31.5.09

525 - Do Cálculo e suas aplicações


Foto: Paulo Heuser
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Do Cálculo e suas aplicações

Paulo Heuser


Eu percebi logo que algo havia acontecido. Nada de bom, com certeza. O Zé entrou na sala, feito zumbi, e sentou-se sem nada dizer. Ficou a fitar um horizonte que certamente estava muito além da parede. O que mais me chamou a atenção foi a gravata. Melhor, as gravatas. Zé usava duas, uma azul com listras brancas, outra amarela com listras azuis. Antes de causar dó, espantava. Ele compunha uma figura patética, especialmente quando balbuciou:

- O Konguetsof se foi...

- Quem?

- O Konguetsof!

Quem diabos seria Konguetsof? Quando eu terminava de entortar o ponto de interrogação, me veio a lembrança do Leônidas Konguetsof, autor daquele clássico livro de Cálculo integral e diferencial, de 1974. Sabe-se lá que idade ele teria hoje, mas novo não seria, com certeza.

- Morreu?

- Roubaram meu carro...

A voz dele sumiu, como se fosse seu definitivo estertor. Então, percebi que o Zé não falava coisa com coisa, pois gritou:

- O teorema de Ostrogradsky-Gauss se foi!

Lágrimas lhe desceram pela face enrugada. O homem chorava, feito criança contrariada na prateleira de doces do supermercado. A camisa preta combinava com as gravatas, devo reconhecer, produzindo algo como um mafioso estereoscópico. Eu não sabia o que dizer, já que nada entendia. Ele percebeu, talvez, porque continuou, entre soluços de choro:

- O ladrão pôs fogo no meu carro!

Foi o suficiente para que eu entendesse o drama do Zé. Ele morava num apartamento que não comportava fisicamente sua biblioteca. Incapaz de vender alguns livros, ele transformou o porta-malas do carro em biblioteca ambulante. Quando viajava, as malas ocupavam o lugar dos livros, e os livros iam para o maleiro. Ele fazia rodízio dos livros, como fazem rodízio de presos. Quis a infelicidade que nessa etapa do rodízio os livros de Cálculo fossem para o porta-malas e os piromaníacos fossem à liberdade. Um deles roubou o carro do Zé e o queimou, numa miserável viela de um paupérrimo bairro de Gravataí. Lagrange, Laplace, Newton e Fermat, todos foram imolados, ironicamente em meio a uma vila onde os habitantes sequer sonhavam com o Teorema Fundamental do Cálculo. Nada saberiam da diferenciação e da integração. Tentei parecer otimista.

- Tem certeza de que é o seu carro?

Alguma luz se acendeu, bem lá no fundo dos olhos do Zé, uma pequena chama de esperança. Algo ilógica, mas a esperança quase sempre é ilógica.

- Será que pode ser um engano?

Ele mostrou súbito ânimo.

- Quem sabe nós vamos até lá, para confirmar?

E assim seguimos para um depósito de carros em meio a um matagal nos fundos dos arrabaldes de Gravataí. Quando lá chegamos, perguntamos à sorridente moça da recepção se ela sabia onde jazia o carro do Zé. Ela conteve o riso e disse que o encontraríamos depois do morro, ao lado de um caminhão. Andamos por uma estrada barrenta, com centenas de carros de cada lado. Sucatas, na sua maioria. Milhares de faróis nos encaravam, ao cair da noite, como que pedindo adoção. Faróis redondos, caolhos, espichados e quadrados, todos apagados. O Sol sumia pelo horizonte, quando vimos o tal do caminhão. O Zé olhava em todas as direções, procurando pela sua amada biblioteca ambulante. Não a encontrou de imediato. Porém, ao perscrutar novamente as redondezas, seu olhar caiu sobre uma carcaça calcinada, jogada sobre o solo de barro vermelho. As formas lembravam as do carro dele, mas não havia pneus, vidros, plásticos nem borrachas, somente latas retorcidas pelo fogo. No lugar dos faróis, buracos escuros.

- Este não pode ser o meu carro!

Ele olhou para o interior do calcinado veículo, procurando por algo familiar. Apenas cinzas escuras. Até que chegou ao que foi o porta-malas. Lá, em meio ao negro uniforme, havia um pedaço de papel, branco no centro e queimado ao redor. Temendo pelo pior, Zé pegou o que parecia ser o resto de um livro grosso, quase que totalmente incinerado. Congelou. Novas lágrimas transbordaram das caudalosas rugas dos seus olhos. Frente aos seus olhos estava uma equação diferencial com um lagrangeano inconfundível, era a Equação do Calor.

