29.1.07

O Sincero

O Sincero

Por Paulo Heuser

Ontem cruzei com o Sincero. Não é seu nome, apenas um apelido conquistado ainda nos tempos do colégio. Cruzei é modo de dizer, desviei solenemente, fugindo pelo meio de uma loja. Como o próprio apelido diz, Sincero é exatamente isto: sincero. O que é uma virtude humana, na crença popular, torna-se uma desgraça, no caso dele. É que o Sincero exagera, não tem filtro. Pensou, diz. Na lata. O pessoal foge dele, como o Diabo foge da Cruz.

Sincero não é apenas sincero, é sincero e barulhento. Diz tudo em alta voz, sem perdão. Entrou naquela fase da sinceridade, na infância, e nunca a superou. Continua até hoje. Ninguém mais o convida para almoçar ou jantar. Os comentários dele são inevitáveis:

- Credo, esse arroz está meio insosso! – ou:

- Carninha durinha, hein? É coxão duro?

- O vinho está bom para sagu!

Namoro nem pensar. Nenhuma o agüenta. Os comentários vêm como cascata:

- Que bafo! Engoliu um urubu? – ou ainda:

- Me apresenta teu costureiro, quero lhe dar o prêmio de mau gosto do ano!

O que deixava todo mundo mais melindrado é o fato dele sorrir, enquanto esculhambava com tudo e com todos. No fundo, seja lá onde for este fundo, Sincero deveria ser um bom sujeito. Pena que ninguém conseguia percebê-lo assim. Presentes ninguém lhe dava, era mico na certa:

- Coisa mixuruca e de mau gosto! – comentário suave do Sincero.

A irmã o levou a um psiquiatra, na tentativa de ajudá-lo no relacionamento com as outras pessoas, seriamente abalado pela excessiva sinceridade. Tempos depois, ela me contou o que se passou por lá.

Mal entraram na sala do doutor e o Sincero comentou:

- Cheira mal aqui, não? Tem cachorro molhado no tapete?

Antes que o doutor conseguisse responder à pergunta, veio outra:

- Nossa, que mão suada. Está nervoso?

Seguiu-se outra, logo ao sentar na poltrona:

- Cara, não podia comprar algo mais confortável, cobrando o que cobra?

O doutor anotava alguma coisa enquanto ouvia outra:

- Esse truque de fingir que anota algo, é demais! Faz parecer que o negócio é sério.

A irmã do Sincero achou que seriam expulsos do consultório. Mas o doutor continuava impassível, como se nada o abalasse. Estava preparado para enfrentar esses casos, profissionalmente. Após uma pequena pausa, e antes que o Sincero usasse novamente toda sua sinceridade, lhe perguntou:

- Você tem noção de que pode ofender as pessoas sendo tão sincero?

- Isso no seu nariz é uma berruga? Não juntou grana para mandar arrancar isso daí? – rebateu Sincero.

- Você não está fugindo da minha pergunta? – insistiu o doutor.

- Você é que está fugindo das respostas! – retrucou o Sincero.

- Eu não vejo por que mentir. Sou sincero, franco e autêntico. Quem é meu amigo sabe. – continuou.

- Quantos amigos assim você tem?

- Por enquanto nenhum, mas isto há de mudar...

- Por quê?

- Ora, porque alguém vai querer um amigo sincero, franco e autêntico.

- A sua sinceridade não poderá atrapalhar?

- Não, quem deseja um amigo autêntico, quer a verdade, sempre.

- Você machuca as pessoas, com seus comentários. Deveria ser mais empático...

- A empatia anda junto com a mentira. É válida apenas quando nos colocamos no lugar de alguém perfeito.

- Quantas vezes, até hoje, você se colocou no lugar de outrem?

- Nunca, nunca achei alguém perfeito, que fosse digno da minha empatia. Não tenho culpa se os outros estão cheios de defeitos...

- Não seria válido esquecer os defeitos dos outros, ou pelo menos fingir que esquece?

- Isto seria hipocrisia pura!

O doutor teve mais dois encontros com Sincero. No segundo, descobriu ter orelhas de abano. No terceiro, que seu nariz era estranho e torto. E já havia formado um quadro:

- Você não nota, mas é portador de um transtorno da personalidade - a Síndrome de Schweinefleisch-Hildegardstrümpfen. – que o leva à excessiva sinceridade.

Sincero ficou calado, apenas olhando para o doutor, que, intrigado, lhe perguntou:

- O que houve? Agora não fala mais? Não vai dizer que meu cabelo se parece com bombril albino?

- Não doutor, eu pensei já ter dito isso ontem. Hoje, pensava no que levaria alguém a pronunciar Schweinefleisch-Hildegardstrümpfen tão mal...

