30.4.06

IN(EX)CLUSÃO DIGITAL E TEORIA DA CONSPIRAÇÃO

IN(EX)CLUSÃO DIGITAL E TEORIA DA CONSPIRAÇÃO

Ao tomar o elevador hoje pela manhã deparei-me com um aviso colado na parede do mesmo. Iniciava com um "Atenção !!! Muito Importante". Continha um aviso de que quadrilhas de assaltantes, com excelente suporte logístico como veremos a seguir, estariam utilizando etiquetas autocolantes com símbolos para sinalizar, aos seus comparsas, da dificuldade ou facilidade de assaltar uma residência. Setas viradas para cima, para a direita e para baixo significariam, respectivamente, fácil de assaltar pela manhã, pela tarde ou pela noite. Um símbolo numérico indicaria o mês em que a casa estaria desocupada (7 e 8 no exemplo). Uma reta com dois semicírculos com concavidade para cima indicaria "crianças só de tarde". Já um retângulo, com uma haste num dos lados, indicaria "idoso sozinho todo o dia". O texto seria divulgado por uma Polícia de Segurança Pública. Como terminava com o clássico "por favor divulgue....", se referia a meses de férias do verão europeu (julho e agosto) e a tal de Polícia de Segurança Pública ser assim designada em Portugal e suas colônias mais recentes, desconfiei logo tratar-se de mais um SPAM do tipo Teoria da Conspiração. Haja organização! Uma equipe vai na frente para identificar e outra assalta. Só não entendi o porquê de a primeira equipe não assaltar de uma vez, já que está lá mesmo e a defesa está fragilizada.. Será um novo tipo de organização criminosa com delegação de atribuições regulada por entidades sindicais? Também não entendi por que o morador da casa deixaria um símbolo desses colado em sua casa.
É verdade que até o advento da Internet e a difusão do seu uso, estávamos reduzidos a cidadãos de 2a classe, completamente ignorantes. Não sabíamos dos riscos de acordar numa banheira cheia de gelo num hotel, em Buenos Aires, sem os rins, com um aviso desenhado na parede para chamar uma ambulância. Tantos e-mails circularam por aqui que as agências de turismo ficaram tentadas a lançar pacotes com seguro de rins e serviços de hemodiálise inclusos. Já os hotéis portenhos estavam preparando novos regulamentos aos hóspedes com a observação: - 'Es proibido sacar los riñones de los brasileños em la bañera!' . Passamos a receber toda sorte de avisos cataclísmicos, como o soar das trombetas do Apocalispse, dignos da série Arquivo X ou do imperdível Teoria da Conspiração de Richard Donner (não é o Hans não). Leite vencido reenvasado, apesar do alto custo da embalagem, criancinhas seqüestradas em shopping centers (para retirar os rins novamente), refrigerantes que causam males terríveis pela ingestão de fenofinol ameido e voliteral, substâncias tão terríveis que sequer foram inventadas, somente detectadas pela detetive Scully. Realmente não entendo como sobrevivemos sem essas informações tão importantes!
Por tudo isto eu creio cada vez mais que inclusão digital não é colocar computadores com acesso a Internet na frente das pessoas. A inclusão digital passa pelo ENSINO que permita às pessoas, de todas as classes econômicas e sociais, o discernimento do que é informação útil na rede e o que é lixo digital. Até lá seremos in(ex)cluídos digitais espalhando boatos, por vezes ridículos.
Mas, espere, e se for verdade? Se os ladrões confundirem o número do meu prédio com os meses em que estaremos em férias? Se aquele sinal de trânsito com uma seta não for realmente o de sentido obrigatório e sim o de fácil de assaltar, a rua toda, pela tarde? Por via das dúvidas tomarei cuidado!

