28.2.07

A Bolsa da China

A Bolsa da China

Por Paulo Heuser

Josué chegou em casa, finalmente, após mais um dia de trabalho. Um dia como todos os outros, já que não freqüentava mais a igreja, aos domingos. Não porque se tornara um ateu. Era falta de tempo mesmo. A lavoura e os animais o mantinham ocupado, principalmente após Maria tê-lo deixado. Ela conhecera a cidade e se apaixonara, pela cidade e pelo Maurão, motorista do ônibus. Mudaria-se de malas e bagagens, se as tivesse. Levou o vestido e o pente, herdados da mãe. E a vontade de viver, herdada de si mesma. Embrulhou tudo no único lençol e foi, deixando Josué a ver navios, no único quadro da casa. Apesar de carcomido e da moldura alquebrada, ele ainda permitia ver o navio. E o mar, com o qual Josué só podia sonhar, já que nunca deixara aquele grotão.

Pelo menos Maria deixou o único tesouro da casa, o rádio velho, que haviam trocado por um porco novo. Josué economizava para comprar as pilhas, já que luz não havia. Pelo menos chovia, de quando em quando. Este verão não estava tão seco. Hora de tratar os animais. Houve anos em que quase morreram de fome. Nada vingava. Tudo morria no chão seco. Os animais perdiam peso, até perder também as forças.

Josué não conseguia ficar com raiva da Maria. Ninguém merecia aquela vida sofrida. O sol já se fora há muito, e ele continuava trabalhando. Apenas para sobreviver até o dia seguinte. Só havia o dia seguinte. Sonhos e esperança não cabiam naquela vida. Chegada a hora do descanso, Josué sentou na entrada da casa e constatou que sentia falta da Maria, fisicamente falando. Fora a única mulher na vida dele. Resolveu ouvir um pouco do rádio, para se distrair. Um pouco, apenas, para não gastar as pilhas. Perderia mais uma galinha, trocando pelas pilhas.

Após o clic, o ar ao redor do velho rádio encheu-se de ruídos de estática e assovios estridentes. Entre a zorra de chiados, ouviu-se uma voz, finalmente, que ia e vinha. Afinando a sintonia, Josué recostou-se e fechou os olhos, concentrado, para não perder nem palavras nem chiados. Era tudo muito precioso. O homem falou, claramente:

- Caiu a bolsa da China!

Era isso mesmo que o Josué queria ouvir. Sem Maria, precisaria arrumar uma china. E esta, sem a bolsa, provavelmente aceitaria uma galinha, em pagamento.


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Três por Quatro

Três por Quatro

Por Paulo Heuser

Precisei de novas fotos, para alguns documentos. Comecei procurando na Internet, nos sítios do governo, qual é a documentação necessária para solicitá-los. Para alguns precisamos de fotos 3X4, para outros, 5X7. Umas com data, outras sem. Uns exigem a apresentação da certidão de casamento, outros do RG. E o pagamento de taxas, com múltiplos valores e múltiplos códigos. Ai de quem errar, não há devolução. Não consigo entender por que temos tantos documentos. De formatos diferentes, cores diferentes e, o que é pior, emitidos por órgãos diferentes, de poderes diferentes. Por que não temos apenas um documento? Sei, seria muito fácil refazê-lo, em caso de perda. Assim temos de ir a 29 locais, que exigem documentos diferentes, com taxas diferentes e com fotos diferentes...

Para as fotos, escolhi um antigo fotógrafo da Rua da Praia. O homem usa uma autêntica Rolleiflex 6X6. Faço fotos lá, ou tiro retratos, faz muitos anos, mais de 20, creio eu. Procurei bem na gaveta e encontrei o cartão que dizia: “10% de desconto nos próximos serviços”. O cartão já estava meio amarelado, mas promessa é promessa, não tem validade determinada.

Subi a escada do prédio antigo próximo a Ladeira. Escada centenária, de madeira, em um daqueles prédios que ninguém vê, apenas passa, ignorando épocas de glória. No topo da escada, num hall amplo, dei de cara com a porta fechada. Como fechada? Será que o sujeito foi ao lanche? Mas, lanche às 17h30? Porta trancada com grades e cadeados. Férias coletivas ou óbito, com certeza. Passou um sujeito carregando um armário, de outra sala. Perguntei-lhe sobre a Foto Trevo. Ele respondeu à pergunta com um riso, pois fecharam há tempo. Fiquei parado, embasbacado, olhando para aquela porta fechada. Como fecharam? Há negócios que não podem fechar, como cabeleireiros e fotógrafos de 3X4. Ficamos desamparados, sem eles. E então, como tiraria o retrato? Desci a escada e me perdi no fluxo de pessoas alienadas, nenhuma entendendo a dimensão do meu drama.

Dividi minha dor com uma filha, que ria, enquanto me mandava para a primeira loja de revelação de fotos digitais, que não precisam ser reveladas. Não sou exatamente do tempo do lambe-lambe, mas aquilo pareceu exagerado. Esperava encontrar uma salinha com uma cortina floreada, pelo menos. Deveria haver um pequeno espelho na parede. E um pente Flamengo, em algum lugar. Pente que já percorreu milhares de quilômetros de fios de cabelos alheios. Nada disso, um rapazinho apenas apontou para uma banqueta, no meio da loja, enquanto empunhava uma daquelas minúsculas câmeras digitais prateadas, cuja pretensão é infinitamente maior do que a qualidade das fotos, ou retratos, que tira. Que seja, vamos céleres à modernidade. O rapazinho comentou, com um ar de preocupação:

- Ih, o sol está pegando bem na sua cara!