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28.1.07

Especialistas

Especialistas

Por Paulo Heuser

Até que a coisa funcionou, até o final do Século XX. Todas as 53 profissões úteis e necessárias, na sua maioria, estavam regulamentadas. Havia profissões estranhas e curiosas, mas no geral a regulamentação profissional era coerente com a realidade. E a legislação se adaptou aos mercados. Quando os técnicos em alguma coisa começaram a invadir o mercado das profissões clássicas, como a engenharia, regulamentaram as profissões de tecnólogos em alguma coisa. Não sem antes sofrer grande resistência, por parte dos já regulamentados. Reservas de mercado são da natureza humana. Por fim, Bismark venceu, a diplomacia mostrou a todos que juntos ganhariam. Assim os conselhos profissionais agregaram uma massa de trabalhadores recém-regulamentados. As contribuições não fizeram mal ao caixa. E surgiram os novos sindicatos, fábricas de homens e mulheres que vão exercer o poder, em algum dia do futuro.

O mercado do ensino superior não ficou para trás. Altas mensalidades e tempo exíguo foram os motores da revolução profissional, antecipando-se ao próprio mercado. O mercado não estaria suficientemente amadurecido para conhecer suas próprias necessidades profissionais. Havia de se criá-las, preventivamente. Antes que sentissem falta dos profissionais que nem sabiam existir, nem para o que serviriam. Algo que antecedesse o pró-ativismo. Assim surgiram as especialidades de Designer de Pingüim de Geladeira e Técnico Hidráulico em Evacuação de Dejetos Domésticos, antes conhecido como limpa-fossa. Cursos bem completos, com duração de três anos, garantiram a formação de novos profissionais à altura do mercado. O primeiro inclui disciplinas de Biologia Marinha, Glaciologia, Sociologia, História, Artes, e tudo o mais necessário para projetar pingüins de geladeira plenamente funcionais. Já imaginou se qualquer um pudesse desenhá-los? Que horror! Para nossa sorte, e das nossas geladeiras, logo estará constituído o Conadepigeas - Conselho Nacional de Designers de Pingüins de Geladeira e Assemelhados. Tão logo consigam desemperrar o processo eleitoral da primeira diretoria, suspenso judicialmente. Logo virão também os Coredepi – conselhos regionais. Novas eleições, novas taxas. Tiveram o cuidado de deixar o Assemelhados, pois os designers de galos portugueses andavam agitando as asas. Galos e pingüins têm tudo em comum, afora alguns detalhes.

Quando o número de profissões chegou em 1327, com a regulamentação da profissão de Estilista de Peruca de Manequim de Vitrine, o mercado começou a notar que algo não ia bem. As universidades passaram a criar os cursos sob demanda, onde a demanda mínima era um. Sim, um candidato interessado em se tornar Lapidador de Sonhos Adolescentes bastava para abrirem um novo curso, em paralelo com o processo de regulamentação da profissão. O custo começou a ficar insustentável. A sociedade como um todo passou a pagar uma conta muito alta pela excessiva regulamentação. Ninguém mais podia jogar nada fora, sem antes contar com o inestimável auxílio de um Técnico em Descarte Doméstico. As empresas terceirizaram todas as suas atividades, pela incapacidade de manter em seus quadros o número mínimo de empregados nas profissões regulamentadas. As empresas de fornecimento de mão-de-obra também foram obrigadas a contratar cooperativas de profissionais regulamentados. Essas cooperativas também foram regulamentadas, gerando novas ocupações, como a de Técnico em Cooperativismo dos Técnicos em Substituição de Rolos de Papel Higiênico e Assemelhados (há o papel-toalha). Novas profissões, novos regulamentos, novas eleições. Fez-se necessário criar o Técnico em Regulamentação de Profissões Ainda Não-regulamentadas. E, naturalmente, o Conarepan. Sem mencionar os Corerepan – os conselhos regionais. Com novas diretorias, taxas, eleições. Veio também o Técnico em Criação de Novos Conselhos Nacionais, com seus novos... A CUT deu lugar a CMT – Central Múltipla dos Trabalhadores. Nada mais foi único.

O Dia da Desregulamentação, como ficou conhecido, para a História, decorreu de uma nova tentativa de regulamentação de uma profissão que nunca fora uma profissão em si, antes uma qualidade de alguns profissionais. Durante o processo de regulamentação da profissão de Crítico de Arte em Potes de Barro da Tribo Marrecaxó, identificou-se a necessidade de um novo tipo de técnico. A profissão deste, ninguém conseguiu regulamentar. Não houve consenso, de jeito nenhum. Seria a de Técnico em Bom Gosto.

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26.1.07

Desaparecido

Desaparecido

.

Por Paulo Heuser

Há gente que passa despercebida. Passa e fica, como um papel de parede humano. Está lá, mas ninguém nota. Pessoas que são extremamente normais, exageradamente normais. Não contam piadas, mas se as contassem, ninguém acharia graça. Ninguém nota quando saem, também.

