11.2.11

582 - Olga morreu na fila

Adão e Eva de Lucas Cranach

Olga morreu na fila
Paulo Heuser

Olga cumpriu o ritual. Ela nasceu numa casa comum de uma família comum, era mais ou menos honesta, ia à missa de quando em vez, cumprimentava os vizinhos, pagava os impostos e consumia. Fruto da típica família da classe média. O fato é que Olga não cumpria igualmente esses deveres da classe média e dava ênfase ao consumo. Não qualquer consumo, ela consumia avidamente as quinquilharias tecnológicas da moda. As colunas sobre eletrônicos passaram a ser seu habitat. Enquanto os seus amantes sentiam prazer, Olga fingia alcançar o gozo carnal. Ela movimentava-se mecanicamente, enquanto um turbilhão de gigabytes, megapixels e interfaces girava em torno de algum ponto perdido no teto, onde seu olhar se encontrava. Foi bom para ti também? Foi, meu amor, foi – ela mentia. Quando o amante dormia, Olga escorregava dos cetins e entrava madrugada frente ao monitor comprado na semana anterior e deixava-se flutuar pelas páginas das lojas virtuais dos provedores de serviços tecnológicos. Olhava para o seu iMaçã 4® e sentia o prazer sufocado pela crescente noção de perda. Pudera, havia rumores sobre o iminente lançamento do iMaçã 5®. O que faria, até lá? O iMaçã 4® já não lhe dava a mesma satisfação que sentiu até os sete minutos decorridos da sua compra. Deixar-se-ia seduzir por outro gadget qualquer? Não, era uma questão de status. Havia de ser aquele que levava a marca do Pecado Original®. Seria a opção entre o Céu® e o Purgatório®. E pensar que ainda havia gente morrendo na fila à espera desse que lhe escorria pelas mãos em direção ao implacável obsoletismo. O tempo até que não havia sido tão cruel com Olga, pelo menos era o que sugeria a sucessão de candidatos à sua frívola paixão. Olga não se deixava seduzir pelos sussurros e pelos toques sutis. Cedia, por vezes, apenas para saciar alguma necessidade carnal inconsciente. Contudo, o único toque que a levava ao êxtase era o toque daquelas pequenas maravilhas.  
Por fim, Olga morreu na fila de espera pelo iMaçã 5®. Foi o fim de uma vida pontuada por quase êxtases. Sempre quase.

Em tempo, iMaçã 4® e iMaçã 5® são marcas registradas de Maçã Inc, Céu® e Purgatório® são marcas registradas de Deus e Pecado Original® é marca registrada do Demo.


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1 Comments:

At quarta-feira, 02 março, 2011, Blogger MARIO ROGERIO FEIJO said...

Maravilhosos seus textos. Parabéns!!

 

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