31.3.09

511 - Bolacha Maria

Foto: Paulo Heuser
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Bolacha Maria

Por Paulo Heuser



Passar fome durante a abundância de alimento não é coisa tão moderna quanto se possa pensar. Não é apenas privilégio dos que querem manter as formas perfeitas. Tive a prova disso, há 30 e poucos anos, quando eu não necessitava lutar pelas formas. Era verão, e meus amigos e eu nos reuníamos todas as noites, junto ao Quiosque da Praça de Santa Cruz do Sul. Jogávamos conversa fora. A piscina do clube já não contentava mais, e não havia febre amarela. Queríamos sentir a brisa do mar e pisar na areia. Contudo, o caixa estava quase liso e não permitia nem uma temporada de praia espartana, mesmo nos tempos em que Esparta ainda não conquistara o Peloponeso. Não me lembro de quem foi a idéia, mas partimos, em quatro, para Tramandaí. O caixa falido não seria problema, pois alguém conhecia um hotel muito barato naquela praia. Não declino o nome do hotel, pois ele ainda existe. Pois bem, esse hotel tinha um anexo, digamos assim, extremamente simples. Tremendamente simples. Espantosamente simples. Havia quartos no sótão equipados com três camas e nada mais. O banheiro era coletivo, no térreo, e dotado de curiosas portas estilo saloon, de vai-e-vem, que permitiam a visualização das extremidades inferiores e superiores dos que tomavam banho. Era uma versão não-dissecada dessa feira de cadáveres que percorre os bons shoppings do ramo. Na parede de tábuas que separava a nossa suíte de cobertura da outra, ao lado, havia um nó tão grande na madeira que fora coberto com uma tampa de lata de café solúvel de marca. Boa marca.

Chegamos ao hotel e fomos encaminhados ao sótão do anexo. Como dois dos quatro eram gêmeos idênticos, reservamos para três, sendo que um dos dois entrava e saía cinco minutos após o outro, por questões econômicas. Eles dormiam em apenas um colchão de crinas. A gerente do anexo deve ter estranhado como aquele sujeito entrava e saía. Resolvido o onde ficar, fomos à praia e levamos aquela queimada dos tempos que só havia Eversun FPS 2. Entre dois e nada, nada é mais honesto e mais barato.

O problema da alimentação foi resolvido através do acesso fácil que os gêmeos tinham à liquidação de bolachas Maria quebradas que a fábrica promovia. Levamos uma mala cheia de bolachas Maria. Quilos de bolachas Maria. Metros cúbicos de bolachas Maria. Nossa alimentação passou a ser bolacha Maria e água da pena. Dava pena de se ver. Nos primeiros três dias, até que foi. O desespero começou no quarto. Foi bolacha Maria no café da manhã, no lanche, no almoço, noutro lanche, no jantar e na ceia. Engasgávamos, só de pensar. O quinto dia foi uma sexta-feira. Então, o suplício se redobrou, pois o pessoal que não comia bolacha Maria fazia churrasco. Voltamos ao sótão com a única e cruel certeza de que tínhamos uma mala cheia de bolachas Maria a nossa espera. Elas pareciam multiplicar-se espontaneamente. Centenas de bolachas Maria. Chegou o sábado. Após as bolachas Maria da manhã, seguimos para a praia. Os guarda-sóis, os óculos de sol, as raquetes de frescobol, os seios das mulheres, tudo tinha formato de bolacha Maria. Se o sábado foi torturante, o que dizer do domingo, dia internacional do churrasco de praia?

Na segunda-feira, desistimos. Comemos nossas bolachas Maria da manhã e fomos embora. Deixamos a suíte e o mar para trás, juntamos os trocados e pegamos ônibus de volta. Quando os gêmeos chegaram a casa, pegaram a mãe desprevenida, pois ela não os esperava tão cedo. Dona Maria não havia preparado jantar. Contudo, havia bolacha Maria. Muita bolacha Maria.

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19.3.09

510 - A bolha assassina


Foto: Wikipedia
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A bolha assassina

Por Paulo Heuser


Lembro-me de uma época em que o pessoal começou a fabricar iogurte em casa. Foi coisa de comadres. Uma dava um pequeno amontoado de bactérias para suas vizinhas. As criaturas vinham mergulhadas no leite, no interior de uma pequena xícara. Todos olhavam com incredulidade para aquela massa disforme. Os monstrinhos iam para o interior da geladeira e, voilà, no dia seguinte já haviam se multiplicado perceptivelmente. Iogurte de graça, azedo como nenhum outro, mas, definitivamente iogurte. Adicionavam-lhe açúcar e ele perdia um pouco daquele gosto esquisito de leite fermentado por bactérias.