Iracy era um sujeito desses. Até o seu nome era indeciso, serviria tanto para homem como para mulher. Ele chegava pontualmente ao trabalho, somente o relógio ponto percebia sua presença. Dava um inaudível bom dia, nunca correspondido. Sentava à mesa de trabalho, arrumando todos objetos cuidadosamente colocados sobre ela. Passava um pano umedecido no teclado da máquina de escrever, verificando se não deixara impressões digitais. O calendário, no canto da mesa, destacava o dia 20 de janeiro de 1972. Iracy trajava-se da mesma forma que vivia. Roupas neutras, em tom neutro. Caminhava rente à parede, nos corredores. Assim, não corria o risco de ser percebido por alguém que cruzasse seu caminho.

O primeiro sinal de que algo mudara veio do almoxarife. Perguntara sobre a remessa mensal de um rolo de fita para máquina de escrever. Pela primeira vez, desde que este trabalhava na Firma, o pedido não fora feito. O almoxarife estranhou tanto a ausência do pedido, que a relatou ao departamento solicitante. O responsável respondeu que fazia anos que ninguém solicitava tal item do almoxarifado, pois as máquinas de escrever haviam sido há muito substituídas pelos computadores. Estranho, pensou ele. Pela primeira vez reparou naquela mesa no fundo da sala, no canto, sobre a qual repousava uma máquina de escrever. A quem pertenceria aquela mesa? Perguntou a todos sobre o dono, mas a resposta era sempre a mesma. Ninguém havia reparado antes naquela mesa. Resolveu investigá-la. Abriu as gavetas, vazias. Nada, nenhuma pista. Restara apenas a máquina, o calendário amarelado, um grampeador e um furador de papéis. Tudo limpo e arrumado.

O gerente lembrou-se de verificar as placas de patrimônio dos bens. Consultou o setor de patrimônio que respondeu à pergunta informando o nome do solicitante: Iracy. Quem seria este, ou esta, Iracy? Ninguém se lembrava de alguém com este nome. Resolvido a desvendar o mistério, que já virara assunto das rodas de café, o gerente consultou o pessoal do RH. O gerente de pessoal disse não lembrar de alguém com esse nome, mas fez uma pesquisa no banco de dados de pessoal, por via das dúvidas. Ali estava, na tela. Iracy se aposentara, no dia anterior, após 35 anos de trabalho, sem uma falta sequer.

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Jéferson e os Ovos

Jéferson e os Ovos

Por Paulo Heuser

Thomas Jefferson (1743-1826) foi o terceiro presidente dos EUA. Fica desde já esclarecido que não há laços de parentesco entre ele e Jéferson Uóterlu Mohamed, primo do Raimundo. O Jéferson vive atualmente no país que um dia foi os EUB – Estados Unidos do Brasil (Art. 1º - Constituição de 1891). Esta união, mais ou menos, depende dos investimentos das montadoras estrangeiras e dos incentivos fiscais.

Jéferson deu baixa no exército. Hora de arrumar um emprego. Nada, só bico. O tempo passando, o soldo terminando. Nada de transformá-lo em salário. Uóxinton Árlinton, pai de Jéferson, já andava com pena do rapaz. Tomou uma decisão crucial na vida de ambos. Passou a borracharia nos trocos, dando o capital ao Jéferson, que nunca mostrara vocação para o conserto de câmaras e pneus. Alegava não gostar de bacalhau. Grato, Jéferson caprichou no estudo de um negócio, ciente de que o pai investira cada tostão nele. Fez pesquisa de mercado, no Armazém do Pedrão e na Quitanda da Maria Feia. Leu revistas velhas, especializadas em aberturas de pequenos negócios, até se decidir por algo que parecia infalível. Ovos. Sim, ovos. Nome curto, formato geometricamente maravilhoso e, o mais importante, vivo. Sim, havia vida ali, uma enorme célula que podia ser comida crua, frita, mexida, pochê, dura. Fecundada, geraria um ser vivo, completo, inteligente, como a galinha. Só não se deveria deixá-la cruzar a estrada.

Jéferson aplicou o capital numa Marajó, com bons pneus, e contratou o primo, o Zigoto, que também perambulava atrás de emprego. Assim surgiu a DOAL – Distribuidora de Ovos e Assemelhados Ltda. Não sabiam o que eram assemelhados, mas daria pompa ao nome. Mais sonoridade. Jéferson sabia que boa parte do sucesso de um empreendimento se devia à sonoridade da marca. DOL era chocho, vazio, coisa de boneca na terra de Jefferson. DOAL enchia a boca, era sonoro, principalmente quando se abria e alongava o A - DOÁÁL.

