31.5.06

O Ovo da Caninana

O Ovo da Caninana

Durante um jantar, ouvi um empresário comentar, em tom de desabafo, como seria bom se pudesse fechar a empresa e reabri-la do outro lado da rua, partindo do zero. Referia-se aos vícios de gestões passadas, aos encargos sociais e a todo outro tipo de legado, às vezes maldito, carregado pelas empresas. Talvez este seja o motivo do sucesso das pequenas empresas, ágeis, sem um legado trabalhista importante, terceirizando tudo aquilo que não faz parte da sua atividade fim. Essas pequenas empresas mordem os calcanhares das grandes, até que estas as comprem. Os ex-donos, com dinheiro no bolso, novamente criam pequenas empresas, que mordem novamente os calcanhares, seguindo-se tudo novamente. As grandes tornam-se maiores e assim por diante. Só não há mais lugar para as empresas médias. O que atrapalha este círculo, virtuoso ou vicioso, conforme de que lado se vê, é o estado. Digo o estado, pois é impossível culpar apenas um ou outro governo. O ovo da caninana (o da serpente era alemão, imortalizado por um sueco) foi posto faz muito. As empresas podem terceirizar livremente as atividades que não lhes interessam. A logística é um bom exemplo. Qualquer motoboy é fruto da terceirização desta. Na verdade, terceirizamos tudo, iniciando pelo comércio e terminando com a indústria, literalmente. Esta para a China. Compram-se coisas inimagináveis nas ruas das nossas grandes cidades. Nas pequenas, o monopólio é das lojas de 1,99. Lembro-me ainda de quando os camelôs vendiam pentes Flamengo e espelhinhos redondos com a foto da Wanderléa. Hoje há pilhas, que duram 7 minutos (não os de Irving Wallace), lâminas de barbear, complexos vitamínicos, computadores, medicamentos, eletrodomésticos, material cirúrgico, vestuário falso de grife, brinquedos, suprimentos em geral, filmes e jogos em DVD e qualquer outra coisa que possa, ou não, ser vendida. Os cigarros falsos fazem grande sucesso. Matam duas vezes. Sempre fiquei impressionado com os filmes, estilo 1001 noites, rodados em Bagdá ou lugar equivalente, onde reinava o caos completo, nas vielas tomadas por vendedores, lá de tapetes e vasos de barro. Provavelmente trocavam vasos por tapetes para, após alguns instantes, trocá-los novamente por vasos. Chegavam em casa, orgulhosos, com o mesmo vaso que tinham pela manhã. Hoje, além desses produtos, há bombas também. Aqui só diferem os produtos, o caos já é o mesmo. Partiremos para o escambo, em breve, trocando lâminas de barbear, de pouco uso, por laxantes ou cremes para o rosto. Somente as pilhas, de 7 minutos, ficam de fora no escambo. Criado o monstro da informalidade, difícil é matá-lo. Vão-se os tributos e os encargos sociais, fica a livre, e põe livre nisso, iniciativa.
Não consigo deixar de comparar empresas com estados. Apenas as muito grandes e as muito pequenas sobrevivem. Empresas muito grandes tem dono, que não quer companhia. Deixemo-las para o Guilherme Portões (o do Fenestras XP). As pequenas empresas são ágeis pela simplicidade. Assim poderia ser o estado. Coloco em minúsculas para reduzir o risco de ser preso. O estado é complexo demais, nada pode funcionar direito dessa forma. As empresas trocam, com alguma freqüência, suas diretorias e os funcionários nos postos-chave. Mas não trocam todos, em todos departamentos, ao mesmo tempo. Os governos trocam. As empresas escolhem os homens-chave visando o lucro. Os governos os escolhem pelo barulho que fizeram na campanha. Empresas não colocam médicos na contabilidade nem filósofos no planejamento e controle da produção. O lucro do estado deveria ser o social. Só vemos prejuízos, econômicos e sociais.
Uma primeira medida lógica, para saneamento de um estado, poderia ser o fim do contrato, de prazo fixo, para presidentes. Deu prejuízo continuado, mande embora e contrate outro. Mais ou menos como no futebol. Não existe estado constituído sem uma constituição (minúsculas novamente, para não ser preso). Não pode ser um emaranhado confuso e gigantesco, onde todo mundo meteu a colher, mas a colher de alguns era muito maior do que a dos outros. Lembro do conselho que um engenheiro me deu, quando o inquiri a respeito da melhor marca de determinado tipo de produto. Respondeu-me que indicaria aquela da qual ninguém falava, a que daria menos problemas. Alguém já ouviu falar de algum problema constitucional em Andorra ou Liechtenstein? Não? Devem ser bons modelitos para uma constituição. Lá vivem felizes e ricos. Há aquele setor que deveria fazer as normas, mas só faz encher o próprio bolso e lutar com seus pares. Como não pode ser terceirizado, temos de apelar para a criatividade. Uma forma de sair desse enrosco seria a criação de um conselho normativo, a Câmara dos Comuns, composto por não mais do que 50 membros. O que fazer com os atuais? Colocá-los na Câmara dos Incomuns, onde todos poderiam trabalhar (?) felizes. Pagaríamos seus vencimentos, carros, moradia e demais regalias institucionalizadas. O dinheiro verdadeiro, de verbas parlamentares dos Incomuns, daria lugar ao dinheiro do Banco Imobiliário (o jogo). O dinheiro de verdade seria administrado pela diretoria executiva e sua destinação referendada pela Câmara dos Comuns, sem direito a emendas e remendos. Os demais homens-chave seriam funcionários de carreira, sem cargos de confiança. Se não há confiança neles, por que contratá-los? Os membros da Câmara dos Incomuns passariam a lutar entre si, sem causar mais prejuízos além daqueles inerentes à sua manutenção. Poderiam permanecer em constante campanha para reeleição e comporiam quantas comissões desejassem. Só não poderiam criar normas nem brincar com dinheiro de verdade. Política assim não tem graça? E alguém disse que tem? As instalações já existentes, aqueles prédios cartões-postais, seriam transformados em parque temático – ChamberLand (Camaralândia). Os canais de TV criariam programas como A Casa do Congressista e Sobrevivente da CPI, com direito a paredão e tudo o mais. Neste último o grande sucesso poderia ser um quadro chamado Prisão do Advogado Engraçadinho. A entidade classista destes poderia criar um novo tipo de censura pública aos infringentes do seu código de ética: contar piadinhas sobre a atuação das comissões, ao vivo, na Câmara dos Incomuns. Parte do lucro, auferido com os programas, poderia reverter ao estado, para custeio dos representantes do na Câmara dos Incomuns. Um daqueles prédios-panela-wok, emborcada ou não, poderia ser reformado para virar cassino, fora dos horários das sessões, das sextas às segundas-feiras. ChamberLand poderia virar a Las Vegas tupiniquim - aquilo está no meio da nada mesmo -, recebendo centenas de aviões recheados com vereadores ávidos por congressos. De fazer inveja a Miami.
A Câmara dos Comuns poderia ficar junto à parte produtiva do país.

Paulo Roberto Heuser

26.5.06

Candidatos

Publicada em 03/06/2006 no jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, coluna Opinião:

http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=55087&intIdEdicao=866
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Publicada no Portal Sulmix em 12/07/2006:
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http://www.sulmix.com.br/principal_politica/PAGINAS/politica1129.htm

