18.6.09

529 - Mens insana in corpore insano


O patriarca de uma FOBC
Senador da República José Sarney
Foto: Wikipedia
Mens insana in corpore insano

Paulo Heuser


O Mata-Bancário soprava na Caldas Júnior. Vinha lá do rio, pulava sobre o muro da Mauá e deixava seu rastro de gelo. Não vinha sozinho, trazia a chuva gelada. A moça que vende jornais na esquina da Siqueira Campos vestia traje de astronauta. Quem sobe a Serra atrás do frio deveria experimentar a sensação térmica daquela esquina. É de graça, porém, bem pior. E fica aqui, coisa nossa, porto-alegrense. Em vez de tomar chocolate quente, pode tentar o ensopado de vísceras do Jacó, com ovo picado, salsinha e pimenta medonha. Aquece a alma e algo mais. Deveriam trazer turistas do nordeste para conhecê-la, pois esquina como aquela, não há, pelo menos neste país. Pode haver lá em Vyngaïakhinsk, na Sibéria Ocidental. Contudo, lá não há dobradinha do Jacó, só sopa de repolho.

Pois, em meio a esse cenário de desolação térmica havia uma caixa de papelão, deixada ao lado da entrada do prédio. Por entre as tampas semicerradas via-se um improvável par de olhos, pertencentes ao menino maltrapilho que se escondia no interior da caixa. Choque! Ninguém espera por aquilo. Situação terrível. Mas, os calejados alfandegários de carreira sabem das coisas. Mendigo nenhum, em sã ou insana consciência, vai morar dentro de uma caixa de papelão, em plena Caldas Júnior, num dia de Mata-Bancário. É suicido, são ou insano, e reforça o apelo à piedade. Quem não está habituado a esses artifícios mercadológicos, digamos assim, dá em dobro. E, talvez, se põe a pensar no que levou aquele menino a chegar àquela situação. A resposta está escancarada, só não a vê quem não quer. Faltou-lhe uma família bem composta. As famílias bem compostas não deixam seus membros à mercê das intempéries.

Uma estrutura familiar bem composta logo coloca suas crianças num dos inúmeros programas sociais mantidos pela sociedade incivilizada, como o PPN – Programa do Pequeno Nepotista -, o PMP – Programa do Menor Parente - ou o PNC – Pequeno Nepotista Cruzado. À medida que crescem, outros programas sociais os esperam. Há de se destacar o programa MPE – Meu Primeiro Estado. Todos esses programas fazem parte de um pacote chamado FOBC – Família Oligárquica Bem Composta -, uma das raras unanimidades nacionais, mantido e operado pelos mais variados matizes ideológicos, que, apesar de mantidos por ela, navegam à margem da sociedade civil.

O pobre menino navega na sua bizarra nau de papelão, nos gélidos ventos da Caldas Júnior. Um par de olhos esbugalhados à procura de um porto que não encontrará, pois nasceu aqui, não nasceu lá.

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15.5.09

520 - Um dia de chuva

Foto: National Astronomy and Ionosphere Center
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Um dia de chuva

Paulo Heuser


Dia terrível para se andar pela rua. Chove a cântaros. A Praça da Alfândega se transforma numa porção de água pontilhada por minúsculas ilhas, como diria a Dona Não-lembro-quem, do Segundo Primário. Centenas de pessoas pulam sobre as poças, sempre errando as pequenas ilhas. Porto Alegre também tem sua Praça de São Marcos. As mulheres tentam equilibrar-se sobre saltos agulha que rasgam fantasias masculinas e se entalam entre as pedras. No prolongamento da Capitão Montanha chove em dobro. Além da chuva que cai do céu, há chuva escorrida das folhas dos jacarandás. O vento não ajuda, lá parece chover até de baixo.

A chuva aquieta a praça. Vão-se camelôs, prostitutas, fedor de maconha e jogadores do Alphandega’s Cassino, que jogam dominó a dinheiro nos tabuleiros de damas. Restam apenas bancários, banqueiros, financeiros, financistas, clientes e vendedores de guarda-chuvas, todos tentando desviar das poças lacustres. Os pregadores do miolo da praça também desaparecem. Em dia desses não há pecado nem remissão, há trégua na guerra entre o bem e o mal.