Quando o telefone tocou, veio a primeira encomenda. Seis grosas de ovos. Eram 864 células gigantes. Vivas! Com casca, núcleo e protoplasma. Ranhento protoplasma, diga-se de passagem. Como que pisando em ovos, Jéferson e Zigoto passaram na granja, apanharam os protoplasmas, completaram o óleo da Marajó, e partiram para sua primeira missão – entregar aquela multidão na Quitanda da Maria Feia. Mulher que fazia jus à alcunha, verdadeiro parque de diversões para um estudante de cirurgia estética. Maria Feia tinha o rosto do Inimigo Meu, emoldurando o corpinho estilo Máique Táissom. Coisa de arrepiar lobisomem. A missão era simples, cerca de 12km. Dirigindo com extremo cuidado, Jéferson desviava dos buracos como podia, e a folga da direção permitia. Oitocentos e sessenta e quatro células dependiam da habilidade volante dele! Arrepiava-se só em pensar. Pena que houve a passeata dos cobradores que seriam substituídos por catracas. Quarenta graus e Jéferson e Zigoto presos no congestionamento. Será que não havia Marajó com ar-condicionado? Deveria ter comprado uma Belina. Quatro horas depois, quando estavam quase chegando à quitanda, encontraram a passeata dos cobradores revoltados com assaltos, que queriam ser substituídos por catracas. Mais três horas, chegaram finalmente à quitanda. Fechada. Bateram palmas, na porta, nada. Não poderiam deixar a carga ali. Eram responsáveis por 864 coisas vivas. Portanto, voltaram com a carga. A volta foi rápida.

Na manhã seguinte, após ouvir os xingamentos da Maria Feia, pelo telefone, saíram cedo. Antes por telefone. Pessoalmente, nem pensar. Não contavam com os aposentados. Eles acordam cedo. Adoram filas. Pois não é que os aposentados fizeram uma passeata para protestar contra o desemprego? Não estavam conseguindo colocação, no mercado de trabalho. Eles, como aposentados, deveriam ter a preferência no preenchimento dos cargos. Não lhes faltava a experiência! E a passeata dos aposentados desempregados empregara pessoas de idade, para dar uma imagem mais chocante ao movimento. Movimento lento, em decorrência. Lá estavam novamente Jéferson e Zigoto, na possante Marajó da DOAL, trancados naquele escaldante congestionamento. Zigoto gritava, pela janela: “- Vovô, não quer uma carona, para andar mais rápido?”. E aquelas 864 entidades aguardavam para virar mercadoria na Quitanda da Maria Feia. Prevenido, Jéferson trouxera muita água, para a Marajó, que ficava como muita sede, nesses eventos. Quando o último vovô, de 43 anos de idade, virou na esquina, foram-se em liberdade, apesar de condicional. Condicional porque o condicionante passou a ser a manifestação dos filhos de carroceiros, impedidos pelas autoridades de dirigir as carroças. Mandaram centenas de carroças, pilotadas pelos filhos. Mandaram, pois ficaram em casa. Às 21h39, em ponto, estacionaram em frente à quitanda. Fechada. Apenas um bilhete deixado pela Maria Feia. Dizia, em traços infantis, mensagem nada infantil: “Pode enfiar um por um...”.

Na manhã seguinte, Jéferson bebeu uma garrafa de leite de magnésia, no melhor estilo caubói, de um trago só. Limpando a boca na manga do avental, ele criou coragem e ligou para a Maria Feia, que despejou uma saraivada de invectivas de arrasar superquadras de Brasília. Após oito minutos de xingamento contínuo, sem hiatos, intersilábicos que fossem, Jéferson foi surpreendido pelo perdão, já que seria o aniversário da Maria Feia. Aliviado, Jéferson retomou a missão. Sozinho, pois Zigoto não comparecera. Teria sido o calor dos dias anteriores, dentro da Marajó? Três quilômetros depois, Jéferson descobriu a razão.
Os motoristas de ônibus, em campanha salarial, fecharam os corredores de ônibus, criando monstruosos engarrafamentos. No sol. Jéferson imaginava se os tripulantes dos tanques Panzer, dos Afrika Korps, haviam sofrido tanto, no deserto da Líbia. Aí pelas 16 horas, Jéferson sentiu um cheiro estranho, que não parecia o fedor característico exalado pelo escapamento furado da Marajó. Parecia algo mais... químico? Seria decorrente da troca da marca do óleo? O calor se sobrepôs ao cheiro, ou fedor. Dos males o menor, o movimento paredista - como seria um movimento, sendo paredista? – esvaziou a passeata dos ativistas da PazVerde, protestando contra a utilização de cavalos, como meio de tração para as carroças. Defendiam o uso de motores a hidrogênio, nas carroças. Reduziriam a emissão de metano. Jéferson acabou nem parando em frente à quitanda fechada, nem leu o cartaz que dizia “Jéferson Go Home!”. Também não teve coragem para ligar para a Maria Feia, no dia seguinte. Quem ligou, na verdade, foi a Tia Bombarda, mãe do Zigoto. Este não viria trabalhar, pois se encontrava em gozo de licença médica. Num surto de loucura, passara a jogar ovos em todo mundo que passava. Preso, acabou encaminhado ao atendimento psiquiátrico de urgência.