Candidatos

Não sei o que estou fazendo, aqui sentado, aguardando para votar. Já sofri tantas desilusões pós-eleitorais que não tenho mais prazer em votar. Aquela maravilha de candidato, eleito, cai na mesmice do anterior. Há vários tipos de candidatos, os coitadinhos, os varredores, os intelectuais, os empreendedores, os operários ou camponeses, os bons-meninos e os perus. Os primeiros, os coitadinhos, são sujeitos realmente preocupados com o bem estar dos outros. Tem idéias que poderão nos tirar desta situação calamitosa em pouco tempo. Batalham dia e noite em prol da comunidade. Levam gente ao médico, tratam sarna de cachorro, fazem campanha para comprar perna mecânica, até assumirem o cargo eletivo. Aí descobrem que existem leis que não permitem que se faça o bem comum, sem a obediência de certos preceitos jurídicos e procedimentos formais. Afogam-se no mar da burocracia, pela própria simplicidade. Como sua equipe de trabalho, por vezes, não é tão inocente assim, acabam se enredando em auditorias e sindicâncias. A renúncia é uma saída a considerar, para fugir de processos mais rigorosos de apuração dos desvios cometidos, em seu nome. Os varredores são os candidatos que prometem varrer a sujeira da administração, denunciam irregularidades, prometem punições, exonerações e austeridade total. Seu discurso é forte, incisivo e raivoso. Batem com a mão, ou o sapato, na mesa, enquanto prometem arrasar os funcionários julgados ineficientes. Uma vez eleitos, adotam uma ou outra medida de impacto, demitem um ou dois servidores, como exemplo, vivendo uma administração morna, movida a factóides ocasionais, até que um dos varridos resolva tirar a sujeira de debaixo do tapete. A renúncia e a destituição são caminhos naturais para os varredores. São potenciais candidatos ao retorno, pautando suas campanhas no papel de vítimas da intriga política. Os intelectuais são aqueles que julgam situar-se acima da capacidade de compreensão dos eleitores, estes não intelectuais, desprezíveis males necessários. Os intelectuais modernos são vítimas da especialização do trabalho. Na antiguidade, intelectual era um estudioso da ciência, não de apenas um ramo de uma das ciências. A extrema especialização, decorrente da divisão do trabalho, produz sumidades em áreas muito específicas do conhecimento humano, enquanto se apresentam completamente alienados em muitas outras. Os bons são os que conhecem o tamanho da própria ignorância e delegam, a quem sabe, aquilo que ignoram. Infelizmente, os delegados nem sempre fazem jus à confiança neles depositada. Intelectuais tendem a chegar ao fim de suas administrações, mais pela falta de escândalos, que os derrubem, do que pelas qualidades administrativas. Empreendedores são tipos potencialmente perigosos quando não há orçamento folgado. Precisam desesperadamente de obras, úteis ou inúteis. Tem de estar sempre ocupados com novos projetos. Há os empreendedores setoriais, aficionados por algum tipo de empreendimento. Lembro de um candidato, que já havia sido presidente de um clube social. Fanático por banheiros, em cada canto via uma oportunidade para instalar algum. Ganhou o Prêmio de Higienizador do Ano, com direito a coquetel, discursos e um troféu em forma de vaso sanitário estilizado. Outros têm fixação por espelhos, placas comemorativas e inaugurações de qualquer coisa inaugurável. Fazem o estilo “realizar primeiro, planejar depois”. Contratam consultorias que lhes permitem receber prêmios de gestão. Os eleitores gostam. Os operários e camponeses são raivosos durante a campanha e emotivos após a eleição. Eleitos, choram e culpam “as elites” por tudo o que ocorre de errado, enquanto guiados por algum tipo de elite. Os operários e camponeses orgulham-se da origem humilde, das mãos calejadas, da falta de cultura e dos modos rudes. Eleitos, circulam em caminhonetes caras (para visitar as bases) e trocam o visual rústico pelo Armani. Acabam descontentando tanto aos eleitores, que os conduziram ao poder, como aos outros, seja quem for. Bons-meninos fazem o tipo educado, ponderado, mantendo a fleuma, durante o jogo de golfe, enquanto o campo é bombardeado. Adoram enaltecer as virtudes do vinho nacional, entre goles de um Château Petrus 1976. Não polarizam, são corretos, medianos e insossos demais. Em nome da política, em decorrência da campanha, amizades se desfazem, famílias se dividem, vizinhos deixam de se cumprimentar. Continuo desconfortável. Desde que não votem em mim, tudo bem. São 20h30 e o presidente da mesa anuncia o início da assembléia, para eleição do novo síndico. Esqueci dos perus? Bem, os perus são os candidatos que não decolam, mas fazem muita sujeira e barulho, na tentativa.

Paulo Roberto Heuser

24.5.06

Os Heróis da 14

Os Heróis da 14

Chegando ao aeroporto, olho com desconfiança para um setor do embarque, onde uma placa indica: Volumes de Tamanho Incomum. Como não me enquadro exatamente nos padrões de tamanho, nem verticalmente, nem horizontalmente, tenho o receio de que me mandem fazer o despacho, o meu, naquele portão. Faço cara de morto, expiro todo o ar dos pulmões e dobro os joelhos, para parecer mais baixo e menos largo. Noto uma certa hesitação, por parte da atendente, lançando um olhar para aquele setor, após me olhar de cima a baixo – elas sempre nos olham como se estivéssemos fazendo algo errado. Receio também que me tirem a franquia, de peso da bagagem, por já tê-la excedido, sem considerar as malas. Vencido o desafio do check-in, vou aliviado para o embarque. Mostro o cartão de embarque à tripulante, na porta da aeronave. O sorriso metálico dela transforma-se numa expressão de profunda comiseração, quando lê o número da poltrona: 14E. Este número, multiplicado por um fator cabalístico qualquer, sempre dá 666 como resultado. Quem projetou aquilo deveria estar de porre ou se vingando de alguém, que ali viajaria. Um pigmeu não se sentiria confortável naquele espaço liliputeano. Vencidas todas barreiras para chegar à 14E, sentado finalmente! Este é o momento de começar a reza para que ninguém sente ao me lado ou, pelo menos, meus vizinhos sejam pigmeus subnutridos. Os privilegiados ocupantes das alguma-coisa-A, ou L, somente precisam rezar para que o vôo seja tranqüilo e para que a barra de cereais não seja a de sabor goiaba. Quando já vou relaxar, e começar a acreditar que viajar de avião não é tão ruim assim, descubro que meu vizinho à esquerda é um famoso jogador de basquete, o João Pequeno. Trocamos um olhar de desespero - onde acomodaremos as pernas? As poltronas rangem ameaçadoramente sob a pressão dos joelhos contra os encostos. O que mais pode dar errado? A 14F é ocupada pelo dublê do Frei Tuck, aquele do Robin Hood, lembra? Agora estou bem, João Pequeno à esquerda e o nosso clone do bondoso Frei Tuck à direita. Este, imediatamente avisa que vai orar pelas nossas almas e, especialmente, pelos nossos corpos. Para melhorar o humor dos penitentes da 14, o comandante avisa que o vôo sofrerá um pequeno atraso, de 45 minutos, devido ao congestionamento no Aeroporto Internacional de Guaranhuns. Esta é a má notícia. A boa nova é a de que vamos aguardar, confortavelmente sentados, na aeronave. Frei Tuck comenta que é impressionante como ainda se pode falar, mesmo com o corpo comprimido daquela forma. João Pequeno teme ficar fora do próximo jogo, por lesões nos joelhos. Penso que, em algum momento no futuro, este martírio vai terminar, o que me enche de esperança, algo como tirar os tênis novos, de lona, após a maratona. Decolagem! - voamos afinal em direção ao alívio. Se a pressão nos joelhos fosse estática, daria para agüentar, mas com as cinco crianças sentadas, nas 15, brincando de cavalinho com os encostos das 14, a coisa se torna dinâmica, latejante. O que ser menisco? A pena que sinto dos pais das crianças da 15 me alivia um pouco a dor. O vôo anterior, Tóquio-Guaranhuns, com escalas em Minsk, Auckland, Casablanca, Oslo e Antofogasta atrasou 11 horas, deixando as crianças um pouco impacientes e irritadas. Surpresa! – no lugar do tablete de cereais, uma refeição quente! Galinha, guarnecida com arroz petit-pois. Frei Tuck recusa e pede uma dose tripla de uísque. Diz que serve como anestésico. Não há uísque a bordo. Retornando à refeição, o primeiro desafio é retirar a embalagem, que cobre os pratos, sem mover os braços lateralmente. João Pequeno descobre uma técnica, deixando os braços cruzados, no meio dos antebraços, com as palmas das mãos viradas para dentro. Com algum esforço, é possível. Agora é só comer. Qualquer distração para a dor é válida. Mas, como comer? Sem mover os cotovelos, a mão não alcança a boca. Novamente João Pequeno mata a charada. Basta deixar o braço direito - se for destro - cruzado sobre o esquerdo e, colocada a comida no garfo, virar a mão 180 graus para trás, na direção do corpo, realizando, a seguir, um movimento de ascensão em direção à boca, sincronizando o movimento vertical do antebraço com o da mão. Tudo ajudado pelo minúsculo garfo de plástico pegando arroz, bem solto, e as ervilhas. Que saudades da Idade Média, não havia aviões nem talheres! Experiente, Frei Tuck dá a seguinte dica: misturar o queijinho com o arroz, para dar liga. A tripulação começa a nos olhar de forma estranha, pois parece que ensaiamos uma coreografia tipo Macarena. Bandejas recolhidas, hora do pipi. Pensando bem, uma dor a mais, da bexiga, não soma nada. A dor nos joelhos abafa qualquer outra. Tentei fazer pipi, no toalete do avião, faz alguns anos. É mais ou menos como fazer pipi dentro de um armário, só que com a parede do fundo curva. Para ver onde se está mirando (com r!), só com um espelho mesmo, pois o corpo fica curvado para trás, acompanhando a curvatura da fuselagem, e a testa bate no teto. Para o meu próprio bem, e para o bem do avião, nunca mais tentei. O pessoal de limpeza se recorda até hoje daquele vôo. Quando parece que teremos de deixar nossos corpos, pela insuportável compressão, o milagroso aviso de apertar cintos – como apertar mais alguma coisa? – soa como música em nossos ouvidos. Sinto o solavanco do trem de pouso nos rins. Pousados, motores parados, desembarque iniciado e tentamos nos levantar para a vida. Nada, perdemos o controle sobre os músculos das pernas, entorpecidas. Estamos entalados. A aeromoça, desconfiada, avisa que chegamos ao nosso destino. João Pequeno explica, constrangido, a situação. De dentro da cabine vazia, os Heróis da 14 assistem à chegada das ambulâncias e dos carros de bombeiros. Prometemos nos reunir uma vez por ano, para comemorar o resgate, a bordo de um navio.