Calei-me, cruzei as mãos e assumi postura de pranteador no enterro da mãe do gerente. Ficamos lá parados, enquanto o Sol finalmente se punha. Aquele era o carro do Zé, com certeza, pois ninguém mais seria tão idiota a ponto de levar livros de Cálculo para passear.

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25.5.09

524 - Remando contra a correnteza

Foto: Wikipedia
Largo Glênio Peres
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Remando contra a correnteza

Paulo Heuser

Essa sexta-feira foi diferente das anteriores. A decadência do Centro seguia seu curso inexorável. Prédios e pessoas se esfarelavam, espalhando-se pelo chão imundo. Na Praça Parobé, uma jovem aguardava o ônibus junto ao terminal, quando foi atacada por uma mulher que lhe arrancou a correntinha do pescoço. Até aí, nada de novo. Pura rotina. Apenas mais uma na estatística que sequer é feita. Contudo, essa jovem vítima contrariou tudo aquilo que as autoridades e as pessoas em geral apregoam. Não reaja, dizem, com razão. Sabe-se lá do que esses cidadãos são capazes, no exercício da sua nobre profissão de mão grande. Andam armados, em grupos, prontos a defender seu subjetivo direito de exercer algo que ainda chamarão de profissão. Besteira da moça, dirão, pois ninguém tem o direito de andar com uma correntinha no pescoço. É pedir, dirão. Pois essa jovem lutou contra esses dois dogmas pós-modernos. Ela usou a correntinha e, quando roubada, reagiu, contrariando tudo que recomenda o bom senso.

A jovem correu atrás da assaltante e agarrou-a, em pleno Largo Glênio Peres, outro reduto dos trabalhadores dos ofícios contemporâneos alternativos. Ela pôs-se a gritar por ajuda, enquanto segurava a mulher que tentava fugir. Nessas horas, cada um cuida da sua vida. Nas outras, também. Em outra sexta-feira qualquer, nada disso teria acontecido. A jovem teria ficado parada, com cara de oferenda de sacrifício, enquanto a labutadora do informal teria vendido o fruto do seu trabalho a qualquer receptador de plantão. Essa sexta-feira foi muito diferente. A conjunção de Júpiter com Alfa do Centauro quis que outro cordeiro vestisse a pele do lobo. Um cidadão que havia ido ao Mercado para comprar lingüiça, daquelas que levam trema, contrariando tudo o que se esperava dele, foi em auxílio da jovem e subjugou a trabalhadora do Código Penal. Lá o trabalho dela está plenamente tipificado. Então, tudo mudou. A sociedade indiferente às mesmices do cotidiano reagiu indignada. Lincha, gritavam, à cautelosa distância, como cães que ladram atrás da cerca. Comprovando que aquela, definitivamente, era uma sexta-feira única, outro cidadão desprendeu-se da massa anônima e buscou a ajuda dos policiais do posto da José Montauri. Acabaram todos na delegacia, após passeio de camburão. A jovem recuperou sua correntinha, mesmo que arrebentada. Recuperou algo mais, algo da sua dignidade. A operária dos ofícios modernos foi para o Madre Pelettier, pois aquele não era o seu primeiro emprego. Ela já “devia”. Os dois cidadãos levaram a gratidão e provaram que essa foi realmente uma sexta-feira diferente. Remaram contra a correnteza. A multidão, deixada à deriva, teve seu quinhão de circo.

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21.5.09

523 - O Anticristo

Foto: Wikipedia
Friedrich Nietzsche - 1882
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O Anticristo

Paulo Heuser

Quem já não foi injustiçado? Humilhado, até? Lembro-me de pelo menos dois eventos, e se me lembro deles, é porque provocaram estragos. No meu ego, bem entendido. Ambos ocorreram lá pelo segundo ano do Científico, então Ensino Médio.

