o bolinho de arraia e a coxinha de tambaqui. A entrada da Elvira fez o boteco parar. Todos olhavam para ela, um mulherão que em nada lembrava a tímida menina do colégio. – Armando, eu presumo. - Ele ficou sentado, por um instante, de boca aberta, enquanto analisava aquela mulher incrivelmente linda. Os cabelos negros e a pela muito clara serviam de moldura aos olhos cuja cor parecia variar conforme o ângulo. – Vocês não aceitariam umas garras de siri flambadas no licor de Genipabu? Mais dois chopes, no capricho? Tequila com todinho? – E a boca, essa sim era desconcertante. Aqueles lábios moviam-se de forma que cada palavra saísse como uma melodia. E as covinhas, então? – Vai um escondidinho de tatuíra com leite de mamão-macho? Mais dois chopinhos, no capricho? – Após nove chopes, Armando tentou segurar, mas não deu, soltou um Börg retumbante. Elvira olhou, intrigada. – Vão provar o bolinho de batata recheado com pamonha? Mais dois chopinhos, no capricho? – Ele tentou, inutilmente, colocar a bolacha sobre o copo, sinal internacional para o chega. O garçom passou a empilhar copos. – Vai a tortinha de pinhão com raspas de berimbau? Mais dois chopinhos, no capricho? – Armando não chegou a sentir a aproximação do próximo. Esse foi um sonoro Bööörrrg. Elvira levantou-se, de pronto.

– Poxa, Armando, eu pensei que seria legal sair com você, mas fica me lembrando do Börg, o tempo todo. Assim não dá! – Dito isso, saiu porta afora, levando aquele corpão atrás de si.




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