Paulo Roberto Heuser

23.5.06

Inominável, O Filme

Inominável, O Filme

Ao deixar o Túnel da Conceição, sumido o chiado saindo do rádio do carro, ouvi um pedaço de anúncio que dizia: “...é isto mesmo, apenas 19 prestações de R$ 699,99 numa plasma...” (sic). Traduzindo de paulistanês mercadológico para português, consegui entender que se tratava de oferta de uma TV plasma. A venda dessas TVs deslanchou, por conta da copa. Alguns compradores devem estar se preparando para assistir, em DVD, ao filme da moda, o Cdg d Vnc, baseado no livro homônimo, de Dn Brwn. Não esqueci das vogais, apenas não consigo mais ouvir esses nomes, nem pronunciá-los, estão em tudo que se lê, se vê ou se ouve. Podemos chamar o filme, temporariamente, de Inominável. Nada relacionado ao demo. Apenas para não repetir aquele outro nome. Sem entrar nos méritos literário, religioso, mercadológico e oportunista, imagino o que está acontecendo com o lançamento do Inominável. Como outras tantas filmagens, baseadas em livros, acaba agradando quem não leu a obra literária. Ou não, como diria um dialético apressado. O resultado da leitura de um livro é único e pessoal, fruto da combinação do que está escrito com o que nossa imaginação produz, esta ainda influenciada pelo ambiente. A tradução dos livros já é uma fonte de interferência, pois dependemos do tradutor encontrar correspondência perfeita na nossa língua. No caso das filmagens, ficamos nas mãos de quem adapta a obra, considerados diversos aspectos, inclusive os econômicos. A imaginação não tem limites, a realidade os tem, mesmo a virtual. Sonhar e imaginar não custa nada, tentar passar o sonho aos outros, através de imagens, pode ter um custo insuportável. Isto que o filme pode contar com a trilha sonora. Fui um devorador dos livros de Frank Herbert (1920-1986) da saga Duna. Após ter lido os seis livros da série, combinações singulares de ficção científica, filosofia, religião, política e ecologia, fiquei muito feliz com o anúncio do filme Duna (1984), dirigido por David Lynch - outra boa nova. A decepção foi inevitável, como comprimir aquelas 676 densas páginas num filme? O fracasso de bilheteria, nos EUA, foi atribuído ao fato de Lynch ter criado um filme de ficção científica, esquecendo dos demais aspectos, principalmente dos filosóficos, religiosos e políticos. Uma obra bem feita, com bom elenco, boa fotografia e direção, não fazendo jus ao livro, apenas isto. Neste caso, quem não leu, pelo menos o primeiro livro – Duna, não entendeu nada. Viu um filme bonitinho de ficção científica. Quem o leu, teve de complementar, com a memória da leitura, lacunas imperdoáveis do filme, além de um desvio horrível, da trama original, no final. Uma praga que assola muitas filmagens de obras literárias é o tamanho destas. Não tem como comprimi-las a partir de certo ponto, só dá para cortar passagens. Aí caem no lugar comum ou ficam incompreensíveis. Ainda não assisti ao Inominável, apenas li o livro. Vou assisti-lo depois que baixar a poeira e a mídia esquecê-lo um pouco. O Dn Brwn coloca o leitor num liquidificador teológico-geotemporal, feito uma máquina de pinball. É de ficar zonzo, como numa montanha-russa. Quando nem havia assimilado ainda alguma quebra de dogma, outras se seguiam de roldão. O livro as trata de forma tão natural, e óbvia, que me senti o último idiota do mundo - ãããh, só eu não sabia... Faltou alguém como Frederick Forsyte para costurar aquela trama toda. Por isso, não espero muito do filme. Distração apenas. Pena que não tenho “uma plasma”, assim meu Louvre, na tela grande, não teria cheiro de pipocas. Ocorreu-me uma idéia agora, de fazer umas continhas aqui. Vejamos, paguei R$ 25,00 pelo meu Cdg d Vnc, na Feira do Livro, do ano passado. Mais R$ 5,50 por um acarajé e um suco de graviola. O transporte, não vou contabilizar - a excelente exposição no Margs, durante a Feira, compensou o custo. Ficamos então com um custo de R$ 30,50 - o que dá, aproximadamente, 2,5416666666666666666666666666667 (conta de açougueiro) ingressos de cinema, sem acrescer nestes os custos com estacionamento, pipocas e pastilhas de magnésia. Magnésia para quê? Para controlar meus ataques de gastrite, provocados pela irritação com cheiros e ruídos, inerentes à tela grande. Pensando melhor, e considerandos que posso comprar um livro, comer um acarajé e tomar um suco de graviola, a cada exatas 2,54 vezes que for à tela grande, vou esperar para assistir na TV por assinatura. Talvez o penteado do Tom Hanks pareça menor. Posso também arrumar cinco seguidores e confeccionar placas de protesto com: “Plasma é Blasfêmia!”.

Paulo Roberto Heuser

22.5.06

Mandiocas não são tubérculos!

Além do novo texto Minhocão do Pançudo, fiz algumas correções técnicas no texto Tubérculos, Grumos e TOC, que agora se chama Tuberosas, Grumos e TOC, graças às informações enviadas pela minha cunhada, professora de botânica, a quem agradeço. Escrever sobre o que não se entende dá nisso. Confundi, erronamente, mandiocas com tubérculos, quando, na verdade, são raízes tuberosas. Ou seja, troquei mandiocas por batatas, estas inglesas, pois se doces fossem, raízes tuberosas seriam. Chega a ser quase poético!
Em aula de culinária italiana, ministrada pelo chef Francesco Rosito, na Sociedade Italiana do R.G.S. - ACIRS, à qual assistí como penetra, este esclareceu que o nhoque era feito exclusivamente com farinha, até a introdução da batata na Itália. A partir de então, os ricos, que podiam comprar batatas (estas sim, tubérculos!), passaram a introduzí-las na massa. Com o passar do tempo, novas combinações surgiram, como com cenouras, espinafre, grão-de-bico, beterrabas, alcançando umas 20 combinações atuais.

Minhocão do Pançudo

Minhocão do Pançudo

Monstros mitológicos povoam o folclore de todos os povos. A relação é enorme, Yeti, Pé Grande, Chupa-cabra, Boitatá, Grifos, Dragões, Quimeras, Minotauro, Ciclope, Hidra e muitos outros. Nos festivais chineses está sempre presente a figura do dragão movido a um monte de chineses, soltando fumaça. Nos seriados de TV japoneses, como Nacional Kid (Nationaro Kiido), Ultraman, Jaspion e Changeman, Tóquio era destruída semanalmente por algum tipo de monstro saído da baía da cidade ou vindo do espaço. Esses seriados encheram a tela das nossas TVs nas tardes das décadas de 60, 70, e aí por diante. Invariavelmente, iniciavam com uma musiquinha infantil, cuja letra, em japonês, ninguém entendia. O enredo era sempre o mesmo - fruto da poluição, algum monstro cheio de apêndices, franjas e olhos luminosos, na nuca inclusive, surgia das águas e passava a pisar nas casas e nos automóveis. Os edifícios desabavam após golpes de uma das três caudas. Aí alguém chamado Hayata, ou algo parecido, transformava-se num super-herói com direito a lâmpada piloto de carga da bateria. A seguir começava a pancadaria - o que restava de Tóquio, após a passagem do monstro, era pisoteada pelos dois durante a briga. Nosso super-herói, após um início bem convincente, começava a apanhar feito Bruce Willis - em algum Duro de Matar -, depois de o monstro ter ativado alguma arma secreta. No auge da surra, começava a piscar a lâmpada-piloto da bateria do nosso, então arriado, sub-herói. Por sorte, os deuses resolviam dar mais uma chance à sua criação e davam uma carga rápida na bateria. Refeito, o agora ultra-herói, lembrava-se da super-arma x-qualquer-coisa, e fulminava o asqueroso monstro com uma saraivada de raios fumacentos. Após entregar uma flor à menina órfã, cuja vida estava em risco, lançava-se em vôo, com direito a nova musiquinha infantil. Pérolas do behaviorismo piegas. Ivan Pavlov, John Watson e Burruhs Skinner (não confundir com o diretor Seymour Skinner, dos Simpsons), expoentes da teoria comportamental, bateriam palmas alucinadamente. Ali não eram necessárias medalhas, bastava um olhar triunfante e uma reverência formal. Monstros japoneses à parte, a mitologia grega oferece um variado cardápio de monstros, como Hércules, filho de Zeus, pôde comprovar na prática. Na Europa, um dos monstros preferidos é o Monstro do Lago Ness, talvez pela longevidade, talvez por resistir aos ataques tecnológicos. A primeira aparição do Nessie, como foi apelidado, remonta a 565 DC, seguindo-se outras ao longo dos séculos, algumas supostamente documentadas. Como o lago, localizado no norte da Escócia, é razoavelmente grande, e profundo, as tentativas de localizá-lo, através de sonar, estenderam-se durante anos. Quando a lenda ameaçava desmoronar, pela falta de resultados positivos na busca, descobriu-se uma grande caverna próxima ao fundo do lago. Pronto, Nessie pode esconder-se lá dos bisbilhoteiros e paparazzis.
Lembrei-me de tudo isso após o jantar de sábado passado, ao visitar parentes na cidade de Espumoso. Constou do cardápio uma fabulosa sopa de capeleti, com direito a carne lessa, seguida de um galeto – não ao primo, mas ao supremo canto – acompanhado de massa caseira, preparados magistralmente pelo meu cunhado. Diz-se lá que o segredo da massa caseira é fazê-la com os ovos de fora – de colônia, bem entendido. Durante a sopa, um dos convivas lembrou dos relatos a respeito de um estranho ser que habitaria as proximidades de uma ilha do Rio Jacuí – Ilha do Pançudo. Durante os meses de verão o Minhocão do Pançudo, como é conhecido por lá, chegaria próximo à cidade. Curioso, e impressionado com o inusitado apelido do monstro, puxei o assunto e conversei com diversas pessoas. Os relatos mais antigos antecedem a própria criação do Município de Espumoso. Teria o formato de uma cobra, ou minhoca, de dimensões fantásticas, como as de um poste de eletrificação. Há relatos de pescadores que fugiram apavorados das proximidades da ilha. Cães, e outros animais, teriam sumido durante as aparições do Minhocão do Pançudo. Uma senhora, ponderada, surgiu com uma explicação bastante razoável para a existência da lenda. Quando era criança, não havia piscina em clube. O programa de férias de verão era tomar banho de rio, no Jacuí. Como o rio apresentava uma série de perigos aos banhistas incautos, especialmente às crianças, algum pai teria inventado a lenda do Minhocão do Pançudo, para mantê-las afastadas dos locais mais perigosos, casualmente aqueles freqüentados pelo monstro. Faz sentido, mas tira o encanto. Prefiro acreditar que, assim como Nessie é o monstro do Lago Ness, em Great Glen, nas terras altas escocesas, o Minhocão do Pançudo é o monstro do Jacuí, em Espumoso, nas terras altas gaúchas. Que nenhum dos dois seja encontrado.