Eu havia escrito algumas redações que foram bem recebidas pelo professor de Português, do ano anterior, que me incentivava a continuar escrevendo. Acabei tomando gosto pela coisa, e, como direi, tentei alçar vôos maiores. Nunca fui bom aluno de Português. Muito menos de Literatura. Naquela época eu achava que Camões deveria ter morrido afogado, abraçado aos Lusíadas com seu braço restante. O vestibular me fez continuar a pensar da mesma forma. Porém, eu gostava de escrever aquelas redações, até que trocamos de professor de Português, e entrou outro, cujo pensamento era, digamos assim, menos elástico. Era um professor que combinava com os tempos da Revolução. Só não foi general porque não foi militar. O homem não acreditava muito no processo dialético e fulminou sumariamente minha redação sobre religião. Pior, o fez em público, criando adjetivos dos quais me recordo até hoje. Não houve como não guardar mágoa, por muitos anos, uns quatrocentos, pelo menos. Permaneci sem escrever por uns trinta e tantos anos.

Nessa época, ocorreu outro evento. O pessoal costumava sair dos bailes e tomar banho de piscina, em plena madrugada. Pelados. Pulavam a cerca do Tênis Clube Santa Cruz e tomavam banho de lua. O ecônomo do bar da piscina era agente duplo. Vendia cerveja aos pelados madrugadores e, por outro lado, entregava seus nomes à diretoria. Meu nome entrou numa dessas listas, apesar de não haver estado lá. Fui suspenso do clube, por um verão, injustamente. Não houve argumento que convencesse o presidente. Era verão de 1972, e ficar sem piscina era algo semelhante a morrer, lentamente, por três meses. Novamente, me senti humilhado e injustiçado. Eu não carregava nas costas aquela culpa. Então, descobri que Deus castiga, mas não mata. O ecônomo traíra caiu da Lambreta e quebrou a perna.

Lembrei-me dessas coisas ao ver uma foto amplamente divulgada nos jornais desta semana. Ilustrava uma matéria sobre a prisão de um grupo de neonazistas. Lá estavam os objetos apreendidos pela polícia. Entre suásticas e camisetas temáticas, aparecia um livro, bem no centro da foto. Era o Anticristo de Friedrich Nietzsche, livro difícil de ser lido, mas nada nazista. Poderia ser queimado pelos cristãos em geral, por outros motivos, não por apologia ao nazismo, ainda mais que foi escrito em 1888. Outra obra de Nietzsche, Assim Falou Zaratustra - Also sprach Zarathustra -, de 1885, virou uma espécie de livro de bolso dos soldados alemães, durante a Segunda Guerra Mundial, graças à ação interesseira de Elizabeth Vöster, irmã do filósofo, que adaptou alguns dos seus escritos aos interesses dos nazistas.

Nietzsche também escreveu uma redação que não foi bem recebida pelo seu novo professor de Alemão, ortodoxamente religioso, e também não tomou banho de piscina pelado durante a madrugada. Suspeito que foi suspenso da piscina pelo resto da sua vida, sem sequer ter entrado em alguma. Continuei escrevendo. Ele parou.

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18.5.09

522 - Os mais básicos fluidos


Foto: Wikipedia
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Os mais básicos fluidos

Paulo Heuser


Cynthia McArthur é o exemplo do sucesso. Se há mercado, ela sabe explorá-lo, se não há, ela o cria. Aos 33 anos de idade, Cynthia exibe um currículo dos mais invejáveis. Formada em marketing, possui MBA e diversos cursos de especialização na sua área de atuação, nas melhores instituições da Meca do mercado, os EUA. Ela projeta sucesso até na imagem pessoal. Veste-se entre o formal e a vanguarda e mantém cabelos, pele e unhas no trato. Ela transpira sucesso. Seu mercado de trabalho está nas corporações internacionais que enfrentam algum problema na colocação dos seus produtos no mercado.

Dessa vez, quem solicitou os serviços da Cynthia foi o MedCartel, conglomerado teuto-belgo-helvético-americano. A empresa errou ao estimar estoques e precisou de socorro mercadológico. A consultora chegou à matriz, nos arredores de Antuérpia, na Bélgica, pronta para enfrentar esse novo desafio. O mercado de suprimentos médico-hospitalares ainda lhe era um pouco estranho. Após todas as verificações de segurança, incluindo raios-X, ela foi levada ao salão de reuniões da diretoria, onde o conselho a esperava. Os tec-tecs dos seus sapatos de salto alto contra o piso de madeira encerada contrastavam com o silêncio dos executivos que a aguardavam. Jean Claude Van de Tour a pôs a par da situação:

- Mademoiselle McArthur, o MedCartel tem hoje em estoque uma enorme quantidade de máscaras para proteção contra microorganismos. Um funcionário errou nos cálculos e mandou fabricar, por engano, 123 milhões de máscaras. Temos um depósito cheio de máscaras e não sabemos o que fazer com elas. Se isso não bastasse, o mesmo funcionário mandou fabricar quinze milhões de urinóis. Ele já foi transferido para o escritório avançado do Afeganistão, mas o problema persiste.