Os bancos normalmente ocupados pelos que fecham cigarros verde-amarelos, na espera de vaza no jogo, estão vazios, com exceção do último, junto à carta de Vargas. Nele senta-se um vulto ereto como interno de colégio de padre na mesa do jantar, espaldar e costas em perfeito casamento. Chove sobre ele, como chove sobre tudo. Veste trapos molhados que já não protegem contra a água. Ele apenas fita o vazio encharcado à frente. Ao seu lado, sobre o banco, seus pertences, uma confusão de pratos descartáveis, papéis e restos de comida que parecem saídos de um despacho vilipendiado. Chove sobre tudo, e ele está alheio aos passantes que pulam sobre poças. Quem está por trás daqueles trapos é tão miserável que nem cachorro tem. Miserável sem cachorro é o cúmulo da miséria, é cego de realejo sem macaco e afiador de facas sem flauta, uno de um duo indissociável.

Praça não tem marquise. As pombas abandonam os passeios e vão espalhar sua caca pelas beiras dos prédios vizinhos. Na ponta do banco destaca-se um objeto curioso. Lá está, apontando para as nuvens e jacarandás, uma antena de UHF de TV, dessas que tem um refletor parabolóide no centro. Subitamente, tudo se esclarece. Ele aguarda a ligação para casa.

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12.8.08

440 - O artista e o povo

Teorema, de Bruno Giorgi. Foto: Paulo Heuser
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O artista e o povo
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Por Paulo Heuser
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“Todo artista tem de ir onde o povo está” - canta o grande Milton Nascimento. Por vezes, não são os artistas, que vão, é a obra deles que vai ao encontro do povo. O escultor Bruno Giorgi (1905-1993), nascido no interior paulista, filho de imigrantes italianos, emigrou para a Itália, em 1911. Acompanhou a família, que para lá retornou. Em Roma, militou no partido comunista, o que lhe rendeu uma extradição, de volta para o Brasil, após amargar quatro anos no xilindró romano. Nos anos 30, foi estudar em Paris, nas prestigiadas academias La Grande Chaumière e Ranson.
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Bruno Giorgi voltou ao Brasil, em 1939, e estabeleceu-se em São Paulo. Ao longo de 40 anos de escultura, Giorgi deixou obras de grande expressão artística, como o Monumento à Juventude Brasileira (1947), que se encontra no Palácio da Cultura do Rio de Janeiro, antigo Ministério da Cultura e Saúde. Os Candangos (1960) enfeita a Praça dos Três Poderes, em Brasília. Outra obra de grande destaque é Integração (1989), que se encontra no Memorial da América Latina, em São Paulo. Bruno Giorgi foi professor do artista plástico austríaco, naturalizado brasileiro, Francisco Stockinger.
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Há uma obra de Giorgi na Praça da Alfândega, o Teorema. Pois o Teorema está cercado pelo povo. Nestor e suas famílias moram atrás do Teorema, durante o dia, pois diariamente perdem a marquise que os abriga durante a noite. Esse crescimento econômico, que tirou a maior parte da população da condição de miseráveis, trouxe a crise imobiliária para a minoria remanescente, na base da pirâmide. Bons mesmo foram aqueles tempos de crise, quando havia prédios para alugar, por toda parte. Sobravam marquises. Hoje, não. Basta o sol nascer para que Nestor e suas famílias sejam despejados pelos esquadrões da mangueira e do esfregão. Não respeitam nem sua mulher número 2, que espera outro filho. Ele nascerá sem marquise fixa.
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Noutro dia perguntaram ao Nestor sobre o número de filhos dele. Ele sempre responde o mesmo: dez. E continuarão sendo dez, após no nascimento daquele que a número 2 carrega no ventre, pois Nestor tem apenas dez dedos nas mãos. É aí que termina o sistema numérico dele. A Mega Sena acumulada paga dez, há dez árvores na praça, a idade do Nestor é dez, e assim por diante.Quase todas as pequenas cidades européias têm monumentos, nas suas praças centrais, aos soldados mortos durante as duas Grandes Guerras. São obeliscos com as listas dos nomes. Essas listas são particularmente grandes nos povoados próximos às fronteiras belga, luxemburguesa e francesa com a Alemanha. Lá ocorreram os combates que deixaram milhões de mortos e estropiados, homenageados através dos célebres monumentos ao soldado desconhecido. Sobre as cenas que lá presenciou, o médico britânico John McCrae escreveu um célebre poema, em 1917:
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“NOS CAMPOS DE FLANDRES
Nos campos de Flandresas papoulas estão florescendo entre as cruzes
que em fileiras e mais fileiras assinalamnosso lugar;
no céu as cotovias voame continuam a cantar heroicamente,
e mal se ouve o seu canto entre os tiros cá embaixo.Somos os mortos...
Ainda há poucos dias, vivos,
ah! nós amávamos, nós éramos amados;
sentíamos a aurora e víamos o poentea rebrilhar,
e agora eis-nos todos deitadosnos campos de Flandres.
Continuai a lutar contra o nosso inimigo;
nossa mão vacilante atira-vos o archote:
mantende-o no alto.
Que, se a nossa fé trairdes,
nós, que morremos, não poderemos dormir,
ainda mesmo que floresçam as papoulas
nos campos de Flandres.”
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Na Praça da Alfândega há apenas monumentos em homenagem àqueles que conquistaram as mais altas patentes. Nestor nunca lerá Nos campos de Flandres, até porque é analfabeto. Tampouco sonha onde fica Flandres, apesar de sonhar com uma telha de folha de flandres, para construir um puxadinho no Teorema. Talvez agora perguntem: o que tem uma coisa a ver com a outra? Bem, provavelmente Bruno Giorgi nunca esperou chegar tão próximo do povo, a ponto de morarem na sua obra. Tampouco esperava criar uma espécie de monumento em homenagem ao estropiado desconhecido, pracinha da miséria. Sem papoulas a florescer, resta algo de poesia ao Nestor. Talvez ele possa declamar Nos campos da Alfândega:
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“...ah! nós amávamos, nós éramos amados;
sentíamos a aurora e víamos o poentea rebrilhar,
e agora eis-nos todos deitados...”
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Disso, Nestor entende. Passa metade do dia deitado, e, pela facilidade que ele apresenta, para amar e ser amado, talvez aquele seja o monumento ao pai desconhecido.
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18.6.08