Após dois ou três dias, a ex-bolinha, então bola, de bactérias já alimentava toda a família no café da manhã. Do netinho ao vovô, todos faziam cara feia e bebiam felizes o seu iogurte natureba. Passados dez dias, a bola de boliche bacteriana já ocupava um balde. O leite passava a ser comprado em quantidades cada vez maiores, pois a coisa bebia cada vez mais. O iogurte passava a integrar as nove refeições diárias da família – as três usuais e as seis novas, criadas para dar conta das quantidades crescentes de iogurte natural. Ninguém ousava pensar em jogar aquilo fora. Afinal, eram centenas de seres vivos!

Após um mês, a família comprava uma vaca e uma geladeira industrial nova. As crianças tentavam vender iogurte para os colegas do colégio, a mãe abria uma lojinha de laticínios na garagem e o resto da família levava baldes de iogurte para doação às instituições de caridade. As portas e janelas iam se fechando, na medida em que passavam, pois ninguém mais podia ouvir falar em iogurte natural, nem queria correr o risco de ser brindado com uma daquelas bolinhas inocentes de bactérias, que logo se transformavam em algo de dimensões planetárias. A lembrança do filme A Bolha Assassina (1958) fazia-se presente. Ninguém falava sobre o assunto, mas a história sempre terminava da mesma forma. Após pesadelos com geladeiras que se abriam, durante a noite, despejando uma enorme massa de bactérias famélicas, alguém da família radicalizava. Voltava, sabe-se lá de onde, ao nascer do dia, empunhando uma pá suja de terra. No café da manhã, silêncio, torradas e café preto. Ninguém ousava tocar no assunto. Nem perguntavam sobre o paradeiro da vaca.

Pois a história se repetiu. Alguém deu um punhadinho de diretores para um senador da República. Ele apressou-se em passar as criaturas adiante. Era ótimo terem seus próprios diretores, alimentados pelo leitinho do povo. Esse punhadinho de diretores logo se transformou numa turba, que se transformou numa legião. Das gavetas e armários do Senado passaram a transbordar diretores. E não há como eliminá-los, pois são centenas de seres vivos!

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17.3.09

509 - O enxofre do Rio Aqueronte

Ilustração: Gustave Doré
para a Divina Comédia
O enxofre do Rio Aqueronte

Por Paulo Heuser


Que Ele me perdoe, pois usei Seu nome em vão. Usei várias vezes, não o nego. Pedro negou a Jesus três vezes. Eu usei diversas vezes o nome Dele em vão. Aconteceu por acaso, sem premeditação. Eu havia ficado sem armas na minha interminável e solitária cruzada contra os call centers. Os famigerados vendedores de qualquer coisa já estavam levando vantagem, pois eu havia exaurido meu acervo de desculpas inesperadas para a não-adesão a seja lá o que fosse. Eu precisava desesperadamente de novos argumentos. Uma mudança para a Nova Zelândia já não era argumento, pois a globalização levou os provedores a qualquer lugar.

Aconteceu, simplesmente. Eu estava sozinho em casa. Bem, não exatamente sozinho. Havia o cachorro. A noite já avançava sobre o último resquício do crepúsculo, e Vênus já triunfava sobre o Sol. Acendi a lâmpada do abajur para continuar minha despretensiosa leitura das novidades do Almanaque Iza. Quem lê almanaque Iza não liga a luz, a acende. O tique-taque do relógio de quartzo abafava o ronco suave do cachorro, enquanto a brisa morna do fim de tarde banhava o ambiente.

A atmosfera de tranqüilidade tremada foi subitamente agitada pela campainha digital do telefone. Quebrou-se a redoma de paz. Atendi, a contragosto. O cachorro deixou de roncar, e o tique-taque do relógio se desvaneceu. Era a moça d’água. Não a sereia. Era a moça que queria me demover de cancelar o contrato de provimento de água purificada. Supus tratar-se de moça, pela voz e pela profissão. Eles não põem velhas em call center, pois elas se apiedam das vítimas.
O “não” não era resposta que a fizesse esmorecer. Havia de ter uma razão para não querer. Minhas razões não eram suficientes e bastantes para fazê-la desistir. Eu já temia ter de comprar ar, tal era a insistência dela. Ela me explicava que, depois do oxigênio, a água seria a coisa mais importante para a manutenção da vida. Eu me sentia sufocado e desidratado. Foi então que aconteceu. Foi algo espontâneo, nada planejado. Gritei:

- Aleluiah! – com agá e tudo.