Paulo Roberto Heuser

28.4.06

Entropia, Educação e Política

Entropia, Educação e Política

Os alunos de física deparam-se em algum momento de suas vidas com o conceito de entropia, algo aparentemente difícil de definir. Esquecidos os aspectos formais matemáticos, e com o perdão de Boltzmann, pode-se defini-la como a medida da desordem de um sistema fechado. Diz-se também que a entropia só pode aumentar. O que raios quer dizer isto? Será a quantidade de coisas jogadas a esmo no quarto dos filhos? É o que para muitos impede a viagem no tempo. Pois bem, testemunhei um exemplo prático dado inadvertidamente por um professor de Química Para Físicos numa conceituada universidade pública. O esforçado mestre tentava explicar aos pupilos, ou membros do corpo discente (como aparece no currículo de um candidato político), a dificuldade em se observar aspectos do mundo micro, em contraste com a facilidade em se observar o mundo macro. Num rompante construtivista chamou uma menina sentada na primeira fila e cochichou algo no seu ouvido. Esta correu ao quadro negro (sim, ainda existem) e prontamente desenhou uma figura logo reconhecida por todos (creia, eram alunos de física mesmo) como um elefante. Marotamente o mestre chama um rapazinho sentado na 1a. fila, equipado com boné dos NYK e tênis de skatista, e novamente cochicha algo. O rapaz, de olhos arregalados, dá um passo atrás no verdadeiro estilo Vade Retro e responde de pronto: "Não sei desenhar uma!". Segue-se o seguinte diálogo:
M (ainda calmo): - "Desenhe como tu imaginas."
A (visivelmente constrangido): - "Não posso, nunca vi uma!"
M (algo irritado): - "Desenhe o que puderes!"
Com um profundo e desolado suspiro o aluno arrastou-se até o quadro negro, pegou um bastão de giz (sim, aquele que solta o pozinho) e iniciou traços que, para o espanto geral (mesmo dos físicos), começaram a tomar as formas de um corpo feminino nu. Quando ganhou pêlos pubianos e seios, até os alunos do fundo da sala (lembro-me especialmente de um que se vestia todo de preto, camiseta do Iron Maiden, óculos escuros) acordaram. O mestre ficou reduzido a um simulacro da mulher de Lot enquanto criava coragem para perguntar o que afinal era aquilo? Após um intervalo que pareceu infinito, conseguiu balbuciar: - "Mas afinal, o que é isso? O que foi que eu pedi para desenhares?". Ao que o agora indignado aluno respondeu: - "Uma P..., conforme pedido!". O mestre desolado grita: - "era uma PULGA, uma PULGA!". A demonstração efetivamente provada da dificuldade de observar coisas do universo micro comprovou também que a entropia de um sistema só pode aumentar. Com certeza a desordem no final daquela aula era infinitamente maior do qua a do início da aula. O que tem isto a ver com política? Observem o cenário político nacional. Ora, a desordem no Congresso Nacional, assim como a do quarto dos nossos filhos, só aumenta. E prova que, contra tudo o que se acreditava até agora, a combinação de um professor de química com alunos da física pode se transformar em algo divertido.