Enquanto Jéferson pensava no que fazer com as 864 entidades aninhadas no fundo da Marajó, o telefone tocou. O Pedrão lhe perguntava sobre a quantidade de ovos que ele tinha para pronta entrega. Oitocentos e..., foi a resposta. Pedrão mandou entregar, urgente. O Armazém do Pedrão era um pouco mais longe, mas valia a pena. Pena que a passeata das modelos em greve de fome trancou a saída da rua. E modelos desfilam nas passeatas, indo e voltando, como se estivessem numa imensa passarela. Para chamar mais à atenção, Fredy Rose, o estilista que alinhavou o movimento, preparou modelitos exclusivos para o evento. Foi um luuuxo! E terminou com um coquetel, com aqueles sujeitos que giram garrafas enquanto soltam fogo pelas ventas. Teve até deputado que veio de Brasília – a capital. O povo babou com aquele espetáculo. E Jéferson fritou na Marajó. Voltou, com as 864 entidades.

Dezoito dias depois, o milagre! Uma greve geral dos sindicados, formais e informais, paralisou todos movimentos sociais e anti-sociais de protesto. Os sindicalistas pleiteavam horas-extras, quando faziam piquete fora do horário contratual de trabalho. E fizeram a greve das greves. Não voltariam a fazer greves enquanto em greve. Ou isto, ou o contrário. Simples assim, nada negociável. Jéferson nem acreditou naquilo, nem reparou no fedor. Seguiu em louca corrida, tão louca quanto a Marajó permitia, 45km/h, em direção à sua primeira transação comercial como atacadista. Antes das oito horas, estava estacionando em frente ao Armazém do Pedrão. Estacionou e ficou sentado, fitando o infinito, com os dedos crispados no que restava da direção.

Pedrão estranhou quando os cães fugiram, rua abaixo. Normalmente acuavam quando da chegada de estranhos. Quando se aproximou da traseira da poderosa Marajó, começou a entender o porquê. Desatou o arame, que fazia às vezes de fechadura da tampa, e caiu para trás. Em parte pelo fedor de ovos podres que saiu dali, em parte pelo susto com a fuga dos 197 pintos sobreviventes. Acessórios.

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24.1.07

Os Descartáveis

Os Descartáveis

Por Paulo Heuser


Já se vai longe o tempo em que valia a pena mandar consertar algum eletroeletrônico. Havia sujeitos que, de alguma forma, conseguiam entender o funcionamento daquelas coisas cheias de fios e pecinhas coloridas, sabendo o que trocar. Eram os técnicos. A tecnologia de montagem de dispositivos diretamente sobre a superfície das placas de circuitos, através de máquinas de solda, começou a aposentar os técnicos. Não há como identificar nem trocar os componentes defeituosos, integrados que estão nas placas. Troca-se toda a placa, portanto. O que às vezes custa mais do que comprar outro aparelho. A transformação dos aparelhos em descartáveis iniciou no primeiro mundo, propagando-se para os demais. Obra da miniaturização e da automação dos processos de produção.

Agora fabricam outras coisas descartáveis. E pensam em aposentar os mecânicos de automóveis. Tive um problema no carro, diagnosticado como quebra da tampa do tanque de combustível, fabricada em fibra de vidro. Não entro no mérito de fabricar uma peça tão importante em material pouco perene, como a fibra de vidro. Entro no mérito do que vem depois. Quando o mecânico diz: “só tem um problema”, já sei que se trata de um grande problema econômico. E foi. Pois a famiglia que projetou aquela maravilha da indústria automobilística, criou um conjunto de peças, vendidas apenas em conjunto. Trincada a tampa, faz-se necessária a substituição também da bomba de combustível. O que eleva o estrago para além de oitocentos reais. Devido à quebra da maldita tampinha feita em fibra de vidro. Por que quebrou? Pela ação do combustível sobre o material. Disse-me o mecânico que, nos novos modelos, a coisa mudou. Para melhor? Agora o filtro de combustível também faz parte do conjunto. Maravilha, não é? Quando trocar o filtro, troque também a bomba de combustível. Ah, eu ia me esquecendo da tampa. Na terra da famiglia, a troca se faz necessária a cada 100 mil quilômetros rodados. Com o combustível deles. Aqui? O tempo dirá. Já imagino o diálogo:

- Alô, já tem o orçamento do conserto do meu carro?

- Sim, senhor. Será necessário trocar a válvula do pneu traseiro esquerdo.

- Certo, pode trocar.

- Mas, o senhor não quer ver primeiro o orçamento?

- Tudo bem, deve ser mixaria, em quanto ficou?

- Bem, há um pequeno problema...

- O quê?

- É que vendem apenas o conjunto...

- As válvulas dos quatro pneus?

- Dos cinco, na verdade, há o sobressalente. Mas há mais um probleminha, o conjunto é um pouco maior...

- Só falta me dizer que terei de comprar também o pneu!

- Os cinco, na verdade, além do resto do conjunto, rodas, cubos, freios, amortecedores, molas e o agregado...

- Mas aí estarei trocando o carro todo!

- Só um terço, na verdade, há mais dois conjuntos: a carroceria e o motor/caixa de câmbio.