Cynthia adorava um desafio, e este, com certeza, era um desafio. Máscaras e penicos, quem diria? Ela pensou, por breves momentos, enquanto tomava o café, observada pelos mais altos executivos do MedCartel, alguns com mais de 1m68 de altura. A idéia veio-lhe de estalo.

- Lancem a moda das máscaras na novela das oito. Digam que os indianos usam máscaras de proteção contra vírus intocáveis, e que os brâmanes usam urinóis sagrados nas suas vacas.

Vinte pares de olhos intrigados a observavam. Van de Tour lhe perguntou:

- O que é novela das oito?

Raios, pensou Cynthia, eles ainda não foram aculturados. Ela tentou encontrar outros sinais de aculturamento, como Friends e Sex and the City. Nada. O que esse pessoal fazia à noite? Teve outra idéia.

- Criem bailes do chope de máscaras e vendam urinóis na entrada. Quem já viu toalete de baile do chope, compra.

- Isso demoraria muito. Nós precisamos de algo para amanhã.

- Contra o que mesmo protege essa máscara?

- Vírus e bactérias, basicamente.

Cynthia ajeitou a franja que ameaçava encobrir seu olho direito e falou, entre os dentes:

- Criem uma pereba nova. Uma terrível, que faça as pessoas se decomporem nos seus mais básicos fluidos pestilentos. É claro, somente a máscara PestMask , fabricada pelo MedCartel, poderá protegê-los contra essa peste moderna. Quando vazarem isso na imprensa, espalhar-se-á como chuchu nas montanhas Ardenas.

Van de Tour fez cara de espanto.

- Hum, bem pensado. A propósito, temos um estoque reforçado de antígenos da influenza, que poderíamos converter em vacinas contra uma nova gripe. Que nome lhe daria? A última foi a aviária.

- Qual é a sua idade, monsieur Van de Tour?

- Tenho 69 anos de idade.

- Porco na cabeça. Pode chamá-la de Gripe Suína. Jogo do bicho também faz marketing.

Cynthia já deixava a sala, em meio aos tec-tecs dos sapatos de salto alto, quando Van de Tour lembrou-se de algo:

- O que faremos com os urinóis?

Sem virar-se, ainda em meio aos tec-tecs, ela gritou:

- Ora, vendam-nos para os doentes decompostos, para que eles recolham seus mais básicos fluidos pestilentos.

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16.5.09

521 - Uma perda de tempo


Foto: Wikipedia
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Uma Perda de tempo

Paulo Heuser


Aconteceu novamente. Idélio perdeu outra hora da sua vida. E perdeu um grande negócio, pois deixou de atender um cliente com hora marcada. Na primeira vez, ele caminhava para o escritório e levou uma hora para dar um passo. O pé direito levantou às 7h32 e desceu às 08h32. Do que fez naquela hora, nada sabe. Sabe apenas do que perdeu. Na semana seguinte, faltou ao jantar de comemoração da promoção da Bruna. Ela ficou possessa, quando ele entrou uma hora atrasado no restaurante, pontualmente. Depois veio a terceira vez, a quarta e ele já não as contava mais. Eram sempre lapsos de uma hora, precisamente uma hora. Os lapsos do Idélio não passaram despercebidos. Bruna o mandou ao médico. Foi ao clínico, ao neurologista, ao psiquiatra e ao curandeiro. Ninguém descobriu o que estava acontecendo com ele. Receitaram-lhe ansiolíticos, monolíticos e eletrolíticos. Porém, Idélio continuou a apresentar episódios de perda de uma hora.

MXV-78 tomou coragem e foi falar com o chefe. Preparou-se para o pior, pois o humor do Diretor Temporal estava terrível. O estagiário ZHT-93 deu outra mancada.

- Fizeram ensaios de horário de verão sobre um indivíduo do Tempo Real, um tal de Idélio, que acabou perdendo diversas horas da sua vida, devido aos avanços no tempo. O pobre coitado chegou a consultar diversos médicos, pois acharam que ele enlouqueceu. Faz tempo que ninguém apronta uma dessas.