Silêncio, do outro lado da linha. Silêncio é sinônimo de despreparo, quando o assunto é call center. Significa que a operadora não estava preparada para lidar com essa informação. Aproveitei a momentânea vantagem e emendei:

- Louvado seja!

- (?)

- Afaste de mim esse cálice! – urrei com voz de profeta de Hollywood.

- Bem, senhor, nós oferecemos um sistema de purificação que dispensa cálices, e a água poderá ser servida onde quiser. – ela aparentemente se refez do susto.

- Enxofre! Essa água contém o enxofre do Rio Aqueronte, coisa do Indizível Inominável! – terminei quase em sussurro, como que fazendo secreta denúncia.

Ela não se deixou abalar, dessa vez:

- Não é enxofre, senhor, é flúor...

- Flúor, enxofre, são todos parentes próximos! Halogênios, calcogênios, são todos muito próximos na tabela periódica dos elementos do Senhor!

A partir de então se travou um diálogo de loucos e insanos. A coitada tentava encontrar argumentos, no seu manual, e eu fazia descer o enxofre do Inferno, através da pregação de um suposto Pastor Aramar, nome emprestado do simpático motorista do táxi que eu tomara pela manhã. Entre aleluias e louvações, triunfei. Inferi que, contra argumentos religiosos, futebolísticos e políticos, ninguém tem argumentos. São questões de fé.

A paz retornou, o cachorro voltou a roncar, o tique-taque do relógio ficou novamente audível e a tranqüilidade tremada encheu o ambiente, que se esvaziou instantaneamente, ao novo soar da campainha do telefone. Novamente atendi, a renovado contragosto. Era o Pastor Aramar.

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9.3.09

508 - Que gosto tem uma lágrima?


Foto: go4celebrity.com
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Que gosto tem uma lágrima?

Por Paulo Heuser


Eu assistia novamente ao filme “Encontro Marcado” quando vi, lá pelo final, uma lágrima escorrendo de um daqueles olhos maravilhosos da Claire Forlani. Não sei por que, me veio a pergunta: que gosto tem uma lágrima? Salgada, responderão. Certo, uma lágrima contém, entre dezenas de outras coisas, sódio, cloro e potássio. Assim, tem gosto salgado. Porém, aquela lágrima da Claire Forlani pranteava a morte do pai que seria levado pela Morte em pessoa. Não era apenas uma lágrima de antecipada perda, pois havia outros sentimentos contidos naquela gota que lhe escorria face abaixo. Como descrever o gosto de tal lágrima? Salgado, dirão novamente, pois se trata de lágrima de atriz. Certo novamente. Contudo, se vestirmos momentaneamente o manto da refinada melosidade da história, sentiremos outros gostos. Quais? Bem, depende do espectador.

Quem nunca chorou nada sentirá, pois não conhece o gosto da lágrima. Quem não pára de chorar, também, pois se habituou tanto ao gosto que notará apenas a ausência dele. O escanção – designação portuguesa para sommelier – dirá que a lágrima tem aroma de água do Mar de Sargaços e gosto partindo de toques de caju selvagem e nuances de fluidos sementais, terminando com toques sutis de lubrificante de relógio atômico.

Do gosto da lágrima da perda de alguém, só sabe quem perdeu alguém. Os outros imaginarão. E não há como imaginar o gosto da lágrima da perda. Só não chora mais, aquele que se foi. Chora quem fica. A Claire Forlani chorava a ida de quem ainda não havia ido.

Lágrima de birra tem gosto de desafio. Algo como: - se você não me der o chocolate no supermercado, chorarei tanto que os outros pensarão que você maltrata os filhos. Lágrimas de criança vêm fáceis. Há problema quando não se forem com a mesma facilidade. O que dizer do gosto das lágrimas das crianças injuriadas? Não há o que dizer. Há o que fazer.

Que gosto tem a lágrima do crocodilo? Esta é fácil. Terá gosto da presa que estiver a devorar. E a lágrima provocada pelo corte da cebola, que gosto tem? Ora, de cebola, é claro.

Anthony Hopkins já subia pela escadinha que o levaria à morte, quando retornei ao jornal. Lendo que Fernando Collor de Mello abocanhou o galinheiro da Infra-estrutura do Senado, e que essa comissão definirá a legislação que regulará a exploração de petróleo, respondo à pergunta sobre o gosto das lágrimas da opositora(?) Ideli Salvatti: elas têm gosto de pré-sal.