- Em quanto fica isso?

- O conjunto custa R$ 21.845,97. Pode pagá-lo em três vezes pelo cartão. Ou, dez reais.

- Como? Dez reais?

- É, comprando a válvula no borracheiro. Mas, aí, sabe como é, não há garantia...

Começo a entender o que leva as pessoas a apelar para os desmanches.

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22.1.07

Homem Idiota

Homem Idiota

Por Paulo Heuser

Publicado no jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 25/01/07:

http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=68893&intIdEdicao=1066



O homem é um idiota. A mulher, também. Não se trata de uma acusação leviana. Tenho provas. O homem joga. Jogo do osso, do trouxa, loteria estatal, loteria não tão estatal, bingo tolerado pelo estado-homem, roleta russa ou brasileira. Perde seu dinheiro para alguém, homem estatal ou não. Antes de proibir o jogo, o estado-homem o permite. Depois desemprega o homem que empregara.

O homem fuma, apesar de todas as evidências, senão provas, de que o fumo causa moléstias como o câncer, enfisema, hipertensão, impotência, infarto e, ainda o provarão, unha encravada. O estado-homem é duplamente idiota – fuma e permite que fabriquem e vendam cigarros. Cigarros e charutos, verdadeiros ou falsos, ameaças à saúde pública. O homem também fuma outros fumos, que não o Virgínia, próprio para os cigarros vendidos enrolados. O homem joga na rua os tocos de cigarros que entopem os esgotos, contribuindo para as inundações que afogam os homens. Homens de terno e gravata que soltam fumaça e enchem as ruas de lixo, menos papéis. Papel não, é lixo. Bagana pode, é cigarro.

O homem bebe, ficando tonto e fazendo besteira, porcaria também. Também fere, mata e fica de ressaca. Bate o carro e na família. E o estado-cúmplice é sócio. Sócio que ganha pelo imposto que recolhe e pela saúde que só encolhe. Percebe e não gasta.

O homem se droga, com crack, cheira a coca e bebe a cola. Gosta da heroína. Se droga com a tv, com o Orkut e aspirina. O projeto de homem, que nunca será, cheira loló, que o homem que já é fabrica e vende. Os outros homens passam e olham. Olham, enquanto o homem fuma baseado no parque e na rua, onde todos homens sabem. Sabem do êxtase que o ecstasy dá, na rave dos homens que bebem água, só água. Senão dá bode no homem, e prejudica o negócio do homem que vende o ecstasy.

O homem come pimenta, quanto mais ardida, melhor. Ardida na entrada, por vezes na saída. O homem sofre, e gosta. Mostarda vulcânica arde o nariz. Montanha russa dá enjôo. E o homem gosta. Gosta da sensação de correr com o carro, até morrer. Gosta de assistir às corridas de caminhão porque os homens se arrebentam nos acidentes. Acidentes são os gols das corridas. Quanto mais, mais o homem gosta. Gosta dos buracos e acidentes que atraem multidões de homens que gostam de ver o líquido vermelho escorrer. Escorrer nas touradas, do touro ou do homem, melhor deste. Faz a farra do boi. Boi que não entende a bestialidade do homem-besta. Maldade não pode, pode a tradição, da besta. Besta que torce pelo time que vai perder. Aí o homem quebra tudo, porque homem que é homem, é besta coletiva, a mais besta.

O homem comemora dando tiros para cima, sabendo que a bala vai cair no homem. Em outro homem, que mal faz? São tantos os homens que atiram, que nunca saberão qual homem atirou. Saberão qual homem cai. Cai morto.

O homem é motoboy, que ultrapassa os homens de carro, pela direita. Debaixo do capacete não há homem. Homem não cai como boneco de pano que rola pela rua. Só vira homem, morto, quando lhe tiram o capacete. Capacete que esconde a imprudência do homem.

O homem joga caca no rio e come o peixe. Peixe que morre cheio da caca que o homem joga. Joga fora o resto do habitat do homem. Homem que vai ter de achar outro planeta para viver. Viver longe dos homens que vão jogar caca nos rios do novo planeta.

O homem que fica na fila vota. Vota no homem que o pôs naquela e em todas as outras filas. Só não fica na fila para sofrer e morrer. Para isto, o homem é livre. Liberdade que exerce, plenamente.

O homem é um idiota.
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21.1.07

O Seguro

O Seguro

Por Paulo Heuser

- Bom dia! Corretora Sinistrum às suas ordens!

Hora de renovar o seguro do carro. Odeio este momento, ainda contratarei um corretor para tratar com o corretor. Todo ano é o mesmo estresse. Alguém me deu a dica dessa seguradora, bem mais em conta. Bem, vamos lá, de nada adianta fugir agora.

- Bom dia, estou interessado no seu seguro...

- Um momento, estou transferindo para um dos nossos corretores!

- Pois não.