Paulo Roberto Heuser

27.4.06

Tirando o Boi do Brete

Tirando o Boi do Brete

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São 11h50, num típico escritório no Centro, num típico dia útil da semana. Uma certa inquietude toma conta de muitos, que passam a conferir o relógio a cada minuto. Quase hora de sair correndo para buscar filhos no colégio? Não, é quase hora de enfrentar o martírio diário do almoço no bufê. Quem há muito o faz, sabe bem o suplício que pode ser um almoço quando se espera em filas para entrar, filas para sentar, filas para se servir e filas para pagar. Claro, esqueci da fila para pegar o elevador. O evento social criado pela fila até que pode ser positivo. Quanta gente não se conheceu nas filas, casou, e hoje curte uma fila acompanhada? Os mais solitários, ou mais sensatos, podem escapar das filas utilizado uma das 5 técnicas básicas: 1) vá muito cedo; 2) vá muito tarde; 3) vá a um lugar que serve comida muito ruim; 4) vá a um lugar muito caro; 5) fuja do Centro, se puder. A combinação da terceira com a quarta é a menos recomendável. Eu já estava há muito convencido de que o melhor é ir cedo mesmo. A comida está fresca, toda arrumada e a sopa de cappelletti ainda não virou mingau. Minha sobrinha, no entanto, acrescentou um argumento irrefutável, ao afirmar: - "Não gosto de comida cuspida". As pessoas falam enquanto se servem. Um grande bufê, na verdade, é uma sofisticada linha de produção, onde entram os mais variados insumos, água, gás, verduras, frutas, legumes, carnes, guardanapos e um, que pode passar despercebido, que é você! Traçando um paralelo tosco com a pecuária de corte, entra boi magro de uma lado, recebe trato e sai boi gordo do outro lado. No meio está o brete. Como na pecuária, o objetivo é fazer com que você engorde o máximo possível, no menor tempo e com menor custo. Há uma ciência denominada Teoria das Filas, que estuda o fluxo das pessoas nos bufês (além de umas outras coisas menos importantes, como os tráfegos telefônico e aéreo). Existe muita controvérsia quanto ao inventor da teoria das filas. Todo mundo sabe quem inventou as filas. Serviços públicos e bufês certamente colaboraram muito. Criar fila é barbada, terminar com ela, sem utilizar métodos heterodoxos (bombas, caminhões desgovernados, etc), é bem mais complicado. O que perturba o andamento do processo de produção (você entrando, comendo, pagando e saindo), é a presença de novatos, não iniciados nos bufês. São pessoas, ainda não condicionadas pavlovianamente, trancando a fila pela total falta de objetividade. Acham que devem provar todos os 97 pratos quentes, 73 frios e as 18 sobremesas. Pedem ao sujeito dos grelhados um pedaço menos ou mais passado. Insistem em tentar ler as plaquinhas, com aquelas letras miúdas.. E o pior de tudo, após chegarem na última cuba, resolvem voltar nove cubas para pegar a azeitoninha. Isto é linha de produção gente, é coisa séria, tudo calculado! Tenha extremo cuidado com bufês instalados em locais que podem abrigar congressos, cursos ou outros eventos. São 11h45, você chegou cedo, serviu apenas uma saladinha, já que não vai enfrentar fila antes das 12h03. Pode servir o prato principal depois. Repentinamente, duas centenas de participantes de um congresso de lutadores de sumô, 93% deles não iniciados em bufês, irrompem porta adentro e criam uma fila instantânea, de dar inveja à marcação de consultas na saúde pública. Aí o seu prato principal sairá lá pelas 15 horas, se algo restar. Corra e compense na sobremesa, já que os primeiros da trupe só chegarão lá em quatro minutos. Cuidado com as pernas das cadeiras viradas, para marcar território, principalmente se o seu prato já estiver servido.

Domingo, 13 horas, a família implorando em coro para almoçar naquele bufê concorrido, você se fazendo de morto. E o Dia das Mães está aí. Pode comprar algum livro com um título que pareça "Elementos de Análise Estatística Estocástica Markoviana". Será bem útil para a mamãe ler enquanto espera.

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Paulo Roberto Heuser

Sobre Batatas, RU e Revolução

Sobre Batatas, RU e Revolução

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Estava lendo um livro muito interessante, curiosamente intitulado "Sobre Volta, Batatas e Fótons", coletânea de textos sobre a pilha de Volta (pilha elétrica), que contém uma descrição de uma pilha elétrica feita com batatas. A versatilidade da batata realmente me impressiona. Não conheço alguém que não goste de batatas, em alguma de suas inúmeras formas de preparo. Até os ingleses gostam de batatas! Minha mulher faz um purê de batatas, que não ouso tentar imitar, tremendo sucesso, graças a porções secretas de manteiga, leite e queijo parmesão, conferindo sabor e textura inigualáveis. O peru da Ceia de Natal foi relegado à condição de guarnição do purê dela. Quem o prova, descobre que, até aquele momento, só havia comido míseras batatas amassadas. Há também a salada de batatas com maionese que ela prepara, realmente cremosa, mas isto já é outra história. Sintomaticamente, os sobrinhos de origem alemã preferem o purê, enquanto que os sobrinhos de origem italiana preferem a maionese. Fico imaginando o que os pobres europeus comiam até o século XVI. Não é para menos que se aventuravam naquelas caravelas, na procura de algo decente para comer. Os espanhóis se deram bem; Pena que os ingleses tenham achado o ketchup também. Curiosamente, este é uma corruptela do termo chinês Koechiap - sal para conservar peixes.