Paulo Roberto Heuser

19.5.06

Delenda Carthago!

Dicionário após texto
Delenda Carthago!

Acordei hoje com a lembrança de um sonho muito doido. Nem sempre consigo lembrar direito do que sonhei, tudo se apaga em breves instantes. Esse sonho de hoje foi tão doido que comecei a repassá-lo mentalmente, repetidamente, na tentativa de transferi-lo da memória oculta para a consciência. Corri para o computador, registrando o máximo possível. Quantas vezes tento contar o sonho e me deparo apenas com o esquecimento? Nos sonhos voamos, literalmente, encontramos pessoas há muito ausentes, sentimos alegria, medo e vivemos experiências meio, ou muito, doidas. Ou seja, um sonho é pura ficção! Neste sonho, em especial, dei por mim numa sala com uma imensa mesa redonda e poltronas confortáveis ao seu redor. Conseguia ver e ouvir, mas não conseguia interagir. O nome colocado na placa, em frente ao meu lugar, curiosamente era Conspiratus Teoricus. Iniciava-se ali uma reunião, coordenada pelo cônsul Pleonasmo Vicioso, ladeado pelos cônsules Gerúndio Cólcenter, da pasta de atendimento aos anseios dos plebeus, Xenófilo Beauty, das relações exteriores, e Velhaco Ímprobo, representante sabe lá do quê – só havia o nome na sua placa. Pleonasmo iniciou a reunião, com uma expressão que denotava a gravidade do assunto em pauta: “Com plena certeza, não foi surpresa inesperada o motivo do porquê da convocação desta reunião encontro”, disse Pleonasmo. “O mudo silêncio de Vossas Indecências diz completamente tudo.” O silêncio continuou. “Entrando para dentro do assunto tema, passo a palavra ao nobre cônsul Gerúndio para que faça um relato falado da situação atual em que nos encontramos.” Gerúndio, sem tirar os olhos da mesa falou: “Inicialmente, estaremos fazendo um agradecimento pelas gentis palavras de Vossa Indecência”. Após correr os olhos pela mesa, continuou: “Todos aqui estão sabendo que a honra da casa está sendo manchada, está fazendo meses.” Gerúndio estava se referindo aos escândalos causados pelo recebimento de rendimentos extra-contábeis por parte de alguns membros do Concillium. “Estivemos realizando esforços, em várias frentes, para que possamos estar obtendo êxito em fazer com que os plebeus estejam nos esquecendo.” Após uma pausa para respirar, prosseguiu: “Quando já estávamos conseguindo, com a inestimável ajuda do cônsul Xenófilo, ao qual estarei passando agora a palavra, para relato das atividades que ele esteve desempenhando, a imprensa está nos surpreendendo com a descoberta desse novo escândalo na compra de carroças para enfermos.” Xenófilo desviou o olhar do browser do seu note e, girando sua Montblanc entre os dedos começou, em tom de discurso: “Fellows, ab initio eu gostaria de fazer um report do statu quo se encontra nosso project. Quando ninguém mais agüentava as denúncias da mídia, verdadeira write-off da imagem da casa, conseguimos criar um case envolvendo o Huevo Morallis, (o do pullover fashion) e o Clavius Hughenote.” Orgulhava-se pela autoria dessa idéia. “Everything worked fine, apesar de o Huevo ter levado a coisa a sério e ameaçado um Anschluss das nossas terras vizinhas. O mise-en-scène de turn off o pipeline de estrume, e ficar com os profits da Estrumeira Corp, deu certo. Os magazines, os newspapers e a TV tornaram isso um focal point e esqueceram de nós. O Octopus ficou meio mal, por ter dado um help na eleição do Huevo, e quiseram jogar ovos nele. But, esqueceram do nosso affaire anterior.” Pleonasmo Vicioso agradeceu, com um sinal, e retomou: “Quando o todo completo parecia depor em nosso próprio favor, outra surpresa inesperada. Continuam ainda fazendo denúncias, mantendo o mesmo tom, contra os nobres colegas do Concillium, agora desta vez por fraude ilegal na compra das carroças, alegando monopólio exclusivo. Temos de encarar de frente esse novo perigo ameaçador. Não será criada nova surpresa inesperada se, ao entrar dentro da questão em lide, a casa tenha de aplicar penalidade punitiva em XVI colegas, para manter a mesma aparente imagem, evitando que desça mais para baixo. Aceito sugestões de planos para o futuro. E, por favor, que não saiam para fora desta sala os fatos verídicos.” Seguiu-se um diálogo bem estranho: - pelo meu feeling, só algo bem bombástico pode nos salvar. Fazendo uma copy do speech de Catão, o Antigo, delenda Carthago! - como Cartago, isso não estaria ficando na África? - In absentia, vai Saint Paulus mesmo! Ainda tem um plus no profit, nós vamos blow up a campanha do Ponderado Insosso. O budget é muito baixo, basta fazer um rental de uns TV. Que fique claro apenas que poderá ser nosso last shot, não venham amanhã com novos reports sobre lease de school buses, ou algo like this!” Velhaco Ímprobo nada falou, apenas gravou. Nesse momento, acordei.

Paulo Roberto Heuser

N.A.:
Ab initio: desde o início (latim);
Affaire: negócio, por vezes escuso (francês);
Anschluss: anexação (da Áustria pela Alemanha em 1939) (alemão);
(to) Blow up: explodir (inglês);
Browser: navegador – Internet (inglês);
Budget: orçamento: (inglês);
But: mas (inglês);
Cólcenter: call center (ingrêis, uai);
Concillium: concílio (latim);
Conspiratus Teoricus: teórico da conspiração (língua morta desconhecida);
Copy: cópia (inglês);
Delenda Carthago: Cartago deve ser destruída (latim);
Everything worked fine: tudo funcionou bem (inglês);
Feeling: sentimento – sensação (inglês);
Fellows: colegas, companheiros (inglês);
Focal point: ponto focal (inglês);
In absentia: na falta de (latim);
Last shot: último tiro (inglês);
Like this: como isto (inglês);
Mise-en-scène: simulação (francês);
Montblanc: marca de caneta chiquê (Monte Branco em francês);
Newspapers: jornais (inglês);
Note: notebook – microcomputador portátil (inglês);
Pipeline: duto (inglês);
Plus: mais, adicional (inglês);
Ponderado Insosso: candidato que não decola (politiquês);
Profit: lucro (inglês);
Project: projeto (inglês);
Pullover fashion: pulôver da moda (inglês);
Rental: aluguel (inglês);
Report: relatório (inglês);
School buses: ônibus escolares (inglês);
Speech: fala (inglês);
Statu quo: estado em que (latim);
Turn off: desligar (inglês);
Write-off: liquidação (inglês);