O Diretor levantou ameaçadoramente as enormes sobrancelhas descabeladas.

- Quem foi o imbecil?

- O estagiário, filho do JKU-56.

- Aquele que põe catchup no café?

- Esse mesmo. O pior é que não podemos nos livrar dele, pois o JKU-56 é cunhado do Presidente Temporal.

- E agora, alguma sugestão de como consertaremos esse estrago?

- Pensei em devolver as horas ao sujeito. Assim, ficam elas por elas e ninguém perde nada. Creio que podemos devolvê-las todas de uma vez, assim colocamos uma pedra dobre esse assunto.

- É, acho que sim. Faça!

Idélio odiava discursos de homenageados. Bruna arrastara-o para a formatura de um amigo do primo de uma colega de trabalho. O homem que tomou a palavra iniciou seu discurso da melhor maneira possível:

- Vou lhes dizer apenas algumas breves palavras.

Essas algumas breves palavras já se estendiam por quase uma hora. Idélio estava louco para ir ao toalete. Finalmente, para o alívio geral, o homenageado tomou fôlego para falar:

- Vou lhes dizer apenas algumas breves palavras.

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15.5.09

520 - Um dia de chuva

Foto: National Astronomy and Ionosphere Center
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Um dia de chuva

Paulo Heuser


Dia terrível para se andar pela rua. Chove a cântaros. A Praça da Alfândega se transforma numa porção de água pontilhada por minúsculas ilhas, como diria a Dona Não-lembro-quem, do Segundo Primário. Centenas de pessoas pulam sobre as poças, sempre errando as pequenas ilhas. Porto Alegre também tem sua Praça de São Marcos. As mulheres tentam equilibrar-se sobre saltos agulha que rasgam fantasias masculinas e se entalam entre as pedras. No prolongamento da Capitão Montanha chove em dobro. Além da chuva que cai do céu, há chuva escorrida das folhas dos jacarandás. O vento não ajuda, lá parece chover até de baixo.

A chuva aquieta a praça. Vão-se camelôs, prostitutas, fedor de maconha e jogadores do Alphandega’s Cassino, que jogam dominó a dinheiro nos tabuleiros de damas. Restam apenas bancários, banqueiros, financeiros, financistas, clientes e vendedores de guarda-chuvas, todos tentando desviar das poças lacustres. Os pregadores do miolo da praça também desaparecem. Em dia desses não há pecado nem remissão, há trégua na guerra entre o bem e o mal.

Os bancos normalmente ocupados pelos que fecham cigarros verde-amarelos, na espera de vaza no jogo, estão vazios, com exceção do último, junto à carta de Vargas. Nele senta-se um vulto ereto como interno de colégio de padre na mesa do jantar, espaldar e costas em perfeito casamento. Chove sobre ele, como chove sobre tudo. Veste trapos molhados que já não protegem contra a água. Ele apenas fita o vazio encharcado à frente. Ao seu lado, sobre o banco, seus pertences, uma confusão de pratos descartáveis, papéis e restos de comida que parecem saídos de um despacho vilipendiado. Chove sobre tudo, e ele está alheio aos passantes que pulam sobre poças. Quem está por trás daqueles trapos é tão miserável que nem cachorro tem. Miserável sem cachorro é o cúmulo da miséria, é cego de realejo sem macaco e afiador de facas sem flauta, uno de um duo indissociável.

Praça não tem marquise. As pombas abandonam os passeios e vão espalhar sua caca pelas beiras dos prédios vizinhos. Na ponta do banco destaca-se um objeto curioso. Lá está, apontando para as nuvens e jacarandás, uma antena de UHF de TV, dessas que tem um refletor parabolóide no centro. Subitamente, tudo se esclarece. Ele aguarda a ligação para casa.

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13.5.09

519 - Os rins da sogra


Foto: Wikipedia
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Os rins da sogra

Paulo Heuser


Ontem tomei um taxi para voltar a casa. Passava das oito da noite, e o Centro já deixara de ser local freqüentável. Por sorte, ou não, logo consegui achar um carro no ponto da esquina. Um homem grisalho, na casa dos sessenta, tripulava um velho Fiat Uno cujas portas não fechavam sem grande esforço. O assento do passageiro pendia para a direita, porém, fazer o quê? Não havia outro. O Uno combinava com o motorista, que curiosamente cruzava nos sinais vermelhos e parava nos verdes. Concluí logo que o homem era daltônico e achei mais seguro encerrar a corrida na Júlio de Castilhos. Eu lhe disse que me esquecera do alpiste para o cachorro e pedi que parasse por ali mesmo. Nada, o homem seguiu firme, como se nada ouvisse. Era daltônico e surdo?