Já posso imaginá-lo, um sujeito de meia-idade, excessivamente falante e algo pedante. Sempre fazem cara de nojo quando digo o modelo e o ano do carro. Parecem estar me fazendo um favor ao segurá-lo. Houve um que segurava a proposta na ponta dos dedos, após preencher o modelo.

- Bom dia, Joyce Scarlet, compleeetameeente às suas ordens!

Céus, que voz! Os “es” daquele completamente foram modulados de uma forma que arrepia a espinha. Será a secretária do corretor, aquele de meia-idade e ar pedante?

- Bom dia, por favor, eu gostaria de falar com um corretor, para tratar da apólice....

- Você já está falando com uma, sou a sua corretora. O que posso fazer para satisfazê-lo?

Os ésses do sua e do satisfazê-lo são de dar novo arrepios.

- É que eu quero renovar meu seguro...

- Ótimo, vamos trabalhar nisto agora. Vou lhe perguntar sobre as coisas de praxe, depois entramos nos detalhes. – novo arrepio.

Lá se vão as informações, nome, cpf, endereço, idade, ...

- Você não quer saber sobre o carro?

- Ahá, você é rapidinho, não é? Calma, vamos primeiro tratar dos negócios. – Novamente aquele ésse arrepiante.

Essa mulher sabe fazer seu trabalho. E com que voz! Está completamente no comando. Ela diz e eu obedeço. Ainda mais com aqueles ésses.

- Você está tomando alguma medicação, no momento? – Esta é nova, nunca haviam me perguntado sobre saúde. Melhor não mentir.

- Sim, tomo bálsamo alemão, 10ml, duas vezes ao dia.

- Entendo! – Sinto uma mudança na sua voz. Parece mais alerta. Será que há problemas em dirigir tomando bálsamo alemão?

- Qual é a aparência da sua urina? – Nossa, o que isto tem a ver com o seguro? O ésse do sua perdeu aquele som. Sem arrepios, agora.

- Bem, é... amarela e líquida, creio eu... – O que mais posso dizer?

- Que tom de amarelo?

- Um momento... – Vou deixar o telefone na sala, não consigo urinar com alguém observando...

- Alô? Pronto, já verifiquei, parece amarelo citrino. – Li isso em algum lugar.

- Ótimo, ótimo! – A voz dela parece ter voltado àquele estado.

- Você alcança a ponta dos pés? – Ouço um desafio?

- Bem... não exatamente...

- O que, exatamente, você que dizer com esse exatamente? – Sinto uma ponta de desconfiança na voz dela.

- Ah... não, para ser sincero.

- Lamento, senhor. Creio que não poderemos continuar esta entrevista, por telefone. Será necessário marcar uma entrevista no nosso escritório. Lhe passaremos uma lista de exames indispensáveis. – Os ésses sumiram completamente, e aquele você, quase íntimo, virou um senhor, frio e distante.

- Mas, não entendo. E o carro? A senhora – devolvo o tratamento – não quer saber nada do carro?

- Senhor, a Sinistrum não julga seus cliente pelas aparências. Nada nos interessa saber, se o senhor anda de Fiat 147 ou de Mercedes ZLK 900.

- Como vocês renovam a apólice, sem saber do carro?

- Ora, o carro não vai junto, na cremação!

- Cremação?

- Sim, nosso seguro funerário cobre apenas a cremação. Se o senhor deseja um seguro para enterro, por favor, procure em outra corretora. Podemos lhe recomendar a Suave Jornada, do primo do nosso diretor.

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20.1.07

Invasão de Privacidade

Invasão de Privacidade

Por Paulo Heuser

Há vinte anos atrás, quem fosse flagrado falando em altos brados nos reservados dos toaletes de prédios públicos, ou comerciais, seria considerado louco. Ou pensariam que entrara ali acompanhado. Ontem ouvi três pessoas falando, não entre si, num toalete desses. É o fim da privacidade, consentido, por sinal. Quem leva o telefone móvel celular ao toalete, ligado, merece receber uma chamada. E atendê-la. Fico imaginando consultores de etiqueta falando ao telefone no toalete, enquanto o vizinho puxa a descarga. Hoje a empurramos, na verdade. A puxávamos no tempo que havia uma corrente que saía de uma caixa elevada. De qualquer forma, puxada ou empurrada, a descarga de água no vaso sanitário provoca um som inconfundível, talvez devido às características morfológicas quase padronizadas dos vasos, padronizando também a acústica. Os modelos de tampas variam muito, de forma, de cor e de conforto. Das tampas rachadas, ninguém se esquece.

Uma das coisas mais engraçadas que li, até hoje, foi um conto chamado O Especialista, de Charles Sale, que deu título à antologia O Especialista e Outros Contos, Editora Globo, 1968. Lá o autor narra suas experiências de vida profissional como fabricante de cabungos. Os mais urbanos não os conhecem. São os sanitários sem, digamos assim, dispositivos hidráulicos de descarga, utilizados nos locais mais próximos da Mãe Natureza. Os cabungos, completamente ecológicos e orgânicos, operam com base na Lei da Gravitação Universal, de Isaac Newton, também conhecida por Lei da Gravidade. Sempre desconfiei daquela história da maçã. Creio que Newton não estava debaixo da macieira. Os cabungos apresentam uma grande vantagem sobre os vasos sanitários urbanos, modernos: o silêncio, do mecanismo de descarga, bem entendido. Principalmente quando localizados sobre um barranco alto, na beira de um rio. Neles, ninguém ao celular seria pilhado puxando a descarga, já que não há o que puxar.