Daria uma foto do Iluminado? Perguntei-lhe sobre a possibilidade de voltar na manhã seguinte, quando o sol incidiria sobre a parede contrária. Ele riu, comiserado, enquanto me explicava que o flash faria o sol desaparecer “da minha cara”. Só um idiota, como eu, não saberia disso. Fiat lux. Sentei-me para aguardar o resultado. Lembrei-me, repentinamente, da necessidade de data nas fotos. Ele me tranqüilizou, dizendo que colocaria a data depois. Prático, não. Faz-se apenas uma foto e troca-se apenas a data, quando necessário. Como nas lápides.

Enquanto relaxava no sofá, observei o rapazinho trabalhando. Movia freneticamente o rato apontador, de um lado para o outro, enquanto teclava furiosamente com a mão esquerda. A minha foto aparecia na tela, muito ampliada. Ele clicava, enquanto olhava uma foto num álbum. Minha foto começou a deixar de ser minha. O Fotoxop operava milagres estéticos. Comentei que, por mais estranho (e horrendo) que pudesse parecer, eu gostaria de me parecer comigo mesmo, nas fotos.

- Não dá, tenho de deixá-lo mais normal. – disse ele.

- O que é normal? – lhe perguntei.

- Bem, é como os outros...

- Quais outros?

- Os da foto do álbum.

- Mas, eu quero uma foto fiel...

- Ah, não cola! O pessoal lá não aceita – ele sacudia a cabeça, negativamente.

- Quem não aceita?

- Eles lá, sabe?

O rapazinho não abriu mais a boca, enquanto dedilhava, copiava e arrastava sobre a foto daquele sujeito na tela, que um dia fora eu. Quem seria agora? Começou a ficar parecido com... Marlon Brando, em O Selvagem (1954). Decorridos 10 minutos, parou, visivelmente satisfeito com a metamorfose. Vieram-me à lembrança os espetáculos circenses, nos quais uma mulher se transformava num gorila. Até que escapei bem. Nada de pelos adicionais.

Espero que eles (eles lá, sabe?) aceitem.


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26.2.07

Da Série Faça Você Mesmo - Meu Primeiro Reino

Da Série Faça Você Mesmo – Meu Primeiro Reino

Por Paulo Heuser

Reinos não são eternos, para todos há um início, para alguns, um fim. Há mais de uma forma de se criar um reino. A mais antiga, clássica, consiste em tomar o poder na base da força, da porrada. Reunia-se um exército de conspiradores que derrubava o rei, então investido, escolhendo um novo, já definido durante a conspiração. Este morria antes da coroação, pois era escolhido como boi de piranha, ou ainda como o Bode de Azazel, que, segundo a tradição judaica, recebia todos os pecados do sacerdote e do povo no Dia da Expiação, sendo jogado no deserto. Lá viveria a expiar todos os pecados. Expiar com “x”, no sentido de redimir. Havia também os que espiavam com “s”, para tirar algum proveito disso, depois. Surgia então o novo rei, escolhido pelos neoconspiradores. Havia conspiração dentro da conspiração, criando o círculo monstruoso da Teoria da Conspiração. Será este um fantástico exercício dela?

Todos aqueles que contribuíam de alguma forma para eliminar o rei morto e dar vivas ao novo rei vivo, recebiam título de nobreza. Formavam a corte, os que representavam o colchão entre o rei e a plebe. Absorviam os choques originados na plebe e deixavam passar os originados no rei. Foram os crocodilos de fosso intramuros. Os nobres eram mantidos quietos através de benesses diversas, como terras, escravos, pagamentos em dinheiro, verbas de representação, passagens de carruagem, carruagens off-road, verbas para manutenção do feudo, etc. Não faltaram histórias sobre tesouros na Helvécia e na Normandia insular. Cada nobre controlava um feudo, contratando um enorme exército de defensores, tudo pago pelo caixa do reino. Alguns nobres gastavam demais, tendo de recorrer às contribuições espontâneas de burgueses. Estes, apesar de não ostentarem títulos de nobreza, detinham a maior parte do poder, pois deles vinham os recursos financeiros para a manutenção do poder no reino. Sem eles, o rei estaria nu, e os nobres, desempregados.

Os nobres reuniam-se em câmaras, de onde aparentavam legislar sobre as coisas da plebe. Na prática, concorriam entre si para escolher o mais nobre dos nobres. Eventualmente, quando a plebe e a burguesia inquietavam-se, a corte escolhia um novo Bode de Azazel, atribuindo-lhe todos os pecados e jogando-o no Deserto Paradiso, através da aposentadoria, de onde passava a conspirar nas sombras, através de um processo denominado articulação política.

Um outro grupo de nobres julgava os eventuais deslizes dos pares, utilizando normas criadas pelos julgados. Eventualmente, poderia ocorrer alguma falha constitucional no processo, liberandos réus a rodo. Alguém erroneamente enquadrava os nobres no artigo errado da norma, anulando todo o processo. Quando havia normas demais, o pessoal se confundia.

Com o cair da areia da ampulheta, e de um bocado de cabeças francesas, vieram os novos tempos. Liberdade, fraternidade e igualdade, finalmente. A partir de então, reinos não são mais reinos, são repúblicas. Reis não são mais reis, são presidentes. Nobres não são mais nobres, são parlamentares. Burgueses não são mais burgueses, são empreendedores. A plebe não é mais plebe, é o povo, e “todo o poder emana do povo, que o exerce através de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” - Ex vi do parágrafo único, do art. 1º da Constituição Federal de 1988, a “Constituição Cidadã” (sic).

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23.2.07

Uma Crônica de Verão

Uma Crônica de Verão

Por Paulo Heuser

Chuva na praia pode ser bem-vinda. Quando chove à tardinha, parando pela manhã. Nada melhor para dormir. Contudo, quando a chuva vara dias a fio, torna-se incômoda, exigindo criatividade redobrada por parte dos veranistas. Há poucas alternativas de entretenimento. Após intermináveis partidas de canastra, buraco, sinuca e pega-vareta, o pessoal começa a ficar inquieto. Daí surgem as pescarias com bolinhos de chuva e alguma coisa quente para beber. Quem tiver José Saramago como companheiro de rede, certamente terá o que fazer, por muito tempo.