Inesquecível era o purê de batatas servido num restaurante universitário, em meados da década de 70 (do século passado). Apresentava um gosto peculiar, único mesmo, definitivamente exótico. Havia todo um folclore cercando a comida lá servida, a preço realmente irrisório. O preço continua o mesmo até os dias de hoje. Mas o purê de batatas mudou. Cada prato tinha um apelido divertido. O bife era o James Bond – nervos de aço. Eu sempre achei mais engraçado o apelido da galinha frita: Joana D'Arc – queimada viva. Intrigante era o apelido do pastel de camarão, servido aos sábados: coloidal. O purê, singularmente, não tinha apelido. Num dia, que começou como qualquer outro, o segredo do tempero do purê foi revelado por um aluno que anunciou, em voz alta e clara – Sei como esse purê é feito! Instantaneamente a boa nova propagou-se, de mesa em mesa, substituindo aquela zorra tradicional por um silêncio sepulcral de expectativa ante a iminente revelação. Olhando para os dois lados, para ter certeza que estava sendo ouvido por todos, ele revelou o segredo: uma cozinheira, senhora de dimensões avantajadas, ficaria sentada sobre uma banqueta, no centro da cozinha, tendo no seu lado direito uma panela com batatas cozidas inteiras. No seu lado esquerdo uma panela vazia, no chão. Com a mão direita pegaria as batatas inteiras, colocando-as sob a axila esquerda, fazendo um rápido movimento de contração do braço esquerdo. A batata esmagada sob a axila, já transformada em purê, cairia na panela vazia, pronta para ser servida. Seguiu-se um longo e profundo silêncio. E sobrou purê de batatas nas bandejas naquele dia.

Numa das tradicionais manifestações que os estudantes realizavam, naquela época, para protestar contra as tentativas de aumento, de 0,1%, do preço das refeições, a batata revelou seu lado revolucionário. Como de praxe, os manifestantes obstruíam uma avenida defronte ao restaurante. O batalhão de choque, chamado para liberar a avenida, vestido de azul, era recebido aos gritos de "Grêêêmiooo!", revidando com bombas de gás lacrimogêneo e cassetetes. Num desses eventos os revoltosos conseguiram apoderar-se de uma carga de batatas, destinada ao restaurante, e a transformaram em munição, na forma de petardos tuberculosos lançados contra os policiais. Esse aspecto revolucionário da batata ficava mais evidente quando, após as manifestações, os integrantes seguiam para o Alaska, na Esquina Maldita (Osvaldo Aranha com Sarmento Leite) onde discutiam o resultado das manobras em reuniões movidas a cerveja e batatas fritas. Afinal, o RU estava fechado mesmo!

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Paulo Roberto Heuser

24.4.06

O Dia Em Que Me Mudei Para a Nova Zelândia

O Dia Em Que Me Mudei Para a Nova Zelândia

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Preparei-me, durante umas duas semanas, para cancelar o contrato de um serviço prestado por uma grande empresa, através de uma central de atendimento por telefone. Experiências traumáticas anteriores me levaram a fazer um bom planejamento. Dificilmente alguém consegue cancelar um serviço na primeira tentativa. Na melhor das hipóteses, se conseguir ser atendido, acabará contratando um serviço adicional, com período de fidelidade de pelo menos 12 meses. Como logrei êxito dando apenas um telefonema, apenas unzinho mesmo, resolvi divulgar o método. Primeiro, faz-se necessário entender como funciona uma central dessas. Todos recursos são canalizados para vender novos serviços. Serviços que geram custos, como manutenção sem ônus para o cliente, geralmente estão escondidos. Acessíveis, mas não sem um certo esforço. O cancelamento, obviamente, não consta em nenhum. Para cancelar é necessário falar com alguém. Falar com quem? Essas centrais parecem operadas apenas por computadores com sotaques de outras terras. Exatamente por esta razão, o início do processo é descobrir em qual dos atalhos, dos intermináveis e repetitivos monólogos computadorizados, se escondem os operadores humanos. Se tiver um filho, ou filha, que seja hacker ou fã de jogos de aventura, peça a ajuda dele ou dela. Vão encarar esta tarefa desgastante como um excitante desafio. Quando decifrar a seqüência de atalhos numéricos pelo telefone, anote-a cuidadosamente para uso futuro, mas não fale! Você estará cansado, portanto vulnerável. Preparos físico e mental, paciência e autocontrole serão imprescindíveis para conquistar a tão sonhada liberdade (do contrato). Se você for cardíaco ou hipertenso, cabe uma passadinha pelo médico, para uma revisão. Explique o que pretende fazer. Novos fármacos calmantes fazem maravilhas. Para os mais religiosos uma boa sessão de rezas, ou de trabalhos, pode dar mais autoconfiança. Para os mais zen, arroz e meditação. Preparados o corpo e a alma, leia atentamente o contrato, se conseguir encontrá-lo. Lembre-se de que lá, na hora do Grande Confronto, não caberá hesitação. O próximo passo é, talvez, o mais importante, o motivo para o pedido de rescisão. Os Operadores, os primeiros com os quais se consegue falar, têm respostas prontas para quase todas as questões, com exceção de cancelamentos. Transferem imediatamente a chamada para os temidos Operadores Mestres, psicólogos treinados em lavagem cerebral a distância. Eles têm roteiros de respostas prontas para os motivos mais óbvios, como falta de dinheiro ou desgosto com o serviço. Se você resistir, recusando as ofertas de 3 meses de serviço grátis, desconto de 50% nas mensalidades, durante 4 meses, ou promoção para um pacote mais vantajoso, estará correndo sério risco de ser passado para um Operador Hipnotizador (o Inominável), de plantão no ramal 666, que utilizará técnicas de regressão a distância, mapas de vidas passadas e manipulação das runas para descobrir o porquê da sua vontade de rescisão. Nunca, nunca mesmo, fale com uma dessas pessoas! Além de não cancelar o serviço, certamente vai adquirir um sofá inflável e um aparelho para remover gorduras do abdome. Para não correr o risco de ser passado para a casta mais alta dos Operadores, só mesmo um argumento irrefutável para rescisão do contrato. Mudança de endereço, por exemplo. Mas, cuidado! Mude-se para um lugar onde a empresa, com certeza, não preste o serviço. Verifiquei, através da Internet, que a Oceania estava fora da área de atuação da empresa. Fiquei tentado a me mudar para as Ilhas Cook. Longe o suficiente, mas não muito crível. Por acaso você conhece alguém que se mudou para lá? Acabei optando pela Nova Zelândia. Cancelaram o contrato na hora pois, além de não operarem lá, não teriam mesmo como entregar o sofá e o aparelho redutor de gordura. Que Freud e Lacan nos ajudem!