414 - Atrasado!



Foto: Paulo Heuser
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Atrasado!

Por Paulo Heuser


Eu adorava sardinhas, quando criança. Não pelas sardinhas, pela lata. O atum relegou as sardinhas ao esquecimento. As pizzas de sardinha foram prato de todas as festas de aniversário da década de 70. Os rapazes levavam a bebida, as moças a comida. As mamães das moças preparavam pizzas de sardinha, invariavelmente, e os papais se livravam das bebidas que haviam recebido de brinde, seja quais fossem.

As latas de sardinhas vinham com aquela chave que pretendia facilitar a abertura. Era uma chave metálica que se encaixava numa aba, e permitia, em tese, que a tampa da lata fosse enrolada na direção de uma das extremidades. Já as pobres latas de atum, além de caras, apresentavam superfície lisa, quase desprovida de encaixes para o abridor. Para dificultar mais a abertura, sempre foram cilíndricas, exigindo que o abridor de latas ande em curva. Os abridores geralmente descarrilam. Algumas já contam com abertura através de um anel que, quando puxado, traz a tampa consigo.

As latas de sardinhas me causaram tamanho fascínio, que passei anos projetando um sistema de abertura instantânea, sem riscos à saúde. Descartei o canhão laser, pelos custos envolvidos. Deixei também de lado o rolo compressor, pois saía apenas purê de sardinhas. O modelo que chegou mais próximo da realidade foi um cortador, no formato da lata, que guilhotinava a tampa, de um só golpe. Naturalmente, tamanho e formato da lata deveriam se manter padronizados. Estava dando tudo certo. O equipamento era barato, de fácil operação, e de tamanho relativamente compacto, podendo ser afixado à parede. Então, veio o Collor. A segunda abertura dos portos, promovida por elle (sic), trouxe as latas de sardinhas portuguesas. Nada contra a nacionalidade delas. O problema foi o formato das latas, completamente diferentes das nossas. Depois, os pobres passaram a comer atum, graças à distribuição de renda do Lula. Atacado por direitistas, socialistas e portugueses, joguei a toalha. Desisti, pois cheguei atrasado. Meu invento foi natimorto. Não como mais sardinhas, e passei a odiar as latas.

As grandes corporações também chegam atrasadas. A France Telecom montou uma rede para acesso pago, sem fio, a Internet, cobrindo toda Paris, enquanto a prefeitura da cidade montava uma rede semelhante, com acesso gratuito.

