6.4.11

584 - Quinhentos degraus


Quinhentos degraus

Paulo Heuser

Nenhum degrau é igual a outro. Uns são mais altos, outros mais curtos. Os quinhentos degraus que levam à torre mais alta do castelo parecem infinitos, impressão reforçada pelo vento gélido da tarde de inverno. Há muito vento, que corta as partes descobertas do rosto. O fôlego se vai, e a respiração se torna cada vez mais audível. A única coisa que conforta é a vista. O degrau 337 rouba o resto do fôlego e cobra uma pausa. A amurada oferece abrigo, apoio e permite pensar no que há, afinal, por trás das guerras. Cristãos e mouros derramaram sangue sobre esses degraus, ora uns, ora outros, desde o século VIII. Fiéis enfrentam os hereges e estes os infiéis, e qualquer combinação disso, o que se repete ao longo dos milênios. O problema seria religioso, portanto. Crentes em deuses distintos, ou no mesmo, com nomes distintos, digladiam-se em nome das religiões. Faria todo o sentido, se não fosse o dinheiro, que pode assumir a forma líqüida.
O mundo ocidental tornou-se cada vez mais dependente do precioso produto cuja produção está na mão de poucos, muito poucos. A religião é apenas a desculpa para as guerras. As nações deixam de exercer o poder e tornam-se apenas fachadas para as corporações que exploram o ouro líqüido. Hoje, o sangue derramado nesses degraus seria outro. A verdadeira guerra se trava nos mercados, e as fronteiras físicas deixaram de ter importância. O cartel patrocina toda espécie de eventos, sejam eles esportivos, culturais ou bélicos. Por que Bismarck adulterou o texto do telegrama de Ems e deu origem à Guerra Franco-Prussiana? Por que Hitler invadiu a Polônia, França, Itália e a Rússia? Voltando no tempo, o que levou às Cruzadas? Por que perseguiram aquele grupo dos treze que partilhavam o pão e o vinho? O líqüido. Ele está por trás de tudo.
Refeito o fôlego, hora de enfrentar os 163 degraus restantes. As guerras de hoje não mancham mais de sangue os degraus das escadas que levam à Torre Real do castelo dos Mouros de Sintra. A luta agora se trava nas terras dos mouros. Afinal, eles afrontam o cartel do ouro líqüido, pois não bebem cerveja.

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