Quando bate de vez a inquietude, surgem os esportes náuticos alternativos, como bocha no barro, corrida de tatuíras e surfe no gramado. O mau tempo se reflete também na alimentação. Sucedem-se churrascos, caldeiradas, feijoadas, macarronadas, mariscadas e outras adas. A olina com sal de frutas corre solta. Bebe-se de um trago só. Os veranistas planejam o almoço, durante o café da manhã, o jantar, durante o almoço e, porque não, a ceia, durante o jantar. Em meio a uma ceia dessas, assisti a um desafio original. Quem faria o café da manhã mais repugnante, pelos padrões alimentares considerados normais, pela maioria. Padrão normal é aquele do taça-pão-e-manteiga, aprovado pelas vovós e pelas tias velhas. Estabelecidas as regras, todos foram dormir, excitados pela perspectiva de grandes emoções na chuvosa manhã seguinte.

De acordo com o estabelecido durante a ceia, os concorrentes puderam escolher qualquer coisa que houvesse na geladeira e fora dela. Tiveram 30 minutos para freqüentar os mercados. Confesso que não resisti à tentação e me inscrevi na contenda.

Fui o primeiro concorrente a mostrar as habilidades culinárias praianas, abrindo a I Olimpíada Litorânea de Nojeira Matinal. Quase não dormi na noite anterior, planejando meu prato. Chegada a hora, espalhei cebolas fatiadas sobre uma caçarola, alho, rodelas de pimentão, pimenta vermelha, tudo regado com azeite e coberto com presunto, ovos e queijo. Uma autêntica fritada, de dar azia já durante o preparo. Pelas reações da torcida, recebi nota três, de cinco. O segundo concorrente não fez nem cócegas, limitando-se a colocar um filé à parmegiana dentro de um pão amanhecido. As tias nem torceram o nariz.

Chegou a vez do Inominável. Não sobrou panela sobre panela. Ele colocou banha de porco, uma camada de uns três centímetros, no fundo de uma panela, acrescentando bacon e rins de porco. Em meio à fedentina, intercalou a gosma resultante com camadas de pastéis e risoles de frango amanhecidos. Serviu frio, acompanhado de cerveja morna. Uma tia não conseguiu assistir à cena, correu antes para o banheiro. Ele recebeu nota dez, de cinco. Naquele dia não houve almoço nem ceia. E o jantar foi uma sopa rala de batatinhas e cenouras. Parou de chover, também, graças a Deus.

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22.2.07

Prescrições Alternativas

Prescrição Alternativa

Por Paulo Heuser

Entrei na farmácia, trazendo na mão a receita prescrita pelo médico. O nome do remédio estava lá, claramente, em letras incompreensíveis de alguma língua estranha. Diz-se da justiça que utiliza aquele peculiar jargão para impedir os usuários de dispensar os advogados. Assim deve ser na Medicina. Médicos e farmacêuticos estabeleceram um código secreto milenar para identificar as receitas. Esse código é tão secreto que, por vezes, os médicos que prescrevem a receita não entendem a própria letra. Aí vem o livre arbítrio do balconista. Recusa e receita, consulta outro sábio em hieróglifos ou faz sua própria interpretação, entregando o que há de mais semelhante no estoque. Afinal, qual é a diferença entre um Piroxiheptacoximperemterol e um Piroxihexacoximperemterol? E agora lançaram o II – Turbo Advanced, ainda desconhecido pelos médicos. O homem da mala preta ainda não passou pelo consultório.

O sorridente balconista tomou a receita das minhas mãos. A leu atentamente, enquanto falava alguma coisa em voz baixa e gesticulava com a mão esquerda, como que contando unidades. Nesse momento ouvimos uma voz que rugia:

- Não vai adiantar nada!

Era um chato de farmácia, peru de doença dos outros, curandeiro universal de plantão. Ele fica olhando os cosméticos em exposição enquanto aguarda sua presa – qualquer um que traga uma receita nas mãos. A voz rugiu novamente:

- Isso é perda de tempo e dinheiro! – esticou o pescoço para ler a receita, de esguelha.

- Vinagre! Vinagre é a solução! Curei minha candíase com vinagre! – continuou ele.

O balconista não pareceu surpreso, pois o chato deveria ser bem conhecido por lá.

- Mas, a receita é de um colírio... – não consegui terminar a frase.

- Besteira, ponha vinagre! Se for para o olho, amasse alho roxo e misture com o vinagre. Passe quatro vezes ao dia, até que o olho fique bom. Se não enxergar mais, retire o alho. É tiro e queda!

O balconista aguardava minha decisão, olhando de um para o outro. Disse-lhe que levaria o colírio, assim mesmo. O chato sacudiu a cabeça, em desalento, enquanto sentenciava:

- Há um trouxa para cada receita!

- Bem, foi o médico quem receitou...

- Não entende nada! Garanto que ele usava óculos, não é?

- Sim, mas...

- Vai acreditar num médico de olhos que não consegue curar a si mesmo?

Dirigi-me ao caixa, levando o colírio, antes perguntando ao balconista:

- Vocês teriam também vinagre e alho?


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21.2.07

A Vida e o Risco

A Vida e o Risco

Por Paulo Heuser

Risco pode ser apenas um traço, um segmento de reta. Quase nada podemos representar com apenas um traço. O horizonte na Holanda, talvez. Risco pode ser também o que define nossa vida. Estamos permanentemente arriscando alguma coisa. Ou deixando de arriscar, o que pode também representar um risco.