16.5.06

Duas Perdas

Duas Perdas

Perdas são sensações muito pessoais. O que é uma perda para mim pode ser um alívio para outros. Perdas alheias podem nos atingir, mesmo quando não são perdas para nós. A perda do controle, mesmo que momentânea, sobre determinados músculos, causa desconforto àqueles que nos cercam, especialmente em locais pouco ventilados. Sofri duas perdas recentes. Custei a perceber o que havia perdido. Há perdas de caráter eminentemente determinístico, como a do papel higiênico. Terminou, você nota na hora. Outras, mais sutis, não são percebidas de pronto - há a sensação de perda, mas não identificamos logo de quê. Abrindo o jornal, na semana passada, percebi o que eu havia perdido. Falta o ronco de dois motores radiais Pratt & Whitney, de 14 cilindros e 1200 HP, acompanhando a silhueta do velho Dakota – apelido do DC-3. Operado junto ao Aeroclube do Rio Grande do Sul, em vôos de passeio, o avião foi vendido para um fazendeiro de São Paulo. O fato pode ter passado despercebido em meio à crise da Varig e de outras crises, mais terrenas, que assolam o País. A Fênix morreu aqui e renasceu em outro local. Foi uma perda para aqueles que, de alguma forma, estiveram ou estão envolvidos com a aviação, ou gostam do assunto. Impossível explicá-la aos outros.
Minha outra perda, compartilhada apenas com quem anda pela Rua da Praia, tem também, de certa forma, algo a ver com vôos. Os vôos alçados pelo Índio Chiquinha, por sobre aquele caixote cuidadosamente colocado na sua arena de espetáculos. Para os que o conhecem, qualquer descrição é desnecessária. Por outro lado, como explicá-lo para quem nunca o viu? Antes de tentar descrevê-lo, e o seu inusitado espetáculo, cabe traçar um perpendicular - paralelo é impossível, pois não há - com outras performances mambembes que ali ocorrem. O local – Andradas defronte a Praça da Alfândega – assiste às performances de índios (estes não Chiquinhas), contando histórias e estórias, sobre aventuras na selva, aproveitando para vender artigos diversos, como elixires extraídos de cobras que resolvem cálculo renal, impotência sexual e calvície, tudo ao mesmo tempo. Como não há tráfego de veículos, ficamos livres dos caloteiros, aqueles sujeitos que giram calotas nos semáforos. Aparecem também as já batidas estátuas vivas pintadas de prata e os eternos espancadores-de-gato-no-saco, estes ainda reunindo grande público. O que esses espetáculos têm em comum? O público. Quando se faz parte da paisagem, deixa-se de olhá-la. Quem já viu um espancamento de gato no saco, viu todos. Só pára para ver quem nunca viu ou quem não tem absolutamente nada para fazer. Já no caso do Índio Chiquinha, o inusitado faz um público realmente eclético. A impensável cena de um sujeito trajando algo que lembra um macacão tip-top, que não cresceu na mesma razão do usuário, padrão camuflado, em tons de salmão, marias-chiquinhas no cabelo, coturnos pretos e maquiagem de guerreiro, faz com que qualquer um pare para ver. Desde os fãs dos espancadores-de-gato-no-saco até sisudos executivos, todos param para assistir às performances. Não só os trajes, tudo ali é estranhamente cult. A trilha sonora, para o acompanhamento, aparenta ter sido extraída de algum disco de Glenn Miller. Seria digna de uma eletrola hi-fi (pronto, o corretor ortográfico não sabe o que é uma eletrola). Hi-fi não é um drink a base de vodka. Voltando ao acompanhamento, do quê? Da dança, ora. A performance do Índio Chiquinha inclui uma dança peculiar, onde trota e salta como se estivesse percorrendo uma cancha reta com obstáculos, um caixote ou banquinho de madeira. Os saltos e rodopios são sincronizados com o estalido das castanholas que usa nas mãos. O som destas, combinado com Glenn Miller, cria um quadro surrealista de uma cacofonia divertida. Algo como a Marcha Radetsky, de J. Strauss, merecia estar ali. Antes do espetáculo a arena é cuidadosamente medida e delimitada. O espetáculo só inicia quando as contribuições espontâneas atingem o piso de 5 reais. Disso o Índio Chiquinha não abre mão. Há todo um custo de produção. Soube que o Chiquinha anda em turnê nacional, devendo retornar ao sul, em data ainda não determinada. Já foi alvo de entrevistas em grandes jornais. Relatei no presente, sabedor de que, ao contrário do DC-3, ele voltará. O que os dois têm em comum? Ambos beiram os 60 e nos divertem com seus vôos.

Paulo Roberto Heuser

15.5.06

Tuberosas, Grumos e TOC

Tuberosas, Grumos e Transtorno Obsessivo-Compulsivo

De onde viemos e para onde vamos? Por que estamos aqui? São perguntas que todos se fazem, menos eu. Depois que parei de contar postes nas estradas, já que sumiram mesmo, e o número de furos no ralo do box do chuveiro, meu transtorno obsessivo-compulsivo manifestou-se de outra forma. Tento, de forma doentia, resolver questões filosofais como a da mandioca e o aipim. Já observei que os oriundos de algumas regiões, do interior do Estado, chamam a raiz tuberosa, comestível pelos humanos, de mandioca. Já os porto-alegrenses, e os oriundos de outras partes do interior, a chamam de aipim. Inúmeras vezes ouvi a expressão – mandioca é para porco. Como eu não conseguia mais dormir nem me alimentar direito, procurei ajuda, não de um psiquiatra, como seria de se esperar, mas de dicionários e da Internet. No dicionário encontrei referências a ambos, aipim e mandioca, como sendo a mesma coisa, além da macaxeira e todos aqueles outros nomes exóticos. Pensei cá com os meus botões - comecei a contá-los compulsivamente – que estava fácil demais. Na rede, após pesquisas exaustivas, encontrei algo bem interessante no sítio da Embrapa. Segundo o que lá está, aipim é a mandioca mansa, enquanto mandioca é uma designação genérica, englobando também a mandioca brava. A diferença entre as duas, mansa e brava, tem a ver com o teor de ácido cianídrico. Enfim, todo aipim é mandioca e nem toda mandioca é aipim. Armado desta valiosa informação, marotamente esperei pelo dia em que houvesse aipim (ou mandioca?) no bufê do almoço. Almoçava com mais cinco colegas num pequeno restaurante, que havia numa pequena galeria do centro de Porto Alegre. Além da nossa mesa, apenas outra estava ocupada, por uma senhora que parecia alheia ao resto do mundo, concentrada no seu prato. Aguardei pelo momento oportuno, após todos haverem se servido, e lancei o comentário – prefiro a mandioca frita. Reação imediata! Iniciada a polêmica, um colega fulminou quaisquer outros argumentos com a afirmação – mandioca é para porco! A senhora, da outra mesa, tirou os olhos do prato e revidou indignada – se mandioca é para porco, somos todos porcos! Por precaução, a dona do restaurante passou a servir batatas, a partir daquele dia. Resolvida a questão, comecei a contar os botões do controle remoto da TV, da TV a cabo, do telefone sem fio e do celular. Achei que deveria dar um basta naquilo e me dediquei a responder outra questão filosofal – nhoque é feito com batatas? Para a maioria, a resposta é sim. Para uns poucos reacionários, nos quais me incluo, nhoque é feito apenas com farinha. Deixei os controles remotos de lado e me dediquei a esse novo desafio. No restaurante, novas discussões, agora sem aquela senhora, que nunca mais apareceu por lá, talvez ofendida com algum comentário velado sobre outras utilidades do tubérculo que foi alvo da discussão anterior. O restaurante fechou, sinto um certo remorso. Nova ida ao dicionário, de italiano desta vez, para descobrir que gnocchi (nhoque) é o plural de gnoccho. Palmas de golfe para esta descoberta! Ajudou deveras. Mas, o que raios seria um gnoccho? Mais umas pesquisas e descobri que pode ser um grumo (novas palmas de golfe!) ou uma massa. Uma luz finalmente! Massa é feita com farinha de trigo e de sêmola. Até esqueci que os controles remotos existiam. Antes que eu esqueça, tenho um, de um antigo equipamento de som que joguei fora, com 93 botões. Já pensou que delícia? Voltando aos grumos, minha teoria começou a encontrar uma base. Nessa época encontrei um italiano, no supermercado, por mera casualidade, que tentava comprar zafferano (açafrão) para preparar um autêntico risotto allá milanese. Concordei em ajudá-lo a encontrar o que procurava, desde que, ele me respondesse à questão filosofal do momento. Encontrado o açafrão, obtive a seguinte resposta: - o nhoque leva batata quando é de batatas (aplausos entusiásticos de golfe). Comecei a contar latas de mostarda. Voltei à rede e, após dois anos de exaustivas pesquisas, concluí que o nhoque leva batatas quando é de batatas! Antes de começar a contar rodas de veículos – não basta contá-los e multiplicar o resultado por 4 – descobri uma nova questão filosofal: qual é a diferença que há entre anholine (agnolotti), cappelletti e tortellini? Tenho medo de que outro restaurante feche as portas, por minha causa. Penso nisto enquanto caminho, procurando não pisar nos rejuntes.

