13.5.06

O Goleiro Chinês e O Cavalo

O Goleiro Chinês e O Cavalo

Cena 1: Nas peladas de futebol, que jogávamos no quintal da casa dos meus pais, havia desafios além daqueles normais ao jogo. Um era não destruir as traves – as roseiras da minha mãe. Outro, apenas para os vizinhos, era meu cão da raça Dachshund (salsicha), que defendia heroicamente a bola, literalmente com os dentes, mordendo as canelas de quem tentasse chutá-la. Duplo drible, cão e jogador. Com o tempo, o pessoal se acostumou a chutar e saltar em seguida. A mesma sorte não teve um cão perdigueiro invadindo o quintal. Após aquelas cheiradas mútuas, para reconhecimento, o Dachshund resolveu defender seu território e mordeu a parte do perdigueiro que estava mais à mão, ou melhor, à boca, convenientemente dependurada no meio das patas traseiras. Os ganidos somente se desvaneceram quando o perdigueiro virou numa esquina, a umas oito quadras de distância. Versão canina de Davi e Golias. No meio de uma dessas peladas ouvimos palmas ao portão, campainha da época. Para o espanto dos atletas, lá estava um enorme e sorridente chinês, de terno e gravata, carregando uma mala digna de uma viagem transatlântica. Dupla surpresa. Primeira, não havia chineses em Santa Cruz do Sul, na época. Até então ninguém, dos que lá estavam, havia visto um ao vivo. Segunda, Ninguém vestia terno e gravata, em pleno dia, a não ser em julgamentos ou no próprio enterro. O chinês, perguntou pela nossa mãe. Como ela saíra, pediu para aguardar. Ao ver a pelada (o jogo, né), ofereceu-se como goleiro. Tirou o paletó, arregaçou as mangas e jogou por mais de duas horas. E não pisou nas traves, talvez pelo medo de rasgar as calças nos espinhos. Vencemos todas naquela tarde. Com o cão e o chinês, fechando a goleira. Quando minha mãe chegou, foi obrigada a comprar um jogo de lençóis. Era o que o chinês vendia. Fez por merecer a venda, pelo esforço. Foi o primeiro mascate do qual me lembro. Camelô nessa época era o reino onde Guinevere pôs chifres em Arthur. Todo comércio era feito em lojas e mercados. Em compensação, leite e pão eram entregues em casa. Cena 2: A criança está sentada na cama jogando Violador de Tumbas 3, via rede, com seus amigos desconhecidos. Grita para que a mãe ligue para uma tele-entrega de pizzas enquanto, com um dos olhos, acompanha mais um capítulo de O Pavoroso Vilipendiador, desenho animado infantil. No micro, baixa alguns mp3, sem tirar um dos olhos, que não sobrou, do MSN. A mão que não está usando o controle cria torpedos no celular. No ouvido esquerdo, o fone do celular, no ouvido direito, o fone do tocador de mp3. Os polvos causam inveja, conseguem operar oito dispositivos, de uma só vez. Afinal, faltou mão para o controle remoto da TV. Da cozinha vem o grito – não tens de ler um livro para a aula de literatura? – já li o resumo no sítio www.substituaomestre.org ! (Deu 404? Ahá, você tentou!) – manhêêê, é verdade que existiam lojas, fora dos shoppings, que vendiam as coisas, como se fossem camelôs parados dentro de prédios? O que aconteceu com elas? – os camelôs vendiam e as lojas pagavam os impostos, daí elas quebraram. – é verdade também que dava para caminhar nas calçadas? – dava filho, antes dos camelôs. Estes viraram heróis quando as tropas da liga bolivariana tentaram invadir Porto Alegre, após confundir o bairro Rio Branco com a capital do Acre. Entraram triunfalmente, pela Alberto Bins, tentando passar pela Otávio Rocha, José Montaury e Praça XV, para alcançar a Prefeitura. A infantaria foi arrasada pelos autônomos, confundida com fiscais. As lagartas dos tanques não suportaram aquele mar de pilhas paraguaias, capas de celular e tralhas chinesas, agindo como areia movediça. Atolados, tiveram seus canhões arrancados e vendidos como sucata, na Voluntários. Os veículos leves de assalto acabaram colidindo com carroças e foram depenados em desmanches. Os bolivarianos sobreviventes, atônitos e dispersos pela cidade, acabaram se tornando camelôs e vendendo CDs de flautistas peruanos tocando o Tema de Lara. O que conseguiu voltar levou um cavalo.

Paulo Roberto Heuser

3 Comments:

At sábado, 13 maio, 2006, Blogger Luiz Roberto Lins Almeida said...

Adorei essa versão de PORTO ALEGRE.. me faz recordar o tempo que aí vivi.

 
At quarta-feira, 28 junho, 2006, Anonymous Anônimo said...

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At quarta-feira, 09 agosto, 2006, Anonymous Anônimo said...

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