Uma ultrapassagem representa risco, no trânsito. Arriscamo-nos mais ou menos, conforme nosso arrojo, função da idade, em geral. Os jovens se arriscam mais. Vão aos limites no trânsito, quando não os ultrapassam. Correm os riscos de pagarem mico, bebendo demais. Podem também morrer, desta forma. Sofrem com o risco de levar um fora. Ou com o dilema de não levá-lo, se não tentarem uma abordagem.

Na casa da pretendida, nada dá certo, quando nos arriscamos muito. Pouco também. Nos arriscamos ao sentar naquele sofá de tecido sintético que emite sons fisiologicamente suspeitos, quando nos movemos. Nos arriscamos ao exarar nossa sincera opinião sobre a musicalidade da dupla Alpendre e Alcagüete, quando o candidato a sogro é o Alpendre em pessoa.

Apesar de tudo que é dito, nos arriscamos a comer aquelas deliciosas maioneses caseiras, feitas com os ovos maturados das galinhas do vizinho do cunhado do entregador de pizza. Não há como resistir ao produto caseiro. Na contra-mão da globalização, corremos o risco da revolução. Intestinal.

A vida é assim mesmo. Não há como fugir dos riscos. Ao atravessar a rua, ao tomar banho na banheira, ao fazer a barba, ao jogar na loteria, estamos sempre nos arriscando. Na proporção inversa da nossa idade. A aproximação do inevitável aumenta a cautela. Contudo, como em tudo, há exceções à regra. Pelo menos uma. Quem descobriu tal exceção foi o meu amigo Peter, ao apanhar o jornal, pela manhã.
O entregador, como de hábito, enfiara o jornal sob a porta do apartamento, parcialmente. Peter abaixou-se e puxou a ponta do jornal. Nada, não veio. Pior, o jornal reagiu com uma força de mesmo módulo, mesma direção e sentido contrário, num súbito e intenso rompante newtoniano. Animado, sabe-se lá pelo que, além da Terceira Lei de Newton – a Lei de Ação e Reação -, o matutino adquiriu vida. Quereria poupá-lo das intermináveis desgraças nele contidas? Certamente explodiu outro carro bomba na fila do pão em Bagdá. Morreram nove e um joão-de-barro na colisão de um Fiat 147 contra um poste. A eleição ainda não terminou, seja qual for. Chavez vai estatizar funerárias e fábricas de fraldas. O Presidente tomou banho de mar.

Peter não se deu por vencido. Puxou com força, dessa vez. Foi imitado pelo jornal, que quase o derrubou. Durante a luta, empatada até então, lhe ocorreu abrir a porta, para atacar o jornal por trás. Contava com o elemento surpresa. E esta foi enorme, ao abrir a porta, de supetão. Do outro lado do cabo-de-guerra, no qual o jornal se transformara, estava Dona Erfrydes, vizinha do 1401 – este não é o seu número verdadeiro. Tampouco é aquele o seu nome verdadeiro, evidentemente. Dona Erfrydes causava mais espanto pela aparência. Vestida com um chambre - daqueles acolchoados -, pantufas de dinossauro, rolos no cabelo e olhos esbugalhados, pela surpresa, ela apresentava um quadro assustador, personagem foragido de algum conto de Stephen King.

Refeitos do enfarto, estabelecida a propriedade sobre o jornal, cada um voltou para sua casa. E o jornal deixou de sumir. Dona Erfrydes passou dois meses sem cumprimentar Peter. Achei pouco, pois se arriscou muito. Prova de que o tamanho do mico também é inversamente proporcional à idade.

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20.2.07

Virgílio e as Saturnais Romanas

Virgílio e as Saturnais Romanas

Por Paulo Heuser

Entra carnaval, sai carnaval, e não consigo me esquecer do Virgílio. Um sujeito que gosta menos do carnaval do que eu. E olhe que eu realmente não gosto do carnaval. Virgílio e eu temos algo em comum: gostamos apenas dos feriados, especialmente daqueles que caem nas terças-feiras. O vi num bar, faz alguns anos. Era um sábado de carnaval e o Corso do Caronte descia a ladeira ao som dos atabaques, matracas e outras coisas terminadas em gô. A folia corria solta. Menos na mesa do Virgílio. Aquela mesa era um oásis de paz em meio ao deserto da loucura. Virgílio bebericava vinho tinto enquanto devorava a Divina Comédia de Dante Alighieri.


Ah, como é difícil descrevê-la
Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga
que a sua simples lembrança me traz de volta o medo.

Mastigava a segunda estrofe do Inferno, quando o corso passou. Passou e parou, pois aquele corso catava os díspares, os antifoliões, na momesca missão de curá-los, intestiná-los na folia. Não sei o que atraiu a atenção do corso, se foi a mesa com apenas um ocupante, se foi o cálice de vinho tinto ou se foi o livro. Seja como for, Virgílio foi marcado como alvo da atenção dos curandeiros da apatia e da tristeza alheias.

Um casal desceu cambaleante, do primeiro carro. Seus corações batiam fortes, rápidos, pela influência do álcool e da dança. Dançavam e pulavam há horas, não se lembrando exatamente desde quando. Sentaram-se sorridentes à mesa do Virgílio, enquanto do corso vinham recomendações de pressa. Não podiam parar. A festa continuaria, seguindo até onde o calendário permitisse. Foi ela, uma loira vistosa emoldurada pelo decote vistoso, que derramava seios vistosos sobre a mesa, quem primeiro falou:

- O que é isso homem?

- Um livro – respondeu Virgílio, sem tirar os olhos dele.

- Não falo dele, falo dessa coisa que você está bebendo...

- Vinho – disse Virgílio, sem poder deixar de notar os seios esparramados sobre sua mesa.

- Ficou louco, cara? – gritou o homem fantasiado de Cérbero – No carnaval se bebe cerveja!