Agarrado àquele dispositivo, que leva aquele nome peculiar, segui pensando no que fazer. Pular fora no sinal verde? Resolvi testar novamente a audição do homem quando cruzávamos pelo muito baixo Morro Ricaldone. Paramos novamente no sinal verde. Comentei que as moças, que não eram exatamente moças, faziam ponto por lá. O cinesíforo acordou do aparente transe e deu um grito:

- Nem fale!

O que eu fiz? Antes de poder pensar numa resposta, ele continuou:

- Até domingo, eu tinha uma namorada de vinte e poucos anos. Comprei um Celta zero, completo, para fazer-lhe uma surpresa. Pus rodas de liga leve, assento de couro, som e película nos vidros. Foi para lá de 30 mil.

Até então, achei melhor responder com apenas um Ãhm. Fiz bem, pois minhas piores suspeitas logo se confirmaram.

- Quando cheguei à casa dela, para lhe entregar o carro, encontrei-a com um namoradinho. Ele fugiu correndo. Ainda bem, pois eu estava com minha 7.65 no painel. Não sei o que teria feito.

Nessas alturas já havia clima para uma tragédia de Nelson Rodrigues, e eu estava no meio dela. Achei melhor usar um ãhm minúsculo dessa vez. E segui a bordo do Uno torto conduzido por um corno que se endividou para fazer um agrado à bonitinha, mas ordinária. A essas alturas eu já não tive mais coragem para mandá-lo, ou melhor, lhe implorar que parasse. Depois que a avalanche inicia, o melhor mesmo é tomar assento e admirar a paisagem. Houve um momento de constrangedor silêncio, porém, ele continuou:

- Pus o carro no nome dela. Será que é fácil tirá-lo?

Usei um ãhmpf, tendo o cuidado de parecer positivo. Corno e trouxa, pensei. Se lhe dissesse que não, sabe-se lá o que faria. Talvez a 7.65 ainda estivesse por lá. A Floresta já ficava para trás quando fomos aos rins da sogra.

- Sou macumbeiro e estou fazendo a mãe dela sofrer. Não costumo fazer trabalho do mal, mas abri uma exceção. Eu estava fazendo um trabalho para curar os rins da velha que se contorcia de dor. Ela já estava quase boa. Parei, no domingo, e comecei um trabalho do mal para cima dela. Ontem ela já morria de dor. Foi tudo culpa da velha. Ela não queria que a menina namorasse comigo, só porque sou um pouco mais velho. Agora, as duas vão sofrer. Vão me pagar.

Não ousei pedir o troco, quando chegamos ao meu destino. Levei uns bons dois minutos para desembarcar do Uno torto, pois o homem terminava de me explicar o suplício da sogra. Cheguei vivo. Contudo, não dormi muito bem. Comecei a sentir uma dor incômoda no rim direito.


N. do A.: Os personagens desta história não são necessariamente verdadeiros, e qualquer semelhança com fatos e pessoas pode ser mera coincidência, para o bem dos meus rins.

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6.5.09

518 - Um ensaio sobre a solidão

Foto: Paulo Heuser
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Um ensaio sobre a solidão

Paulo Heuser


O excesso de automação me incomoda. Máquinas são boas para dispensar dinheiro, e pronto. Já passei pela ridícula situação de ficar trancado em um estacionamento, num domingo de manhã, porque o leitor da cancela da saída não reconhecia o bilhete autenticado pelo caixa automático. Após alguns minutos tentando passar o bilhete, saí do carro e procurei algum meio de comunicação com o controlador do estacionamento, que provavelmente dormia em alguma sala secreta.

Nada de botões. Nenhum guichê ou escritório à vista. Apenas concreto, cancela e uma câmera. Ela estava fixada no teto, lançando um duvidoso olhar sobre as redondezas. Haveria outra máquina atrás daquela? Esperei por alguns minutos. Nada aconteceu, ninguém entrou, ninguém saiu. Silêncio absoluto.