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Paulo Roberto Heuser

22.4.06

Meu desajeito - Paulo Sant'ana

Paulo Sant'ana
22/04/2006
<<<<<<<<<< Escreví o último parágrafo >>>>>>>>>>>

Meu desajeito

Sou uma pessoa muito complicada na habilidade manual. Ou melhor, não tenho nenhuma. Só depois de completar 20 anos é que consegui dar um laço nos cadarços dos sapatos. E com 35 anos de idade é que cheguei à façanha de dar um nó na gravata. Até lá, os outros é que davam para mim.

Adoro cachorro-quente, mas esse lanche se transforma em verdadeira tortura para mim quando a atendente da lancheria me alcança um sachê de mostarda, esses envelopes de plástico que servem de bisnaga.

Não consigo nunca abrir o sachê, já perdi até certa vez um dente tentando rasgar o plástico que guarda a ansiosa mostarda.

Por isso apelo para a faca, mas nada. Não há como cortar aquele pesponto indicativo da abertura do sachê com faca, sem perigo de cortar-se. Por várias vezes me feri tentando passar a faca na garganta do sachê. Fui tratar do ferimento e adeus cachorro-quente, não há nada pior na vida do que comer sofrendo.

* * *

Claro que há certas embalagens que são facilmente rompidas quando se tem uma tesoura por perto, tanto o caso do sachê da mostarda quanto essas caixas de papelão que trazem leite.

Mas como carregar uma tesoura no bolso ou como encontrar a tesoura em casa quando se quer abrir a caixa de leite?

E se vou cortar o papelão da caixa com a faca, sempre acontece que derramo leite por todo o chão.

* * *

Sendo assim, sou obrigado a renunciar a certos prazeres justamente por essa desastrada inabilidade manual, que é uma marca da minha personalidade.

Uma fruta que acho deliciosa, o abacaxi, nunca mais comi, tanto por não saber descascá-lo como porque quando apelei para a compota não tive a capacidade de abrir a lata.

* * *

Um dia vi no Animal Planet macacos africanos comendo nozes. Eles botavam uma pedra no chão, que lhes servia de plataforma, colocavam a noz em cima e com outra pedra partiam a fruta e a comiam.

Eu sempre achei que as nozes são frutas das mais saborosas, mas nunca intentei abri-las. O mesmo se dá comigo com os pinhões. Se alguém tiver alguma técnica para descascar essas sementes que me mande dizer, pode ser que eu consiga agora no fim da vida passar um inverno comendo pinhões saborosos. Até esta quadra da existência, nunca consegui descascá-los.

Um pinhão para mim é uma geringonça inextricável como para um leão deve ser uma tartaruga que encolha sua cabeça para dentro do casco.