- Gosto do vinho. – disse Virgílio, enquanto imaginava se o vinho escorreria para o meio do decote dela, caso o derrubasse. Fingiu não ouvir os protestos dos foliões e continuou:

- Bebo o vinho que eu quero, não preciso prestar contas aos patrocinadores cervejeiros nem aos banqueiros, zoófilos ou não.

A essas alturas parte do corso desembarcara para ajudar o casal interceptador. Chegaram a tempo de ouvir Virgílio, já aos berros:

- Não preciso freqüentar os camarotes milionários daqueles que venderam a festa do povo aos poderosos. Não preciso seguir os caminhões elétricos da Ivonete Sangragalo ou do ministro. Não preciso apodrecer assistindo aos englobados desfiles das escolas de samba. Não preciso sequer sonhar com a volta das Saturnais Romanas. Entre 17 e 23 de dezembro, em homenagem a Saturno, elas permitiam ao povo a desobediência das leis e dos costumes. O que são sete dias contra os 365 da Saturnal Brasileira? Por detrás das máscaras escondem-se aqueles que vendem descaradamente a alegria do povo. Máscaras da morte!

- Venha, Beatriz – gritavam os outros -, enquanto retomavam o corso. Ela ficou – a loira de seios derramados. Seu parceiro se foi, com o corso. Foram descendo a ladeira, entoando marchas já não tão alegres. Algo mudara. Sobre a mesa, o livro folheado pelo vento mostrava outra estrofe:


Eu sou Beatriz, que pede que tu vás
Venho do céu e para o céu voltarei
Foi o amor que me trouxe e é ele quem me faz falar


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14.2.07

A Ordem das Mulheres

A Ordem Das Mulheres

Por Paulo Heuser

Às mulheres coube o papel de mártir, na História. Diz-se dos prostitutos que exercem a profissão por prazer, apesar da remuneração. Já delas, nenhuma virtude é enaltecida, afora a do próprio ato. São messalinas, megeras, devassas. Nada a dizer a respeito de quem as remunera. Quem tem o poder do capital sempre é puro. Na corrupção há apenas o corrompido. O corruptor aparece como uma espécie de vítima do sistema. Assim sempre foi com as mulheres. Hereges, como Joana D’Arc. Fogueira para aquelas que se sobressaíssem em alguma ciência. Bruxas, com certeza. Catarinas, Anas e Jane experimentaram a ira do Rei Henrique VIII. Muito antes disso, o apedrejamento das infiéis, ou assim consideradas, era a norma.

A elas cabe a reprodução, ativamente, apesar de serem consideradas passivas durante o ato. É delas que emerge o rebento, rebentando tudo pelo caminho, enquanto o exausto guerreiro distribui charutos ou bombons aos amigos do bar. Orgulhoso pelo feito. Às meninas as bonecas e as rendas. Numa vã tentativa de afastá-las do mercado de trabalho deles. São emotivas demais, dizem os concorrentes, quando elas agem, em verdade, com a razão. Chamadas de barbeiras no trânsito, quando não ultrapassam pela direita, nem o sinal. As seguradoras lhes dão bônus, pela menor periculosidade.

Quando chegam ao poder constituído, através do sufrágio, antes lhes negado, têm de suportar achaques dos colegas machistas, que lhes atribuem o papel de musas. Serão bibelôs parlamentares. Quando pilotam um avião comercial vêm as piadas e o espanto. Como ela aprendeu tal arte masculina? O pai a introduziu nas artes mecânicas, com certeza. Subverteu a ordem natural das coisas e lhe deu aeromodelos de presente, na infância.

Deixaram de assumir cargos de chefia nas empresas. Imagine só se engravidarem. Ficarão afastadas por muito tempo. E se o filho ou a filha tiverem febre no dia da reunião de diretoria? Nada como um homem para esses cargos. Estarão sempre disponíveis, mesmo quando os filhos estiverem doentes.

Freiras não rezam missas. Só podem rezar para si mesmas. Apenas os padres têm o poder de espalhar a palavra divina. Mesmo nas novas igrejas protestantes, nada se observa de progresso. Cabe às mulheres apenas o papel de pecadora. Redimida ou não, sempre a pecadora. Na hora de retirar o demo de dentro de alguém, este alguém sempre será uma mulher. Homens não incorporam o Inominável. Apenas as mulheres, fracas de espírito, na opinião dos homens, fracos de autoconfiança.

Os clubes ingleses, nos quais os homens fumavam charutos e liam o jornal, não admitiam mulheres. Assim é a maior parte das agremiações masculinas, leões, rotarianos, bisões, confrades e maçons. Dá para imaginar o poder que as mulheres perdem, sozinhas, contra essas confrarias? Um bando de barbados conspirando contra apenas uma mulher? Escoteiros podiam entrar no mato, aventurar-se. Meninas deveriam vender doces e acompanhar velhinhas. E assim a coisa segue, sem grandes mudanças.

Mulheres: aliem-se e conspirem. Reúnam-se em confrarias secretas, de bruxas, que seja. Exerçam seu poder. Recusem-se a tirar fotos ao lado dos velhos barrigudos da Câmara. Demitam homens que não cuidam dos filhos com febre. Façam loucas acrobacias com o seu avião de passageiros quando lhes contarem piadas sobre a comandante.

Sejam Damas de Ferro na Câmara, Joanas D’Arc nas reuniões da empresa e Madres Terezas de Calcutá consigo mesmas!

