5.5.06

Penúltimo Caudilho

Publicada na coluna do Paulo Sant'ana da Zero Hora de 04/05/06


Penúltimo Caudilho

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Após 30 anos trabalhando ao lado da Praça da Alfândega, posso afirmar que já conheço alguns dos curiosos personagens que a habitam. Na verdade, a praça se divide em vários ecossistemas distintos e autônomos. A parte próxima da esquina da General Câmara com a Andradas é habitada por seres estranhos que dormem sentados nos bancos, geralmente aos pares. Se a ante-sala do Purgatório existir, é ali. Rostos sem expressão, olhar no infinito, roupas esfarrapadas, molhados pela chuva, ficam ali aguardando sabe lá Deus o quê. Não pedem esmolas, sequer tomam conhecimento do mundo que os cerca. No dia seguinte, apenas não estão mais lá. Seguindo pela Andradas, em direção ao rio, passando pelos aposentados, ao chegar no meio da praça encontramos a muito baixa prostituição. No outro extremo, próximo do MARGS, ficam as prostitutas VIP do lugar. Há uma, a 14 minutos, cujo apelido foi atribuído pelos demais habitantes da praça, tempo necessário e suficiente para conquistar um freguês, levá-lo ao hotel na Siqueira, fazer o programa e retornar ao ponto. Um verdadeiro prodígio. Um dos raros exemplos de linha de produção de uma só pessoa. Ao lado da CEF, junto aos engraxates-de-cadeira, ocorrem emocionantes jogos de damas, com inúmeros perus ao redor, criticando cada jogada. Mais chato que peru-de-damas só mesmo o peru-de-xadrez . Você levou horas para bolar uma estratégia fantástica, oferecendo peças para atrair o inimigo a uma armadilha, quando algum peru solta um – ahhhhh! Pronto, lá se foi todo seu jogo. Ao lado do Banrisul, entre bancários lagarteando, circulam os engraxates independentes. Nos bancos, defronte ao Banco, aparecia uma figura ímpar, o Penúltimo Caudilho. Com a morte do ex-governador Leonel Brizola, deveria ter sido promovido a último caudilho. Mas, ficou Penúltimo mesmo. Vendia Coca-Cola, completamente pilchado, à moda dos farrapos, boina de veterano, empurrando um carrinho vermelho em forma da lata do refrigerante, emoldurado pelo Pavilhão do Rio Grande. Impossível maior anacronismo. Um ícone da Revolução Farroupilha a serviço de um ícone do capitalismo. Não sei o que houve com o carrinho. Nas últimas vezes que o ví, Penúltimo andava pela praça, armado de um megafone, gritando palavras de ordem de uma revolução, passada ou futura, ninguém o entende mesmo. Só pára quando terminam as baterias ou quando o peso destas se faz sentir. Na parte central da praça, no lado da General Câmara, concentram-se os pregadores de seitas que libertam as almas, do pecado, mediante golpes de bíblia na cabeça. O eventual pecador pensará duas vezes antes de pecar novamente ou, pelo menos, de procurar o perdão. É a dor de cabeça da remissão. Sem dúvida, o personagem mais folclórico da praça é o Agro-Hippie, que aparece a cada seis meses. Sujeito de uns 60 e poucos anos, esguio, pele e olhos claros, vestindo um conjunto de veludo cotelê azul marinho, com boné, à la Jovem Guarda – coisa dos anos 60. Lembra da grife Calhambeque? Pois bem, o dito senhor, com um indefectível sotaque carioca, anuncia: - "Com lixenxa, xou um agricultoh do interioh, vim comprah xementix na xidadi e fui axaltado". A seguir relata um assalto, do qual teria sido vítima, na Rua da Conceição, retira o boné e mostra um curativo no meio da calva. O próximo passo é pedir ajuda para poder "voltah ao interioh". Até agora ninguém perguntou onde fica o tal "interioh". Talvez em Bom Jesus do Itabapoana ou Paty dos Alferes. O mais incrível é que funciona. Sempre tem alguém para dar alguma coisa. No prolongamento da Sete de Setembro, próximo à Caldas Júnior, trabalha um rapaz que se joga na calçada, enquanto solta uivos de causar inveja ao Cão dos Baskerville. Chora, geme e se contorce durante horas. Feita a féria, se levanta de estalo, sacode a poeira da roupa e vai embora. Já o mictório público é um mistério. Após um canteiro, que o circunda, denominado horizonte de eventos, nada se sabe. Como num buraco negro, do que alí entra, nada sai.

Percebi agora que, por ter conseguido identificar os personagens, provavelmente sou um deles. Hoje, por sinal, fui abordado por um mendigo que propôs: - vamos direto ao assunto, pois ninguém aqui é marinheiro de primeira viagem...

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Paulo Roberto Heuser

3 Comments:

At terça-feira, 18 julho, 2006, Anonymous Anônimo said...

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At quinta-feira, 20 julho, 2006, Anonymous Anônimo said...

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At quarta-feira, 09 agosto, 2006, Anonymous Anônimo said...

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