* * *

Mas, sobre a dificuldade de desembaraçar certos produtos de suas embalagens, o leitor Paulo Roberto Heuser manda-me um relato proverbial: "Alguns produtos eletrônicos, apesar de bem visíveis no interior de embalagens transparentes, oferecem extrema resistência a quem tenta retirá-los delas. Embalagens de escovas dentais elétricas, por exemplo, desafiam a imaginação do usuário. Entendo até que os fabricantes tentem evitar eventual test drive das escovas. Aparentemente nenhuma ferramenta foi inventada ainda para abrir as ditas embalagens, formadas por duas placas de material plástico transparente fundidas sobre os produtos. Tentativas frustradas de abertura, utilizando tesouras, facas, alicates e serras, geralmente não produzem outro resultado senão ferimentos nas mãos daquele ou daquela que tenta, já que tudo parece escorregar naquilo. Os habitantes da cidade alemã de Solingen desviam do assunto. Um poste coberto com o material daquelas embalagens daria o pau-de-sebo universal, impossível de ser escalado. O sonho de qualquer festeiro de São João, nunca precisaria distribuir prendas. Após anos de experiência e inúmeras cicatrizes, desenvolvi uma técnica que tem dado bons resultados e poucos ferimentos: inicialmente furo a borda da embalagem utilizando prego e martelo, tomando muito cuidado para que o prego não escorregue, o que só se consegue quando ele está a exatos 90 graus com a superfície. A seguir, utilizo uma furadeira elétrica (sem impacto, pelo amor de Deus!) para ampliar o furo, repetindo o processo, com brocas de diâmetros crescentes, até obter um orifício de 10mm ou 12mm aproximadamente. Nesse momento, com uma serra tico-tico, corto o invólucro até a borda, sem maiores riscos. Nunca caia em tentação e tente substituir a serra por uma faca de serrinha, do tipo para churrasco! É ferimento na certa! A partir daí, a coisa fica simples. Prendo uma das bordas, que se soltou, numa morsa (não meninas, não é um animal) de bancada e rompo a solda do invólucro com uma ferramenta grande, atuando como alavanca. Pode-se utilizar um pé-de-cabra ou uma picareta. Exige um pouco de força, vale pedir a ajuda de vizinhos ou do zelador, se este não tiver hérnia de disco. Quase tão simples como abrir um coco".


psantana.colunistas@zerohora.com.br

19.4.06

O Enigma do Interior das Coisas

O Enigma do Interior das Coisas

Noutro dia, no supermercado, enquanto sacudia um pote de creme de leite (nata fresca) junto ao ouvido, fui interpelado por uma senhora idosa intrigada com a cena: - "o que o senhor espera ouvir daí?". Respondi que gosto da nata quase líquida e que a única forma de identificá-la é pelo som, já que as embalagens são opacas. Ao procurar brócolos, os encontrei numa seção que anunciava a venda de "produtos orgânicos", o que me deixou bem satisfeito, pois não compraria, conscientemente, brócolos inorgânicos. Aliás, fiquei chocado ao constatar que, até aquele dia, eu vinha comprando batatas, cenouras, verduras e uma série de outros produtos não orgânicos. Inorgânicos portanto, já que não existem semi-orgânicos nem, em decorrência, semi-inorgânicos. Como até os materiais plásticos, derivados de subprodutos do petróleo, são compostos de substâncias orgânicas, não consigo imaginar do que é feito um vegetal inorgânico! Fingi não ver o anúncio de "carne orgânica". Como as substâncias orgânicas são compostas por carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio, poderiam criar uma etiqueta declarando, orgulhosamente, " CHON Inside®". Pois bem, como não compraria brócolos inorgânico, paguei R$ 5,51 por um pacote de brócolos orgânicos, embalados numa bandeja coberta com filme plástico. Uma vistoria inicial mostrava tratar-se de um belo espécime, sem aqueles tons amarelados, prenúncio do cheiro peculiar (grande eufemismo) produzido pelas crucíferas excessivamente maduras (outro eufemismo). Minha ilusão foi-se com a abertura do invólucro, pela liberação do dito cujo odor e pela constatação de que a parte interna estava podre (sem eufemismo). A bandeja de isopor e a cobertura com filme plástico nos remetem aos morangos e às galinhas. O que tem em comum? A embalagem e o misterioso interior, com certeza. Com exceção dos morangos-de-semáforos, as bandejas apresentam uma camada superior de morangos lindos e maravilhosos cobrindo outros verdes ou demasiadamente maduros (mais eufemismo). As sobre-coxas de galinha, vendidas nas bandejas de isopor, escondem boa quantidade de pele e de gordura, enroladas sob as peças. Pelo menos pararam de vender galinhas mutantes, com 3 pés e 2 cabeças. Só eram boas para sopas.