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5.3.09

507 - O Terceiro Reinado

Foto: Wikipedia
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O Terceiro Reinado

Por Paulo Heuser


Contam que esta ocorreu na Praça da Alfândega. Em meio àqueles grupos que lá se reúnem, para trocarem conversa fiada, havia verdadeira indignação com o desempenho dos parlamentares do País. A gota d’água foi a eleição do ex-presidente Collor para a presidência da Comissão de Infra-estrutura do Senado. Escaparam da Rainha das ONGs para caírem nas mãos do Caçador de Marajás. Ao cair da noite, no Bar do Jacó, o grupo se reuniu para a hora feliz, e o assunto foi o mesmo. Lá pelas tantas, o Tonhão traduziu o pensamento geral:

- A culpa é do Congresso!

O assentimento foi geral. Até o Perninha rompeu o seu folclórico silêncio e anuiu:

- É verdade!

Tonhão foi além e concluiu:

- A culpa não é somente do Congresso e sim do sistema de governo. Esta república presidencialista dá nisso!

Estabeleceu-se acalorada discussão a respeito da melhor forma de governo. Os parlamentaristas foram arrasados pelo argumento da similaridade entre congresso e parlamento. No fundo, seria a mesma coisa.

- Fazer o quê? – Tonhão soltou um imenso suspiro enquanto fazia sinal ao Jacó para que trouxesse outra cerveja.

- Monarquia! – exclamou Mortiço.

A reação dos demais não foi instantânea, talvez pela surpresa. Ficaram alguns instantes a remoer aquela palavra.

- Isso é coisa de país de velho! – exclamou Tonhão. E sempre tem o parlamento que...

- Monarquia totalitarista! – interrompeu Mortiço.

Novo silêncio. Após digerirem a idéia, e o picadinho trazido pelo Jacó, a maioria começou a vê-la com simpatia, mas não tiveram coragem para concordar.

- Com rei que manda em tudo, pode tudo, quando quer e como quer? – perguntou Tonhão, enquanto polia o caroço de uma azeitona magra.

- É, com rei déspota e totalitarista. Nada pode ser pior que isso que está posto. Vá lá, pode ter um Conselho Real, dos mais chegados, para darem uns pitacos.

- Onde encontraríamos alguém tão brilhante, íntegro e nobre a ponto de se tornar rei?

- Basta um idiota que possa ser mandado pelo Conselho Real. – disse Mortiço.

- O Nestor! – sugeriu Perninha – Ele se referia ao mendigo de plantão da Praça da Alfândega, que caiu nessa vida após ter investido todas as economias da vida em linhas telefônicas para aluguel. Com a queda do monopólio estatal, Nestor viu-se na miséria e ficou desmiolado. Suas frases mais complexas se resumiam a “uh” e “hum”.

Quando Jacó expulsou todos, às 21 horas, já havia ocorrido o Baile do Bar do Jacó – versão inversa do Baile da Ilha Fiscal de 9 de novembro de 1889. Em vez dos 800 kg de camarão, consumiram 800 g de mortadela; em vez das 1200 latas de aspargos, consumiram dois vidros de pepinos; em vez dos 10000 litros de cerveja, bem, consumiram 10000 litros de cerveja; em vez de marcarem o fim do Segundo Reinado, o de D. Pedro II, marcaram o início do Terceiro Reinado, o de Nestor I, o Idiota.

Nestor I, o Idiota, adorou a idéia. Passou de mendigo a rei, e as reuniões com o Conselho Real passaram e ocorrer no Bar do Jacó, rebatizado Palácio Real. A notícia espalhou-se, de bar em bar, e logo o Reino da Alfândega incorporou o Mercado Público e o resto do Centro. A partir daí a coisa espalhou-se como rastilho de pólvora e tomou Brasília. O Rio de Janeiro ansiava pela volta da realeza. Petrópolis transformou-se numa espécie de San Marino sul-americana. Afinal, a antiga família real tinha lá seus direitos.

O reino ia de vento em popa, depois do fechamento do Congresso. Nestor I, o Idiota, cumpria bem seu papel e apenas dizia “uh” e “hum”, enquanto o Conselho Real governava, de fato. Entre rodadas de cerveja e picadinho de mortadela, pepinoe azeitona magra, exaravam as ordens que guiavam o reino.

