25.9.09

549 - A eloqüente

Foto: Wikipedia

A eloqüente

Paulo Heuser

Elvira nasceu falando. Ninguém se lembra da primeira palavra dela, lembram-se apenas do primeiro discurso. Ela não fala, apenas. Emenda palavras, horas a fio, como fazia Fidel Castro antes de vestir Adidas. Compará-la a Fidel, é subestimá-la, pois, além de eloqüente, é rápida. Emenda também as sílabas, não deixando espaço nem para respirar. Fala inspirando, fala expirando e fala em apnéia. Elvira é uma máquina de falar que preenche todo o ambiente com palavras. Ouvi-la, é um suplício. A avalanche verborréica, em continuum, não dá tréguas. Ela tem uma habilidade nunca vista para preencher qualquer hiato interssilábico.

A fama da eloqüência da Elvira cruzou fronteiras. Noutro dia, um concerto da orquestra sinfônica atrasou. O maestro burquinense Gummi von Plungerkolben recusou-se a subir ao palco, quando descobriu que ela estava na platéia. Na verdade, Elvira não fala durante os concertos, porém, fala todo o resto do tempo, inclusive durante a afinação dos instrumentos. Ela apresenta uma funcionalidade que foi incorporada aos equipamentos de rádio, chamada AGC, ou controle automático de ganho. Quando o ruído aumenta, ela aumenta o volume de voz, quando ele baixa, ela também fala, ou melhor, grita mais baixo. O sujeito do primeiro naipe dos violinos dá o tom, para a afinação, e ninguém ouve. Só ouvem a voz da Elvira, que se mantém, prudentemente, no limite suportado pelo ser humano. Ela não pode mais ingressar na União Européia. Os países membros do Espaço Schengen limitaram os níveis aceitáveis de ruído. O limite passou a ser o Pré-Elvira, algo entre o ruído de uma decolagem de jato e a poluição de carro de som de candidato eleitoral.

Armando era o contraponto da Elvira. Era uma tumba ambulante. Dele, nada saía. Falava tanto quanto o mudo afônico que fez voto do silêncio. Estranhos são os desígnios de Afrodite. A eloqüente Elvira casou-se com o mudo Armando. Haveria compensação, pois o silêncio dele absorveria a torrente de palavras dela. Assim andaram, nos últimos 40 anos. Ela falava o tempo todo, ele apenas assentia com um gesto quase imperceptível. Tudo ia bem, até a quarta passada. Saíram para jantar e comemorar quatro décadas de monólogos. Elvira pediu ao garçom um filedepeixepodesercôngriooulinguadoetcetc... O pobre homem tentava anotar o pedido, sem conseguir separar o que interessava do que realmente não interessava, ou seja, praticamente tudo. Ela seguia falando, para espanto dos demais convivas, enquanto os cães uivavam e a caravana fugia, seja lá o que isto quer dizer. Então, aconteceu.

No início, sentiram apenas um leve tremor, que foi crescendo, crescendo, até aflorar um terrível rugido da boca do Armando.

- Cala a boca, Elvira!

O tempo parou. O garçom estacou, com cara de mulher de Ló, os cães ladraram e a caravana passou. Fez-se o mais profundo silêncio. Não se ouvia mais nem a respiração da Elvira, principalmente porque ela parou de respirar. Entrou em síncope. Armando viraria herói, se houvesse seguido seu instinto. Contudo, rendeu-se à paixão antiga e tratou de ressuscitá-la. Tomou o corpo sem vida nos braços e gritou, com todas as forças:

- Fala alguma coisa, Elvira!

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