Paulo Roberto Heuser

13.5.06

O Goleiro Chinês e O Cavalo

O Goleiro Chinês e O Cavalo

Cena 1: Nas peladas de futebol, que jogávamos no quintal da casa dos meus pais, havia desafios além daqueles normais ao jogo. Um era não destruir as traves – as roseiras da minha mãe. Outro, apenas para os vizinhos, era meu cão da raça Dachshund (salsicha), que defendia heroicamente a bola, literalmente com os dentes, mordendo as canelas de quem tentasse chutá-la. Duplo drible, cão e jogador. Com o tempo, o pessoal se acostumou a chutar e saltar em seguida. A mesma sorte não teve um cão perdigueiro invadindo o quintal. Após aquelas cheiradas mútuas, para reconhecimento, o Dachshund resolveu defender seu território e mordeu a parte do perdigueiro que estava mais à mão, ou melhor, à boca, convenientemente dependurada no meio das patas traseiras. Os ganidos somente se desvaneceram quando o perdigueiro virou numa esquina, a umas oito quadras de distância. Versão canina de Davi e Golias. No meio de uma dessas peladas ouvimos palmas ao portão, campainha da época. Para o espanto dos atletas, lá estava um enorme e sorridente chinês, de terno e gravata, carregando uma mala digna de uma viagem transatlântica. Dupla surpresa. Primeira, não havia chineses em Santa Cruz do Sul, na época. Até então ninguém, dos que lá estavam, havia visto um ao vivo. Segunda, Ninguém vestia terno e gravata, em pleno dia, a não ser em julgamentos ou no próprio enterro. O chinês, perguntou pela nossa mãe. Como ela saíra, pediu para aguardar. Ao ver a pelada (o jogo, né), ofereceu-se como goleiro. Tirou o paletó, arregaçou as mangas e jogou por mais de duas horas. E não pisou nas traves, talvez pelo medo de rasgar as calças nos espinhos. Vencemos todas naquela tarde. Com o cão e o chinês, fechando a goleira. Quando minha mãe chegou, foi obrigada a comprar um jogo de lençóis. Era o que o chinês vendia. Fez por merecer a venda, pelo esforço. Foi o primeiro mascate do qual me lembro. Camelô nessa época era o reino onde Guinevere pôs chifres em Arthur. Todo comércio era feito em lojas e mercados. Em compensação, leite e pão eram entregues em casa. Cena 2: A criança está sentada na cama jogando Violador de Tumbas 3, via rede, com seus amigos desconhecidos. Grita para que a mãe ligue para uma tele-entrega de pizzas enquanto, com um dos olhos, acompanha mais um capítulo de O Pavoroso Vilipendiador, desenho animado infantil. No micro, baixa alguns mp3, sem tirar um dos olhos, que não sobrou, do MSN. A mão que não está usando o controle cria torpedos no celular. No ouvido esquerdo, o fone do celular, no ouvido direito, o fone do tocador de mp3. Os polvos causam inveja, conseguem operar oito dispositivos, de uma só vez. Afinal, faltou mão para o controle remoto da TV. Da cozinha vem o grito – não tens de ler um livro para a aula de literatura? – já li o resumo no sítio www.substituaomestre.org ! (Deu 404? Ahá, você tentou!) – manhêêê, é verdade que existiam lojas, fora dos shoppings, que vendiam as coisas, como se fossem camelôs parados dentro de prédios? O que aconteceu com elas? – os camelôs vendiam e as lojas pagavam os impostos, daí elas quebraram. – é verdade também que dava para caminhar nas calçadas? – dava filho, antes dos camelôs. Estes viraram heróis quando as tropas da liga bolivariana tentaram invadir Porto Alegre, após confundir o bairro Rio Branco com a capital do Acre. Entraram triunfalmente, pela Alberto Bins, tentando passar pela Otávio Rocha, José Montaury e Praça XV, para alcançar a Prefeitura. A infantaria foi arrasada pelos autônomos, confundida com fiscais. As lagartas dos tanques não suportaram aquele mar de pilhas paraguaias, capas de celular e tralhas chinesas, agindo como areia movediça. Atolados, tiveram seus canhões arrancados e vendidos como sucata, na Voluntários. Os veículos leves de assalto acabaram colidindo com carroças e foram depenados em desmanches. Os bolivarianos sobreviventes, atônitos e dispersos pela cidade, acabaram se tornando camelôs e vendendo CDs de flautistas peruanos tocando o Tema de Lara. O que conseguiu voltar levou um cavalo.

Paulo Roberto Heuser

11.5.06

Gases e Klingons

Gases e Klingons

Tive dificuldade para dormir na noite passada. Essa crise Brasil-Bolívia, provocada pelo Presidente do Pulôver, me tirou o sono. Havia visto a foto do tal Ministro dos Hidrocarbonetos, estampada no jornal. Finalmente encontraram o tão procurado elo perdido entre o Monstro Da Lagoa Negra e os Klingons. Mas, como não sou tão impressionável, percebi que algo mais me incomodava, além da estampa do ministro. Não tenho carro movido a GNV, o gás que utilizo em casa não é gás natural e o clube já declarou que pode voltar a usar GLP. Está certo que essa crise vai respingar em todo mundo, mas por que eu não conseguia dormir? Aí pelas 03:30 da manhã, subitamente, percebi o que me incomodava tanto. Era o nome do ministério, ou melhor, o que este nome implica. Ministério dos Hidrocarbonetos soa mal e cheira ainda pior. E aí pode residir todo o problema. Sabe aquele sexto sentido, uma coisa lá nu fundo, dizendo que há algo errado, apesar de não sabermos exatamente o quê? Lembro, das aulas de química orgânica, que o metano é um hidrocarboneto. Ah, agora você, que na infância riscou fósforo para ver a explosão do pum, começou a entender onde quero chegar. Se já ficou com medo espere, pois a coisa pode piorar muito. Como o sono já se fora mesmo, levantei da cama, liguei o computador e resolvi procurar algo na legislação boliviana. E se artigo 139º da Constituição Boliviana é um perigo real e imediato, o artigo 5º de uma norma editada em 17/05/2004 é a soma de todos os medos. Sei que, para muitos, uma análise da legislação é muito chata. Mas, no caso em questão, faz-se necessária, para um perfeito entendimento do porquê da minha insônia. E da sua também, a partir da leitura do resto deste texto. Veja, o art. 139 reza que "As reservas de hidrocarbonetos, qualquer que seja o estado em que se encontrem ou a forma em que se apresentem, são de domínio direto, inalienável, imprescindível do Estado..." (grifos nossos). Agora bateu o medo né? Espere para ver a tal da norma: "...da propriedade de todos os hidrocarbonetos na boca do poço para o Estado boliviano. E o Estado........ seu direito proprietário sobre a totalidade dos hidrocarbonetos" (grifos nossos novamente). Juntando alhos com bugalhos, mais o metano, deu para bater o pavor. Se alguém ainda não entendeu, dê uma olhadinha nas fontes de metano, que é um hidrocarboneto. Achou a parte que fala em subproduto da digestão humana? Lembrou do fósforo riscado para ver o relâmpago do pum? Atentou para a propriedade do Estado? Trocando em miúdos, já que sai deles mesmo, o pum dos bolivianos é propriedade do Estado! E o pior, na boca do poço! Se os brasileiros acham que poderão ser atingidos pela crise do gás, imagine só a situação dos pobres dos bolivianos! Perderam a posse privada dos seus próprios puns! E, se o Presidente do Pulôver, e seu ministro Klingon, resolverem levar a coisa no rigor da lei, e da norma (não é a que mora no 406), a situação dos bolivianos ficará insuportável. Imagine o constrangimento imposto para garantir a propriedade na boca do poço! Inventarão algum tipo de dispositivo para acoplamento ao "poço", disponível para uso em locais públicos? E o risco de explosão? Como o populismo corre solto, na nossa querida América do Sul, podemos imaginar desfiles de caminhões-tanque, frente a milhares de pessoas de chapéu coco, agitando bandeirinhas e gritando, cheias de ufanismo: - O flato é nosso! E o governo boliviano poderá aumentar a produção incentivando o povo a comer mais cebolas, repolho, batatas e feijão. Algo nisso tudo, sem dúvida, não cheira bem. Pensando melhor, é um problema dos bolivianos, não é? Ledo engano, viu a foto dos 4 presidentes numa tríplice fronteira? Poderá estar nascendo ali o MCM – Mercado Comum do Metano. Aí vai sobrar para nós. Teremos nosso próprio Ministério do Pum? Percebeu que o Uruguai está cascando fora do Mercosul? Querem preservar sua intimidade e o direito universal ao pum privado. Certos eles.