Voltei ao caixa automático onde paguei o estacionamento. Tampouco havia qualquer dispositivo aparente para comunicação. Apenas fendas para inserção de bilhetes, moedas e cédulas. O solitário visor só mostrava zeros. Ali, nada de câmera. Resignado, voltei ao carro. Do rádio, apenas chiado. Compreensível, pois eu estava em um estacionamento subterrâneo. Buzinei. Apenas o eco ribombando nas paredes de concreto. A Terceira Guerra iniciara e só eu não sabia? Saí do carro novamente e comecei a dançar perante a câmera. Nada. Cantei e sapateei. Nada. Fingi tirar tatu do nariz e esfregar na lente dela. Nada. Então, apelei e ameacei fazer pipi na cancela. O silêncio opressor fez-se mais presente. Eu estava miseravelmente sozinho, não restava a menor sombra de dúvida. Não chegou a representar consolo, mas lembrei que alguém passaria por lá, no dia seguinte, para buscar o dinheiro.

Não sei quanto tempo se passou. Alguma pequena eternidade, como a espera pela consulta das 18h30 do pediatra. Os pediatras não atendem consultas. Eles administram sucessões de calamidades. De qualquer forma, demorou. A idéia brotou aos poucos. Não percebi de imediato a extensão da coisa. Porém, sentado ali sozinho, deixando o pensamento divagar ao sabor da ausência de correnteza, somei alhos e bugalhos e cheguei a alguma coisa.

Revirei o lixo do console do carro e encontrei uma colherinha de sorvete de madeira. Meu canivete suíço-paraguaio estava no porta-luvas. Comecei a desbastar a colher até lhe dar a forma de um palito. Guardei novamente o canivete no porta-luvas, parei defronte à câmera e palitei acintosamente os dentes. O mundo veio abaixo. Soou uma sirene que deveria pertencer às trombetas do apocalipse. Do nada apareceu um sujeito que gritava impropérios e gesticulava ameaçadoramente.

Finalmente, consegui sair daquele misto de bunker e estacionamento. O vento da primavera trouxe a fragrância suave da lavanda. Por que não pensei antes no palito? Afinal, eu estava na França.

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4.5.09

517 - Sem intervalos

Foto: Wikipedia
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Sem intervalos
Paulo Heuser

Não sei se o problema sou eu, ou se as coisas estão cada vez mais confusas aí fora. As manchetes estão ficando cada vez mais estranhas.

Um bispo declara que gays podem se tornar padres, desde que adotem o celibato. Ora, se adotarem o celibato, que diferença fará a orientação sexual? Casal homossexual quer registrar gêmeos com duas mães. Cada criança terá uma mãe? Um homem chamado Elvis Presley trocará de nome. Quatro jogadores estão pendurados na Copa do Brasil. Garota de 18 anos seria pivô da separação de Berlusconi. Itamaraty não foi avisado do cancelamento da visita do Irã. Dois homens invadem delegacia e prendem policiais em cela. Egito ordena sacrifício de porcos. Os loucos estão por todos os lados. Essa não chega a ser novidade. Ministro da Agricultura quer comer porco no rolete com Lula. Projeto quer proibir fiscalização às escondidas na Capital. Marcha da Maconha está programada para o próximo sábado na Capital. Essa fechará o Salgado Filho. PT apóia o PMDB. Bruno e Marrone me mandaram um torpedo, às três da matina, para que eu não me esquecesse do show deles. Os remeto a arder no mármore do inferno. Que comam arroz de leite pelo resto das suas vidas terrenas! E depois, também!

Se isso não for um sinal do fim dos tempos, sou mico de circo, com febre amarela e tudo. Uma ou duas dessas manchetes podem até passar despercebidas, mas o conjunto da obra impressiona. A mais correta delas é aquela que anuncia que os loucos estão por todos os lados. Verdade, basta olhar ao redor.

Da TV por assinatura vem a insistente chamada de um programa chamado Deus versus Satanás, sem intervalos. Isto mesmo, sem intervalos. Coisa direta, uma hora de luta. O que fariam no intervalo? Repetiriam os melhores lances do primeiro turno, com o Galvão Bueno? Passariam mensagens do patrocinador? Resta saber quem seria esse patrocinador. Depois, viria o segundo turno das eleições.

Se nada disso convence os incrédulos, há um forte sinal de que estamos rumando em direção ao Apocalipse, ou equivalente. É outra dessas manchetes que podem passar despercebidas. O governo devolverá impostos cobrados indevidamente sobre o abono de férias! Com intervalos, naturalmente.

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