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13.2.07

A Revolta dos Otários

A Revolta dos Otários

Por Paulo Heuser

Uma das vantagens de envelhecer é poder mergulhar num balaião de DVDs de nove e noventa e achar algo interessante. Como um show de Glen Campbell em Londres. Sei, vamos devagar. Quem diabos será Glen Campbell? É um sujeito que nasceu em 1936 e ainda não morreu. Ainda não foi, portanto. Um americano que se imortalizou cantando música americana. Entre poucas coisas, de gosto meio duvidoso, interpretou muitas músicas fantásticas, compostas por Jimmy Webb, gênio que escreveu coisas como Wichita Lineman e By The Time I Got To Phoenix. O disco é uma salada impressionante. Há até uma versão para guitarra e orquestra da abertura Guilherme Tell, de Rossini. Campbell esteve no seu auge nas décadas de 1960 e 1970, apesar de cantar até hoje. Wichita Lineman esteve no topo da parada de sucessos durante 15 semanas seguidas. Chegou a ser a terceira, num mercado muito concorrido. Músicas gravadas no tempo em que George W. entrava em Yale, empurrado pelo George H. W., devido às notas medíocres no seu histórico escolar. Naquele tempo George W. explodia apenas buscapés, nas festas da fraternidade Delta Kappa Epsilon.
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Ao colocar o DVD para tocar, fiquei com saudades de um tempo em que era possível se sair à rua, inclusive à noite. Do tempo em que ainda não éramos divididos em otários e os outros. Não tanto, pelo menos. Éramos otários light. Os outros são aqueles que estão em presídios, ou deveriam estar e não estão, por serem inimputáveis, foragidos, nunca identificados ou estranhamente anistiados. Hoje o Joãozinho descobre que a Vó Joana foi a Jô Metralha, em outros tempos, quando assaltava bancos em nome da democracia. Democraticamente, foi anistiada, quando trocou a metralhadora pelas urnas. Os outros mais outros comandam os outros menos outros. Do presídio ou fora dele. Os otários pagam a conta. Com o bolso e a vida. A célebre frase ganhou nova versão: “A bolsa e a vida!”. Ou, apenas a última.

Os conceitos de fora e dentro se confundem. As expressões: “Estar atrás das grades” e “Ver o sol nascer quadrado” ganharam novo significado: “estar em casa”. Pois a casa está gradeada, murada e eletrificada. Ainda voltarão os fossos com crocodilos, proibidos pelo Ibama. Fauna exótica não pode. Jacaré também não, é protegido. Pinte o guarda de verde e jogue no fosso. Dá no mesmo. Livres estão os outros, que podem circular livremente, temendo apenas os seus iguais, mais iguais, no caso. Os outros, quando chegam ao presídio, estão de passagem, apenas de passagem, pelas progressões das penas. Ou estão esperando vagas. Não cabe mais ninguém lá dentro. Lembram uma bomba d’água que bombeia a água da inundação de volta para o rio que provoca a inundação. Há fila até para ser preso! Alguns outros já seguem uma rotina. Cometem atos criminosos pela manhã, são presos à tarde e soltos novamente à tardinha. Com sorte, podem até aprontar alguma à noite. Hora extra, pois se assalta à luz do dia. Falta regulamentar a profissão, estabelecendo piso criminal, armamento mínimo, ética criminal e assessoria jurídica. Bem, esta já está aí. O crime organizado já a garante. Aposentadoria é algo desnecessário. Os outros sem gravata não chegam à idade. Morrem antes, em serviço. Os outros engravatados fazem pé-de-meia bastante e suficiente. Garantem-se, aqui ou na Suíça.

De quando em quando, algum outro exagera, cometendo crime julgado hediondo até pelos outros. Não aquele hediondo institucional - suave e perdoável. É o hediondo que leva os outros a serem punidos pelos próprios outros. Naquela sociedade há ética forte. Farão a sua própria justiça, no seu tempo. Sem perdão. E assim a carroça anda, perdendo as melancias pelo caminho. Até quando, não sei. Talvez um dia ocorra a Revolta dos Otários.

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12.2.07

Réquiem Para o Verdinho

Réquiem Para o Verdinho

Por Paulo Heuser

Sexta-feira, 19 horas. O pessoal começa a aparecer para o happy hour na Calçada da Fama. O Verdinho veio junto. Nada mais justo, após um dia mormacento como este. Não se podia chamá-lo de lindo, apesar de ter um certo charme. Fazia sucesso entre os conhecidos que aprenderam a amá-lo. Também não se poderia chamá-lo de jovem, mas apresentava saúde de causar inveja àqueles. Com a cidade ficando vazia, pela peregrinação dos siris em direção à praia, os bares recebiam seus primeiros freqüentadores. O Verdinho chegou cedo, para garantir um bom lugar, coisa fundamental numa noite de sexta.

O destino é assim mesmo. Num segundo se está ali, alegre, cheio de sonhos e esperanças. No segundo seguinte, foi-se. Provavelmente o Verdinho nem chegou a perceber o que o atingiu. Deve ter ouvido o estalo. O prenúncio da queda de um jacarandá podre, como tantos outros que adornam nossas ruas. Após o estalo, o estrondo. E o silêncio. O Verdinho jazia inerte, sob um imenso galho do jacarandá. Outro lhe perfurou as entranhas, pelas costas. Numa típica atitude dele, não gemeu nem reclamou. Apenas aguardou o socorro, quase indiferente à multidão que acorreu ao local da tragédia. Não faltaram os urubus de ocasião, chegando com um estranho brilho nos olhos. Querem ver de perto a desgraça. Chegam excitados, sorridentes, com um estranho brilho no olhar. Chegou também o bêbado solidário. Palavras babadas de indignação contra a Prefeitura emolduravam o olhar turvo de quem já passara para uma hora menos feliz. A hora da ressaca perene. Os garçons e os convivas dos bares trouxeram solidariedade e palavras de conforto. Depois voltaram à hora feliz, pois era sexta-feira, a festa tinha de continuar. Um soldado fazia de tudo para ajudar. Reiterava os pedidos de socorro, pelo rádio, para que o Verdinho pudesse ser retirado dali.