Paulo Roberto Heuser

10.5.06

Dia Das Mamães, A Releitura

Dia Das Mamães, A Releitura

Prometi, a mim mesmo, que nunca escreveria sobre o Dia das Mães. É um assunto óbvio demais. O que ainda há para se escrever sobre o Dia das Mães? Hoje, no entanto, um sobrinho me pegou no contra-pé, apelando para o lado sentimental, me convenceu a escrever sobre o óbvio. Como fazê-lo de forma a não ser tão óbvio, nem cair muito no piegas? Os que não acreditam mais no Ancião da Lapônia, nem que Oryctolagus Cuniculus (coelho mesmo) põe ovos, sabem que essas efemérides são oportunidades para vender, desde telefones celulares até eixos cardã de caminhões. É lógico, e justo, que as crianças preparem presentes artesanais e homenagens às mães ou àquelas que, de alguma forma as substituíram, ou tentaram honestamente. Papai sai com os filhos, vai ao shopping, no sábado à tardinha, para comprar o tão sonhado (por ele) esmeril com sete velocidades. Imaginem a cara de surpresa da mamãe ao recebê-lo! No domingo, entregues os mimos e rendidas as homenagens, chega a hora do tão esperado almoço do Dia das Mães. Obviamente mamãe não vai cozinhar ou lavar a louça. Aí vem todas aquelas histórias de restaurantes com fila até a esquina, da oooutra quadra; garçons e garçonetes à beira de um ataque de nervos; papai e vovô começam a tomar uns aperitivos, além da conta, enquanto esperam; o galeto terminou e vão servir uns bifes grelhados, de músculo de dianteiro; a massa terminou e vai arroz no lugar; o único refrigerante que restou é Grude-Cola Light quente, etc, etc. Ao sair, lá pelas 19 horas, descobre-se que o sujeito que levou o carro não era um manobrista, e assim por diante. Nada de novo. São essas coisinhas que tornam único o ato de almoçar fora no Dia das Mães. Existem formas (eu não deveria divulgá-las, já que posso utilizá-las no futuro) de conseguir almoçar fora no Dia das Mães, sem todo esse sofrimento. A primeira, bastante simples, consiste em anunciar que, neste ano, teremos um brunch do Dia das Mães. Trata-se de uma mistura de café da manhã com almoço, coisa muito chique, inventada por alguém que queria reduzir o custo retirando uma das refeições. Como os hotéis geralmente servem o café da manhã até mais tarde – até às 10 horas, nas manhãs de domingo, marque o branch, num deles, para às 9h50. Chegando antes das 10 horas ninguém será expulso antes das 11h30. Peça ao papai e ao vovô para tomar os aperitivos ainda em casa, no brunch fica estranho. Se mamãe for bem saudável, sem problemas com varizes, sempre é possível deixá-la na fila de um restaurante, a partir das 9 horas. Depois, a medida que o pessoal for acordando, segue para o restaurante e presta as homenagens lá mesmo. Não esqueça de dar o celular antes, ensinando como usá-lo, assim poderá avisar quando chegar a vez. Pesquise nos jornais se há alguma festa de bodas de ouro, ou festa de encontro da família Fulano, programadas para esse dia. Se aparecer alguma, leve a mamãe e a família, e entre como penetra. Festas de encontro de famílias são as mais indicadas, há muitas pessoas que não se conhecem. Sorria sempre e, se questionado, diga que é dos Fulano de Urucurituba , AM. Ainda é possível dançar e conhecer um monte de gente interessante. Só não deixe o vovô fazer discursos. Na impossibilidade de utilizar qualquer um destes métodos, use a imaginação e ouse, nesse dia vale tudo, só não vale deixar de almoçar fora.

Pronto, escrevi!

Paulo Roberto Heuser

8.5.06

A Difícil Arte de Caminhar (no Parcão)

A Difícil Arte de Caminhar (no Parcão)

Caminhar nos parques e clubes é meio monótono. Caminhando na rua dispenso o carro, saio, e volto, a pé. Após uns 25 minutos de caminhada alcanço o Parcão, onde dou duas voltas, no lado oposto ao herbário (o que, só você não sabia?). Duas voltas, não mais. Por quê? Bom, faz muito, observei um fenômeno estranho: os freqüentadores do parque andam, em círculos, sempre no sentido anti-horário. Já tentei descobrir, em vão, o porquê de andarem no sentido anti-horário. Talvez sejam movidos por um impulso vindo do inconsciente. Ou talvez seja uma forma subliminar de confrontar o relógio que os escraviza. Noutro dia, por pirraça mesmo, minhas filhas e eu resolvemos contrariar a norma internalizada e caminhar no sentido horário. A reação foi imediata e surpreendente. Arrancados momentaneamente do transe, na primeira volta, os normais nos encararam com um olhar de espanto, de quem pensa – como, é possível caminhar em outro sentido? Na segunda volta nos encararam com um olhar de censura. Na terceira, ouvimos, de uma jovem calçando tênis vermelhos de 36 molas, o comentário – só podem ter vindo da Redenção! Na quarta volta fomos expulsos do parque e orientados a procurar o Marinha, pois lá imperaria a desordem mesmo. A partir daí, cada vez que saímos para caminhar, continuamos a percorrer o Parcão, no sentido horário, apenas duas voltas, por precaução. No sábado passado, os atendentes de um nosocômio (que nojo de palavra) psiquiátrico, instigados pelos normais, tentaram nos convencer a sentar, a sombra de um gazebo, para uma avaliação gratuita. Conseguimos fugir para a rua, nosso refúgio. A propósito das molas, estas são um indicador socioeconômico (continua a gana de colocar um hífen aí no meio) importante no Parcão. Quanto mais molas no tênis, maior o status do indivíduo. Existe uma fórmula para cálculo do prestígio social, em função do número de molas do tênis: (Prestígio Social = 1/2 K * X2 ), onde K é o número de molas e X o número de voltas no parque, para exibir as molas. Um tal de Hook ficou famoso com isso. Já na rua, quanto mais molas há no tênis, mais visado é o indivíduo, pois a probabilidade de assalto cresce com o número delas. A fórmula anterior serve para calcular o índice de atratividade para ladrões, trocando o X pela distância percorrida. Já reparou que as seguradoras adicionaram um item nos formulários, para análise de risco, que pergunta se você anda com tênis de molas? Se praticar pára-quedismo, usando tênis com molas, esqueça o seguro. Calma, você que gosta de sair de casa caminhando, como eu, e acaba dando uma voltinha no Parcão, já conta com uma inovação tecnológica – tênis com sola destacável. Você sai de casa com um tênis chumbrega, levando a sola com molas disfarçada num porta-absorventes, bem discreto. Passa incólume pelos bandos de adoradores de molas e, ao chegar no parque, engata a sola com molas. Chazzzaaaannnn!!! Um mísero mortal se transforma num ícone social. Se for de carro, cuidado! Os flanelinhas mudam o tratamento, de Doutor para Divindade, e o preço, passam a cobrar o dobro. Aí vai uma dica para quem vai de carro e quer economizar na propina: faça como a Mulher Maravilha e entre numa moita para engatar a sola com molas. Evite cabines telefônicas, além de raras, são utilizadas para outros fins, por indivíduos fisiologicamente premidos. Quem prefere caminhar nas ruas enfrenta outro problema: é necessário atravessá-las. Motoboys (serão moto-contínuos?) acreditam piamente que a menor distância entre dois pontos é uma reta. Reta que pode cortar ruas, calçadas, quintais, praças, prédios, você e até mesmo os ônibus, como tem sido comprovado em inúmeros acidentes. Ciclistas também representam ameaça, tanto nas calçadas como nos parques. Na Avenida Goethe uma ciclovia passa sobre a calçada. E, acredite se quiser, há um poste estaiado – com aqueles arames de sustentação - exatamente no meio da ciclovia. Diz-se que, do primeiro poste ninguém se esquece. Programa de domingo, para sádicos, é sentar a uma das mesinhas, dos bares que ali existem, e tomar um café, enquanto assiste ao confronto homem-poste. Verdadeira tragic happy hour – hora feliz trágica. Apesar da pressão social, continuamos caminhando no sentido horário. Duas voltas apenas. Afinal, sinistros são os outros!