O cargo acabou subindo à cabeça de Nestor I, o Idiota. Ele quis uma coroa e uma liteira. Perninha tirou de letra e conseguiu o material emprestado de uma escola de samba. Foi muito isopor e remendo. Nestor I, o Idiota, caiu do carro alegórico e repetiu D. Pedro II, quando este tropeçou no Baile da Ilha Fiscal: “O monarca escorregou, mas a monarquia não caiu.”. Ela não caiu, mas mudou. Nestor I, o Idiota, bateu a cabeça, quando caiu, e deixou de ser tão idiota. A pancada fê-lo voltar à consciência. Nestor I, o Idiota, falou algo além de “uh” e “hum”.

A reunião do recém-dissolvido Conselho Real pereceu um velório. Ninguém abria a boca. O picadinho de mortadela e pepino não teve o mesmo sabor. Enquanto Nestor I, o ex-Idiota, discursava sobre um palanque, lá pelos lados do Mercado, Mortiço se lamentou:

- Putz! Vá lá, que proclamasse a república e abdicasse, mas reabrir o congresso e chamar eleições, ah, isso passou dos limites!

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3.3.09

506 - De gases e pílulas


Foto: Wikipedia
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De gases e pílulas

Por Paulo Heuser


Vim a Porto Alegre, em março de 1973, para estudar no Colégio Farroupilha. Estava concluindo o Científico – designação de então do atual Ensino Médio. Após muitos anos de Colégio Mauá, de Santa Cruz do Sul, senti-me como um peixe fora d’água. Tudo era novo e estranho. Contudo, contrariando minhas primeiras expectativas, fiz algumas amizades logo nos primeiros dias de aula. Como era o último ano na escola de todos naquela turma, os mais marotos pensavam em traquinagens de despedida. A guerra de bexigas d’água já era tradição e dispensava grandes planejamentos. Havia de ser algo diferente e de impacto. O Nelson pensou em produzir gás sulfídrico (H2S), conhecido popularmente como “peido engarrafado”. O enxofre garante um terrível fedor de ovo podre. Ocorre que a turma encontrou dificuldade para adquirir as substâncias que levariam à produção do gás. Era tempo da Revolução, e qualquer coisa mais complexa que o ar era considerado suspeito.

Aluno novo, desejoso de me enturmar, contei-lhes sobre um evento ocorrido em 1972, no Colégio Mauá. Um dos alunos internos havia trazido um medicamento fitoterápico denominado Bálsamo Allemão – com dois eles, para ser bem alemão. Tal substância era produzida a partir da planta Kalanchoe tubiflora, que apresentava características de odor e sabor extremamente peculiares. Como todo medicamento fitoterápico que se prezava, tinha gosto pavorosamente amargo e cheiro insuportável. Remédio bom tem de ser amargo e fedorento. E o Bálsamo Allemão era um ótimo remédio, o que indicava que ele era muito amargo e fedia muito. Quem era do Interior, sabia. Antes que eu me esqueça, aquilo curava qualquer pereba. Um aluno da turma espalhou o conteúdo do pequeno frasco entre as tábuas do piso. Bem que tentaram dar aula lá dentro. Foi impossível.

Meus novos colegas acharam a história muito interessante e saíram a campo. Encontraram o Bálsamo Allemão em uma farmácia lá pelo Caminho do Meio. Quando o balconista viu aquela trupe com cara de cidade grande pedir o Bálsamo logo disse:

- Vocês vão aprontar alguma!

- É para o meu avô – disse Marco, com cara de anjo do Apocalipse.

O Biba encarregou-se de espalhar a coisa entre as frestas dos tacos do piso. Repetiu-se na Capital o que ocorrera no Interior. A sala de aula ficou imprestável. O professor Rasia ainda tentou dar aula, mas também sucumbiu à pestilência fitoterápica. O professor de Física foi derrotado pela Botânica. A propósito: crianças, não copiem! Fede muito!

Li a seção de Ciência e Saúde da Folha de São Paulo de hoje. Novamente a ciência me surpreendeu com uma descoberta fantástica: o gás sulfídrico apresenta resultados semelhantes ao do Viagra, quando administrado aos portadores de disfunção erétil. O que mais me espanta, mesmo, é que alguém testou um negócio desses. Masoquistas radicais: essa é a sua deixa. A operacionalização da coisa deve ser curiosíssima. Em vez de tomar pílulas azuis o sujeito fica a inalar peido engarrafado.

Será que os alunos ralarão pílulas azuis para esfregá-las entre as tábuas do piso?

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