A motosserra correu solta. O imenso galho do jacarandá foi transformado numa imensa pilha de lenha. Ao lado do toco da árvore que tombou inteira no mês passado. Qual será a próxima? Retirados os galhos, pode-se perceber logo que a situação do Verdinho não era boa. Estava coberto de hematomas e escoriações. Contudo, parecia manter a dignidade. Não gritou, não chorou, apenas ficou quieto, como que aguardando o inevitável. O destino lhe pregara aquela peça. Nada mais poderia fazer. Nem eu. Fazer o quê? Não me restou alternativa senão sentar à mesa, em algum lugar na fronteira imaginária entre o Liliput e o Jazz Café, e pedir um chope. A tempo de ver o guincho da seguradora virar a esquina da Padre Chagas, carregando o meu Verdinho nas costas.

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7.2.07

A Polonese

A Polonese

Por Paulo Heuser

Há coisas que a globalização não conseguiu varrer do nosso mapa. Uma delas é a polonese (polonaise), ou Aufzug, dança estilo quadrilha, grupal e cultural. Ainda é praticada como dança de abertura nas sociedades germânicas que mantém algum vínculo com as raízes. Uma polonese vale por 23 sessões no analista. Desopila-se tudo, menos o fígado, pois a polonese costuma ser acompanhada pela cerveja, apesar de não haver nenhuma exigência a esse respeito.

Neste mundo globalizado, onde tudo ocorre na individualidade, ou quase, uma festa onde dezenas, ou centenas, de pessoas dançam em conjunto chega a ser algo inimaginável. Uma dança que reserva grandes surpresas, pois o destino, a cada passo da marcha, é um mistério, bem como o par que eventualmente arrecadamos, no desenrolar dela. Sim, é uma marcha, extremamente musical, na qual os pares andam em fila, executando alegorias inventadas e executadas pelo puxador da polonese, espécie de mestre de cerimônias da dança. Da sabedoria e habilidade dele dependem os casais que participam da dança, para reencontrar seu par original, no final. Uma boa polonese não respeita o território do salão, apenas. Ela extrapola seus domínios, explorando locais estranhos, por vezes a cozinha do salão. Eventualmente, os toaletes. O lema é dançar, não importa com quem, apenas dançar. Diverte-se que dança, diverte-se quem apenas observa, pois não existem duas poloneses iguais. Cada uma é única, seja pelos dançarinos, seja pelo percurso, seja pelo puxador. Imagino que até o pessoal da banda se diverte. Pois, mesmo para eles, cada polonese é única.

A fila de casais se cruza. Nada ali é estático. E o casal puxador segue como um par de flautistas de Hamelin, puxando a marcha tocada pela banda, enfeitiçando os casais. Não há velhos, não há jovens, não há estranhos. Há apenas os casais que seguem a marcha, dançando como velhos conhecidos, mesmo que estranhos. A única hierarquia é a do casal puxador, que comanda a vida de todos os dançarinos, obedientes. Em algum momento, homens se separam das mulheres, seguindo em filas, conforme o gênero. Pois a polonese exige os pares. Pares que irão se separar durante o percurso, assumindo novos pares, até que o mestre consiga retorná-los ao seu par original. Daí vem o seu poder. O poder da manipulação do futuro de todos aqueles dançarinos.

Ninguém sai da polonese como entrou. Cada uma é uma rica experiência de vida. Única, já que não existem duas polonese iguais. É a socialização pela cumplicidade. Não há muitas oportunidades para dançá-la. Se uma passar na sua frente, agarre-a, firmemente. Não perca por nada a possibilidade de realizar 23 sessões de análise em 10 ou 15 minutos. Com pessoas que nunca viu antes, mas das quais se lembrará pelo resto da vida. Viva a globalização, para os outros! Viva a tradição, para mim!

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Na Defesa Das Instituições

Na Defesa das Instituições

Por Paulo Heuser

Hoje fui ao shopping, programa de fim de tarde para quem ficou na cidade. Na saída, uma surpresa: um pneu furado. A solução era a troca, coisa tão simples que nem pensei em chamar o socorro mecânico, apesar do calor senegalês e da sujeira brasileira. Trocar um pneu é simples, não é? Ainda me lembro do último que troquei. Foi lá em, vejamos, 1980? Deve ter sido, pois o carro era um reluzente Dodge Polara. Carros são carros, rodas são rodas, pneus são pneus, tudo igual, portanto. Ledo engano. Algum gênio da área de projetos da montadora teve a luminosa idéia de colocar o pneu sobressalente do lado de fora do carro, sob o porta-malas. Após tudo o que se lê, a respeito do furto desses pneus, ele ainda estaria lá? Uma rápida inspeção, sujando as calças, confirmou a presença dele. Menos mal, bastaria torcer para que ainda houvesse ar nele, após tanto tempo sem uso. Uma rápida consulta ao enigmático manual de instruções do veículo bastou para que eu percebesse que a procura do macaco e da chave de roda seria uma versão automobilística de Onde Está Wally?. Pensei até em comprar uma banana para atrair o macaco com sua chave. Estariam sobre o pneu? O manual trazia estranhos diagramas, em preto e branco, que indicavam que o macaco estaria no interior da parede do porta-malas. Como retirá-lo dali? Tateando na luz mortiça, encontrei coisas que pareciam presilhas. Girando-as, revelou-se o compartimento onde se escondia o símio, revelado à luz, pela primeira vez.

Encontrada a chave de roda, o resto foi fácil, ma non troppo! Bastou colocá-la num orifício que estava escondido por uma tampa, no fundo do porta-malas. E girar, girar, girar, até que... nada. O pneu continuava no mesmo lugar. Mais uma consulta ao manual, e mais sujeira no resto das calças e na camisa, para descobrir que havia uma trava manual, bastando se levantar o pneu e baixar a lingüeta, voltando a soltar o pneu, cuidando para... Simples, não? Dali surgiu o pneu mais sujo que alguém poderia imaginar. Trazia lembranças de idas à praia, das estradas de chão, das chuvas, do asfalto e de tudo o mais que passa sob um carro. Por que o gênio não projetou um compartimento fechado?