Descobri que cheguei novamente atrasado. Investi nas eleições, tarde demais. Projetei postes telescópicos, que poderiam ser encolhidos até a altura de apenas dois metros, para facilitar a colocação e a retirada de propaganda eleitoral. Nos hiatos entre eleições, que não são tão longos assim, o sistema poderia abrigar a propaganda não-eleitoral. Todos ficariam felizes. Os candidatos poderiam colar sua propaganda sobre a dos outros, todas as noites. As gráficas operariam a plana capacidade. Alguém fabricaria e venderia os postes. As empresas de publicidade venderiam novos espaços. As prefeituras poderiam alugar os postes. Eu ficaria rico com a patente. Proibiram a propaganda eleitoral nos postes. Novamente, cheguei atrasado!

Não desisti, no entanto, de continuar inventando. A motivação veio de um grupo de sete miseráveis que aguardavam a morte, sentados sob uma marquise, nesta noite de frio glacial. Morrerão de frio, mas mantêm algum humor. O primeiro deu boa noite. O segundo pediu desculpas por darem boa noite, enquanto o último comentava que, de qualquer forma, eles não existiam. Como todo CSM – cidadão sem marquise -, passei olhando para o chão. Não é bom encarar a realidade. Percebi, então, por que as lojas passaram a colar propaganda sobre o passeio público. Todo mundo passa olhando para o chão, com se usassem um cabresto vertical. Foi então que nasceu meu novo projeto. São os OVU – Óculos de Visão Ufanista. Eles convertem a realidade local à realidade dos discursos. Esses óculos transformarão a passagem pelo Centro num passeio agradável, como se estivéssemos naquele lugar que os discursos políticos projetam. Através deles, veremos apenas marquises desabitadas. Não haverá caixas de papelão e cobertores sujos. Na Padre Chagas, os flanelinhas sumirão. Infelizmente, ainda não achei uma forma de sumir com os parquímetros. Os OVU eliminam apenas a imagem. O me-dá-me-dá-me-dá, permanecerá. Nada que um MP3 não resolva.

Sei que o produto tem tudo para se tornar um sucesso. Só temo chegar atrasado, novamente. Se o Brasil se tornar, finalmente, aquilo que nos vendem nos discursos, os OVU serão inócuos, inservíveis. Mostrarão a mesma agradável realidade que a visão a olho nu nos proporcionará. Assim, torço pelo atraso. Adoraria jogar os OVU fora. Porém, meu medo maior é da visão das ruas vazias, completamente desabitadas, através dos OVU, ao meio-dia, em pleno Centro, num dia comum da semana, apesar do ruído intenso.

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26.10.07

Os pés

Foto: Paulo Heuser
Os pés

Por Paulo Heuser


Quem escreve, externando opiniões, sabe que algum dia voltará uma pedrada. É difícil dizer que a primeira pedrada dói mais. Todas doem, pois incomodamos alguém. Indo à chuva, nos molhamos. Contudo, de alguma forma aprendemos a conviver com as pedradas. Fizemos por merecer, portanto devemos achar uma saída, que geralmente gira em torno de escrever à pessoa ofendida e expor nossa posição de forma mais aceitável, se é que isto é possível.

Imagens podem chocar tanto ou mais que palavras. Há filmes famosos que trilharam o avesso da história usual. São os filmes que geram romances escritos, contrariando a ordem natural, onde romances inspiram cineastas. Hoje talvez esteja esquecida nos arquivos do tempo, mas havia uma foto que recheou todos os jornais e periódicos do mundo. Em 8 de junho de 1972, o fotógrafo Nick Ut tirou uma foto da menina vietnamita Kim Phuc, na época com nove anos de idade, correndo nua, completamente queimada, após sua aldeia ter sido bombardeada com napalm. Quem viveu aquela época, lembra-se dela.

Eu caminhava, como de hábito, levando a câmera a tiracolo, quando me deparei com dois pés descalços que se projetavam sobre o passeio, entre floreiras. Estou habituado com qualquer tipo de cena envolvendo gente, pois caminho muito pelo Centro. Porém, não é comum ver apenas pés. As pessoas tendem a abrigar os pés, seja por questões térmicas, seja pelo instinto. Sei lá por que, mas tendemos a proteger mais os pés. Dificilmente alguém deixa de fora apenas os pés. Pés juvenis, o que piorava a cena. Cena que fiz questão de registrar, talvez egoisticamente. Publiquei a cena em sítios de compartilhamento de fotografias. Alguém que as viu, me desafiou a escrever sobre aquela cena. Bem feito, levei nos dedos. Conheço um sujeito que defende a informalidade de todos os contratos, já que o que está escrito não pode ser apagado. Fiquei com vontade de apagar aquela foto, em vão, pois já estava impressa atrás da retina de quem a viu.