Diz-se dos aviões e das salsichas que é melhor não saber do que são feitos. Deve ser verdade. Como piloto privado aprendi como os aviões funcionam, o que não aumentou nem um pouco minha confiança neles. Nunca visitei uma fábrica de salsichas. Resta-me assim a confiança cega nelas. Salsichas, a não ser que fiquem verdes, sempre parecem iguais. Com exceção de algumas, geralmente vendidas a granel, aparentam levar papelão de caixas de ovos e serragem na sua composição. Talvez fosse esta aparente igualdade, acrescida de umas doses de álcool, o que nos dava coragem, na juventude, para comer os famosos cachorros-quentes de saída de baile. Não havia melhores!

Vivemos com o enigma do interior das coisas, começando pelo enigma do interior da Terra, explorado por Arne Saknussemm, personagem do clássico de Jules Verne. Vivi o tempo em que as crianças, para alegria do vovô, desmontavam relógios e rádios velhos – para uma criança qualquer coisa com mais de 1 mês é velha - tentando descobrir como funcionavam. Além de não descobrir como, criava-se um novo mistério: como alguém conseguia juntar todas aquelas peças lá dentro? Molas-de-corda dos relógios deveriam ter nascido lá dentro. Impossível colocá-las depois. Descobria-se também, empiricamente, que era conveniente desligar os aparelhos da tomada antes de desmontá-los.

Os fabricantes de produtos de limpeza criaram recentemente o mistério do peso. E uma nova olimpíada de matemática. O desafio consiste em decifrar o preço por quilo de sabão, cujas embalagens são alteradas diariamente. Durante 47 anos compramos sabão em embalagens de 1 kg. Em compensação todo mundo esquecia-se de como fazer mentalmente as operações matemáticas. Com as novas embalagens de 0,6 kg, 0,8 kg, 1,2 kg, 1,6 kg, 1,7 kg, 2,0 kg, 2,2 kg, etc, estamos sempre fazendo cálculos mentais. Cultura de limpeza ou limpeza culta?

Alguns produtos, eletrônicos geralmente, apesar de bem visíveis no interior de embalagens transparentes, oferecem extrema resistência a quem tenta retirá-los. Embalagens de escovas dentais elétricas, por exemplo, desafiam a imaginação do usuário. Aparentemente nenhuma ferramenta foi inventada ainda para abri-las. Tentativas frustradas de abertura, utilizando tesouras, facas, alicates e serras, geralmente não produzem outro resultado senão ferimentos nas mãos daquele ou daquela que tenta, já que tudo parece escorregar naquilo. Um poste coberto com o material daquelas embalagens daria o pau-de-sebo universal, impossível de ser escalado. O sonho de qualquer festeiro de São João, nunca precisaria distribuir prendas. Após anos de experiência, e inúmeras cicatrizes, desenvolvi uma técnica que tem dado bons resultados e poucos ferimentos: inicialmente furo a borda da embalagem utilizando prego e martelo, tomando muito cuidado para que o prego não escorregue. A seguir utilizo uma furadeira elétrica (sem impacto, pelo amor do Deus!) para ampliar o furo, repetindo o processo sucessivamente, com brocas de diâmetros crescentes, até obter um orifício de 10 ou 12 mm aproximadamente. Nesse momento, com uma serra tico-tico, corto o invólucro até a borda, sem maiores riscos. Nunca caia em tentação e tente substituir a serra por uma faca-de-serrinha, do tipo para churrasco! É ferimento na certa! A partir daí a coisa fica simples. Prendo uma das bordas, que se soltou, numa morsa (não meninas, não é um animal) de bancada e rompo a solda do invólucro com uma ferramenta grande, atuando como alavanca. Exige um pouco de força, vale pedir a ajuda de vizinhos ou do zelador, se este não tiver hérnia-de-disco. Quase tão simples como abrir um coco.