Pronto, já havia todos os recursos necessários para a execução do projeto. Bastava retirar a calota, que insistia em não sair, apesar do enorme esforço. Quando uma das filhas conseguiu parar de rir, me avisou que os parafusos da roda prendiam também a calota. Ponto para o engenheiro. Só que a filha continuou a rir, baixinho. Baixinho como o tal do macaco. Estava mais para um sagüi, ou macaco-anão. Encontrar o encaixe do carro para o acoplamento do símio foi outra novela. O manual mostrava setas apontando para locais imaginários. Acabei encontrando um lugar. Aí bastou girar, girar, ..., girar... Um macaco de precisão, com certeza, pois o carro somente subiu após 93 voltas. Para melhorar o processo, a chave de roda, que também é a alavanca do macaco, bate no chão, exigindo 186 meias-voltas. Depois, basta fazer aquilo que sempre se faz. E girar mais 186 meias-voltas, no sentido contrário, para baixar o carro. Enfrentei certa dificuldade para retornar o sagüi ao seu habitat. Ele se transformou num gorila, recusando-se a voltar ao lugar.

Com a aparência de um mineiro de carvão, em final de expediente duplo, deixei o shopping carregando o pneu ferido. Fui me socorrer do borracheiro que utilizei há 27 anos. Fechado. Como, fechado? Fazer o quê! Perguntando daqui e dali, cheguei à outra borracharia. A primeira impressão é péssima. Estava tudo limpo e não havia pilhas de pneus carecas por tudo. Um calendário mostrando a foto de um homem pelado piorou a impressão. Que diabos de borracharia seria aquela? Uma lavanderia de pneus?

O pior ainda estava por vir. Surgiu uma mulher limpa. A mulher do borracheiro, talvez. Ou seria a secretária? Quando ela agarrou o pneu, com uma luva, e o jogou dentro de um tanque cheio d’água, comecei a entender aquele misto de borracharia e lavanderia de pneus. Um homem pegaria o pneu, com as mãos nuas, e após tentar enchê-lo, sujando a si e a tudo ao redor, o colocaria no tanque, para verificar o local do vazamento de ar.

A mulher subverteu a ordem daquela centenária instituição. Uma borracharia limpa operada por uma borracheira, também limpa. Onde iremos parar? Mineiras de carvão em macacões brancos? Churrascarias de rodízio sem pingos na roupa? Alguém tem de defender as instituições!

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2.2.07

Mixoscopia Brasil 7

Mixoscopia Brasil 7

Por Paulo Heuser

A palavra mixoscopia é um helenismo – se origina no grego. Há um sinônimo mais conhecido da mixoscopia: o voyeurismo, um galicismo desta vez, pois se origina no francês. Entre grego e francês, fico com o primeiro, pois tem mais história. Mixoscopia é a “perversão” daqueles que se excitam ao observar atos sexuais, entre terceiros, ou a nudez alheia, sem que possuam qualquer poder de interferência nos atos. É o clássico ato de espiar pelo buraco da fechadura. Ou pelo binóculo, nas cidades.

A Mixoscopia pode ser um ato pago ou amador, quando praticado sem remuneração da terceira parte, com o sem o consentimento dela. A mixoscopia amadora era forma mais praticada na antiguidade. Além dos buracos das fechaduras, as janelas de banheiros e os espelhos também foram muito utilizados pelos mixoscopistas. A modernidade trouxe os pip shows, casas da mixoscopia paga, onde os praticantes da “perversão” remuneram atores para simular a prática de atos sexuais, escondidos atrás de vidros que dificultam a identificação do cliente. Surgiram como cabines individuais, evoluindo(?) para salas coletivas, quase estádios. A Internet mudou bastante a realidade do mundo mixoscopista. Os pip shows afloram da rede dos digitalmente incluídos, se é que isto é, realmente, algum tipo de inclusão. O episódio Cicarelli é um ótimo exemplo de mixoscopia digital amadora, onde o praticante utiliza o buraco da fechadura do Youtube. Bem, não é exatamente de graça, pois se paga, de forma muito sutil.

Exemplos clássicos da mixoscopia paga são os reality shows, que da realidade nada têm, como os Big Brother Brasil, mega-pip shows, pagos através do consumo dos produtos anunciados nos comerciais ou da compra de pacotes pay per view – pagos por demanda. O fato é que uma boa parcela dos espectadores paga para ver o show. Paga, deixando a tv sintonizada naquele canal.

Como aqueles pip ou reality shows são praticados mediante remuneração, dependem da qualidade dos atores. O amador está apoiado pela espontaneidade. O profissional depende de preparo, do roteiro, dos números do Ibope. Quando este índice cai, aumenta-se a ousadia, anunciando previamente pela imprensa: vai rolar amasso pesado. Mesmo no cinema, apesar da polpuda remuneração, observa-se melhor qualidade quando os diretores e protagonistas priorizam a arte. A receita da sobrevivência dos reality shows é a troca dos personagens. Ninguém quer saber dos mesmos. A cada nova temporada, novo plantel. Antes escolhiam um plantel eclético. Agora é a vez dos sarados.

Shows que chegaram para ficar são os Shows da Câmara, onde os personagens que perpetuam as piores ações são reconduzidos a cada nova rodada. Ao contrário dos reality shows, aqueles começam com os mesmos personagens da edição anterior. Começa agora o regiamente pago Mixoscopia Brasil 7, com velhos e astutos jogadores, que, através do canal de tv próprio, certamente saberão roubar a cena. Novamente.

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