Paulo Roberto Heuser

5.5.06

Não Verás Brasil, País Para Nenhum Principiante

Publicada na Gazeta do Sul, coluna Opinião, de Santa Cruz do Sul em 10/05/06

http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=53588&intIdEdicao=845

Publicada no sítio do Sinepe-rs

http://www.sinepe-rs.org.br/portal/index.php?session=114&displaylang=pt_br&f_id_artigo=62&f_action=view

Não Verás Brasil, País Para Nenhum Principiante

Minha filha mais nova chegou em casa mostrando sua nova conquista – um título eleitoral zero quilômetro. Pegou o T-5, encarou a fila no TRE e saiu de lá habilitada a escolher, na proporção do seu voto, o futuro do Brasil Após cumprimentá-la, por mais um passo dado em direção ao exercício da cidadania, afundei na poltrona, talvez por esta estar velha e eu gordo, talvez pelo peso resultante do desequilíbrio entre os deveres e direitos que compõe a cidadania. Fiquei tentado a lhe dar dois livros para ler. O primeiro, de fácil e gostosa leitura, é Brasil Para Principiantes (1961), de Peter Kellemen. Este, lí na minha adolescência. Trata-se de uma visão cômica do Brasil daquela época, escrita por um jornalista estrangeiro, morando no Rio de Janeiro, então capital do País. Numa passagem especialmente divertida, a respeito da dificuldade de tomar um trem da Central, ele narra que os americanos teriam treinado suas tropas, para a Invasão da Normandia, fazendo com que tentassem embarcar na hora de pico. Retrata, em forma de crônicas, um Brasil de contrastes, como o de hoje, mas sem apresentar de forma tão evidente o resultado da segunda pior distribuição de renda do planeta. Está bem, estou sendo injusto. A pesquisa só considerou 130 países. Quem sabe Burkina Faso não é bem pior? Serra Leoa que se cuide, chegaremos lá! Voltando ao livro, percebemos que muito do que lá está, aqui continua. O outro livro faz com que clássicos de Hermann Hesse, ou Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque, pareçam contos dos Irmãos Grimm. É o livro de leitura mais pesada, angustiante e sufocante que já li: Não Verás País Nenhum (1982), de Ignácio de Loyola Brandão. De cabo a rabo envolve o leitor numa trama de ficção, passada num Brasil futuro, que não tem futuro, seja nos aspectos ambientais como nos socioeconômicos (agora é moda escrever essa monstruosidade sem hífen). Aparentemente tentamos desesperadamente tornar realidade aquela ficção. Lembro bem do Milagre Brasileiro, até 1970, creio eu. A partir daí começamos a descer a ladeira, numa interminável sucessão de tombos, nos levantando apenas para cair um tombo maior. Parece o pesadelo do buraco sem fundo. Aí por 1972, ouvíamos o ministro da fazenda, ou qualquer coisa parecida, afirmando que este seria um ano difícil, mas o próximo seria de retomada. Estamos em 2006, a retomada ainda não ocorreu, o ministro ainda não morreu. Continuamos descendo a ladeira – próxima parada: Serra Leoa. Talvez passaremos, sem parar na próxima estação, céleres rumo a Burkina Faso. Tento apagar a imagem do povo na rua, empunhando estandartes diversos, eufórico, quando da morte de Tancredo, a Constituinte de 88, toda aquela gente jogando papel picado para cima enquanto sapateava sobre nossa cabeça, cara-pintadas, caçadores de marajás, saque da nossa grana (o marajá era eu?), caçadores de caçadores de marajás, onde isso vai parar? Democracia finalmente. Oba! O poder emana do povo e todos roubam, mas como são todos, não é roubo, vício contábil talvez. Sim, tomaremos enérgicas medidas contra os dois que, feito galos de rinha, ousaram transformar pequenos e insignificantes vícios contábeis num escândalo sem precedentes. A ética tem de acompanhar os novos tempos, uns ajustes a cada 15 minutos tornam tudo ético, sob a nova ética. Sonegar virou aproveitar oportunidade de minimização da despesa fiscal. Criar novos impostos virou forma de distribuir renda, a da classe média. Depois que se descobriu que é possível vender às classes D e E, em 97 prestações, hipotecando a aposentadoria do vovô, ou a pensão da vovó, a classe média virou supérflua. Ainda por cima perigosa, afinal a burguesia tem a péssima mania de iniciar revoluções. Luiz XVI que o diga. Será que ninguém percebe que os filhos desta Mãe Gentil estão, quando o podem, emigrando para outras mães, talvez mais gentis? Abro o jornal, na tentativa de afugentar velhos fantasmas. Deparo com uma foto do rei morto, amparado pela rainha. Bem, olhando melhor, parece mais um candidato a candidato decretando a morte da própria candidatura.

Vá minha filha, vote, vote com razão, vote com o coração, és a esperança de que este buraco tenha finalmente um fim.

Paulo Roberto Heuser

Penúltimo Caudilho

Publicada na coluna do Paulo Sant'ana da Zero Hora de 04/05/06


Penúltimo Caudilho

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Após 30 anos trabalhando ao lado da Praça da Alfândega, posso afirmar que já conheço alguns dos curiosos personagens que a habitam. Na verdade, a praça se divide em vários ecossistemas distintos e autônomos. A parte próxima da esquina da General Câmara com a Andradas é habitada por seres estranhos que dormem sentados nos bancos, geralmente aos pares. Se a ante-sala do Purgatório existir, é ali. Rostos sem expressão, olhar no infinito, roupas esfarrapadas, molhados pela chuva, ficam ali aguardando sabe lá Deus o quê. Não pedem esmolas, sequer tomam conhecimento do mundo que os cerca. No dia seguinte, apenas não estão mais lá. Seguindo pela Andradas, em direção ao rio, passando pelos aposentados, ao chegar no meio da praça encontramos a muito baixa prostituição. No outro extremo, próximo do MARGS, ficam as prostitutas VIP do lugar. Há uma, a 14 minutos, cujo apelido foi atribuído pelos demais habitantes da praça, tempo necessário e suficiente para conquistar um freguês, levá-lo ao hotel na Siqueira, fazer o programa e retornar ao ponto. Um verdadeiro prodígio. Um dos raros exemplos de linha de produção de uma só pessoa. Ao lado da CEF, junto aos engraxates-de-cadeira, ocorrem emocionantes jogos de damas, com inúmeros perus ao redor, criticando cada jogada. Mais chato que peru-de-damas só mesmo o peru-de-xadrez . Você levou horas para bolar uma estratégia fantástica, oferecendo peças para atrair o inimigo a uma armadilha, quando algum peru solta um – ahhhhh! Pronto, lá se foi todo seu jogo. Ao lado do Banrisul, entre bancários lagarteando, circulam os engraxates independentes. Nos bancos, defronte ao Banco, aparecia uma figura ímpar, o Penúltimo Caudilho. Com a morte do ex-governador Leonel Brizola, deveria ter sido promovido a último caudilho. Mas, ficou Penúltimo mesmo. Vendia Coca-Cola, completamente pilchado, à moda dos farrapos, boina de veterano, empurrando um carrinho vermelho em forma da lata do refrigerante, emoldurado pelo Pavilhão do Rio Grande. Impossível maior anacronismo. Um ícone da Revolução Farroupilha a serviço de um ícone do capitalismo. Não sei o que houve com o carrinho. Nas últimas vezes que o ví, Penúltimo andava pela praça, armado de um megafone, gritando palavras de ordem de uma revolução, passada ou futura, ninguém o entende mesmo. Só pára quando terminam as baterias ou quando o peso destas se faz sentir. Na parte central da praça, no lado da General Câmara, concentram-se os pregadores de seitas que libertam as almas, do pecado, mediante golpes de bíblia na cabeça. O eventual pecador pensará duas vezes antes de pecar novamente ou, pelo menos, de procurar o perdão. É a dor de cabeça da remissão. Sem dúvida, o personagem mais folclórico da praça é o Agro-Hippie, que aparece a cada seis meses. Sujeito de uns 60 e poucos anos, esguio, pele e olhos claros, vestindo um conjunto de veludo cotelê azul marinho, com boné, à la Jovem Guarda – coisa dos anos 60. Lembra da grife Calhambeque? Pois bem, o dito senhor, com um indefectível sotaque carioca, anuncia: - "Com lixenxa, xou um agricultoh do interioh, vim comprah xementix na xidadi e fui axaltado". A seguir relata um assalto, do qual teria sido vítima, na Rua da Conceição, retira o boné e mostra um curativo no meio da calva. O próximo passo é pedir ajuda para poder "voltah ao interioh". Até agora ninguém perguntou onde fica o tal "interioh". Talvez em Bom Jesus do Itabapoana ou Paty dos Alferes. O mais incrível é que funciona. Sempre tem alguém para dar alguma coisa. No prolongamento da Sete de Setembro, próximo à Caldas Júnior, trabalha um rapaz que se joga na calçada, enquanto solta uivos de causar inveja ao Cão dos Baskerville. Chora, geme e se contorce durante horas. Feita a féria, se levanta de estalo, sacode a poeira da roupa e vai embora. Já o mictório público é um mistério. Após um canteiro, que o circunda, denominado horizonte de eventos, nada se sabe. Como num buraco negro, do que alí entra, nada sai.

Percebi agora que, por ter conseguido identificar os personagens, provavelmente sou um deles. Hoje, por sinal, fui abordado por um mendigo que propôs: - vamos direto ao assunto, pois ninguém aqui é marinheiro de primeira viagem...

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Paulo Roberto Heuser