Ao lado dos pés havia um saco de salgadinhos, estilo esterquitos. Acabei editando a foto, retirando a cor de tudo que cercava aqueles pés. Não faço a mínima idéia de quem era o dono, ou dona, daqueles pés. Na verdade, não tentei descobrir. Melhor assim, eram apenas dois pés, sem rosto, sem corpo e sem alma. Ainda assim, os pés de alguém, presumidamente. De alguém que já não se importava com os próprios pés, que poderiam ser fotografados ou não. Será que o dono daqueles pés imaginou que eles poderiam se tornar objeto da curiosidade alheia? Ninguém reparou naqueles pés, enquanto cena real do cotidiano. Revelaram-se pela foto, quando passaram a chocar os eventuais espectadores. A cena faz parte do mundo externo, aquele que devemos evitar a todo custo. A foto nos mantém na redoma, longe da desgraça alheia. Lá somos todos cúmplices, por clicar, por observar.


prheuser@gmail.com
www.pauloheuser.blogspot.com

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20.9.07

Universos paralelos


Foto: Paulo Heuser
Universos paralelos

Por Paulo Heuser


Faz 50 anos, Hugh Everett, estudante da Universidade de Princeton, sugeriu, à luz da Mecânica Quântica, que haveria universos paralelos. David Deutsch, da Universidade de Oxford, e Andy Albrecht, da Universidade da Califórnia, seguem caminhos semelhantes, hoje, nas suas pesquisas. É assunto de destaque na edição eletrônica da NewScientist de 19 de setembro.

Alheios à Mecânica Quântica e à Matemática complexa que a rege, José e Renan vivem seus universos paralelos, sem estabelecer contato um com o outro, sem interfaces compatíveis, sem sequer saberem da existência um do outro. Seus universos simulam um choque entre galáxias com imensos vazios, onde a matéria não se choca. Nem a luz que irradiam é percebida, pois emitem radiações em freqüências tão diferentes que não se detectam mutuamente. Um é matéria escura para o outro. Podem até saber da existência do outro, através da Estatística, mas não se comunicam.

Renan anda no balanço do poder, descendo por vezes, mas sempre acabando por atingir o topo. Ele vê o mundo de cima, e sempre há quem lhe empurre. Quando tudo indica que lhe faltará impulso, alguém empurra seu balanço. Acaba embalado por aqueles que não o confessam. Passam por ali, com quem não quer nada, e dão um bom empurrão. Querem vê-lo no alto, hoje, para se verem no alto, amanhã. Aparentemente, ninguém nota que já passou faz muito da fase de andar de balanço. Ou não nota, ou finge que não vê.

José anda no balanço da praça, como se fosse criança. Seu estado de demência lhe dá esse direito. Ninguém reclamará que, aos trinta, anda de balanço. José nunca atinge o topo, pois lhe falta impulso. Não há quem lhe dê um empurrão. Cleide, aos quinze, não pode. Dança um funk imaginário, sacudindo a barriga de oito meses. Eles nunca ouviram falar do Renan, nem ele, deles. Seus balanços se cruzam nos vazios dos átomos que os compõem. Suas matérias não obedecem às Leis de Newton e suas energias não obedecem às Equações de Maxwell. São massas que não geram campos gravitacionais e são partículas em movimento que não geram campos. Renan é não-matéria para José, que não apresenta carga para Renan.

Renan ri pela soberba. José ri da desgraça. Perdeu qualquer resquício de contato com a realidade do país do Renan. Para José, país é um conceito abstrato. Sabe da existência de uma bandeira, que nada significa, na sua praça. Sua pátria é a sua praça, onde vive e dorme. José não lê, não ouve e não vê. Para quê? Trabalha e se alimenta com o lixo. Diverte-se do balanço real da praça. Renan se alimenta dos restos morais da sociedade. Dos que empurram seu balanço virtual, em direção ao topo, ao céu que o balanço do José nunca atingirá.

Renan sorri de soberba. José sorri, pois será pai, mesmo que não faça a mínima idéia de como sustentar um filho, já que não sustentou os outros oito. Isso é problema para daqui a um mês. Renan sorri porque sabe que a probabilidade de que cruze pelo balanço de José é estatisticamente mínima. E José sorri infantilmente, enquanto observa a dança de Cleide.
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