Paulo Roberto Heuser

12.4.06

Ben-Hur e Pipocas

Ben-Hur e Pipocas

Estava no cinema, aguardando o início da projeção, quando me vieram à lembrança as idas às matinês de domingo, dos cinemas Vitória e Apolo, em Santa Cruz do Sul, durante a minha infância. Chegávamos cedo, bem antes do início da sessão dupla, geralmente uma combinação de filmes de capa-e-espada ou de guerra, onde todos japoneses e alemães eram idiotas, seguidos de um spaghetti western com Franco Nero ou um romance meloso com Gianni Morandi e Rita Pavone. Antes da sessão se trocavam figurinhas de álbuns impossíveis de completar e gibis. O Vitória tinha poltronas metálicas estofadas. Incomparáveis, no aspecto conforto, com as dos cinemas atuais. Hoje temos poltronas com encosto para tudo, porta copos, piso inclinado, à prova de pessoas altas e ar condicionado. Assisti ao Lawrence da Arábia (1962), na interminável versão original, num dia escaldante de verão, nas poltronas de madeira do Apolo. Uma simulação muito real do deserto - chegamos ao final da sessão derrotados como os otomanos. Nada comparável, no entanto, ao Ben-Hur (1959) com 210 minutos de duração. Quando Messala morreu, atropelado no final do primeiro grande racha (de bigas) da história cinematográfica, o cinema veio abaixo com os aplausos, não só pela sede de vingança contra Messala, mas principalmente por saber que aquele suplício, nas poltronas de madeira, terminaria em breve. Num aspecto os cinemas de outrora e os de hoje se assemelham. Há baleiros na entrada. As balas mais infames são as azedinhas e as balas de goma, enroladas em celofane, fazendo muito ruído cada vez que alguém as tira.. Noutra, no entanto, os cinemas atuais inovaram na tortura, ou melhor, importaram a tortura de outras terras. Não havia na época nada comparável ao fedor de pipocas que se espalha pelas modernas salas. Só mesmo vendendo galinha na farofa. Como apop-corn aux microondes avec fromage - assim fica mais chique para combinar com o preço cobrado por aqueles vasos de pipoca - fica muito crocante, um novo ruído tipo chomp-chomp soma-se ao já conhecido schtress-schtress das embalagens de balas. Os filmes legendados ajudam, já que não é necessário ouvir a trilha sonora. Restou o problema da falta de concentração, pois somado ao cheiro nauseante das pipocas e de uns salgadinhos sabor de bacon, que mereciam ser chamados de Vomititos, tem o irritante ruído chomp-schtress-brrrrrrr - este de celulares com alarme vibratório. O fedor continua, mas para os ruídos a tecnologia veio com uma solução - um sistema de som OSAPPAS – Ondas Sonoras Amplificadas Para Provocar Abalos Sísmicos, modelo Armagedon. O volume é tão alto que abafa quaisquer ruídos à mais de 2 metros do espectador. Sussurros velados, de amantes apaixonados, nos chegam a 98,7 dB. A queda de um alfinete nos faz pular de susto na poltrona. Alguns filmes ajudam a abafar ruídos com as seqüências de explosões, desabamentos, terremotos, perseguições e outros fenômenos ensurdecedores que se prolongam. Certo, a corrida de bigas do Ben-Hur durou 17 minutos. Nos filmes antigos, exibidos no Apolo e no Vitória, cenas de carros acidentados eram filmadas com uma antiga técnica - jogar uma carcaça do perau. Tomadas feitas bem de longe, por uma câmera apenas, tendo o cuidado de, pelo menos, jogar uma carcaça da mesma cor do carro filmado na estrada. Nos filmes americanos os carros sempre explodiam ao cair, mais de uma vez inclusive. Teriam mais do que um tanque de gasolina? Os europeus só perdiam rodas e pedaços ao longo da queda. Aliás, características mantidas até hoje. Só que os orçamentos atuais de Hollywood permitem jogar um Rolls-Royce no despenhadeiro e efetuar tomadas simultâneas, de uns 17 ângulos diferentes. Pena que muitos dos filmes modernos sejam produzidos a partir de uma série de efeitos especiais, ao redor dos quais se tenta montar um enredo. Efeitos especiais são muito bem vindos quando Uma Turman é A Noiva num filme de Quentin Tarantino. Aí vira arte.

Surge defronte a tela um sujeito vendendo mais pipocas.

Paulo Roberto Heuser