A invasão da nossa privacidade não se faz somente pelo celular. Com o sono atrasado há dias, resolvi dedicar umas horas a mais do meu sábado ao sono. Em vão, uma operadora de telemarketing resolveu alegrar minha manhã, telefonando para minha casa. Quando reclamei do inconveniente do dia e da hora, recebi a justificativa que ela estaria em seu horário de trabalho. Ou seja, quando as malditas empresas de telemarketing trabalham, também devemos trabalhar, passivamente, mas trabalhar, pois passamos a fazer parte do negócio deles. Já imaginaram se todos os restaurantes da cidade resolverem lhes ofertar seus produtos e serviços, através do telefone, no domingo, cedinho na manhã? “- Bom dia! O senhor não gostaria de provar nosso rodízio de abóboras de pescoço? Ou nosso rodízio de melancias?”.

Aceito ser marketado através da mídia falada quando esta se limita àquilo onde eu tomo a iniciativa de me pré-dispor a ser alcançado. Eu ligo a tv e o rádio, portanto, aceito ser alcançado. O que considero inadmissível é a invasão através do telefone, com muito pouca ou nenhuma chance de defesa. Esse negócio de alcançar o cliente – ou vítima –, a qualquer custo, tem hora e lugar aceitáveis.

Viva o cabungo! Lá o celular não pega. Além do que, para que raios iria alguém lá querer um cartão de crédito?

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19.1.07

A Realidade Consciente

A Realidade Consciente

Por Paulo Heuser

Heráclito de Éfeso da Silva acordou sobressaltado, naquela madrugada de 23 de abril. Por que nessa data, nem mesmo ele sabe. O fato é que acordou, como nunca havia acordado.Às 2h38. Viera à consciência, clara, nítida, assustadora. O primeiro sintoma da consciência foi o despertador, iluminando a completa escuridão com sua luz, tênue, azulada, fantasmagórica. Não foi a luz que o trouxe à noção de consciência, foi a consciência de que o despertador marcava algo que nada significava, realmente. Um tempo arbitrado, inútil. Ele acordou com a consciência de que nada mais era do que um cisco no olho do Universo. Nem sabia de onde brotara tal definição, mas fora suficiente então, perfeita naquele momento. Ficou sentado na cama, no escuro, tentando entender por que nunca pensara naquilo antes. Depois, voltou à rotina, sutilmente alterada. Apanhou o jornal, como fazia há milhares de manhãs, e sentou para lê-lo.

Vendo as manchetes, Heráclito percebeu que algo mudara. Nunca havia considerado aquilo tão idiota e hipócrita. Novamente aquelas mesmas notícias sobre o pessoal que sofria da amnésia pós-eleitoral. Os recém-eleitos alegavam não saber o tamanho da bomba que compraram, enquanto os reeleitos propagavam a boa nova, que nada tinha de boa, nem era nova. Por que acreditar naquilo? O mercantilismo opinativo, completamente hipócrita, era o que levava o jornal a trazer aquele asneirol, e ele a lê-lo, enquanto comia pão, a única coisa verdadeira, até então. Estava feliz por não estar comendo algo que viesse em caixas, de papelão ou de plástico. Seria impensável começar o dia comendo algo encaixotado. Aliás, seria impensável começar o dia, de qualquer forma. Seguia folhando o jornal, redescobrindo que os eleitos não se julgavam suficientemente recompensados, seguindo na disputa de quem lideraria a busca pelo prêmio em dobro. Hipocritamente, todos aceitavam aquilo. Qual seria o valor da opinião de quem é pago para opinar? Consciente de que nada mais seria igual, naquele dia, e, talvez, pelo resto da sua vida, Heráclito continuou folheando o jornal, cada vez mais consciente da sua consciente loucura. Percebeu, repentinamente, que pão e bananas eram as únicas coisas que tinha em casa que não traziam marca. Tinha consciência de que havia pão e bananas com marca, mas aqueles não. Eram genéricos. Sentiu o primeiro alívio do dia. Seria o único, também. A coca-cola tinha marca, evidentemente. Poderia haver uma genérica-cola?

Passando pelo caderno de esportes, teve consciência de que nada daquilo que lá estava era esporte. Esporte não era algo comercial, era apenas esporte, ficando, portanto, fora das colunas de jornal. Ali havia lugar apenas para quem pagava ou era pago. O que poderia levar alguém a torcer por um sujeito, que nem falava sua língua, regiamente pago, para vestir uma camiseta? E havia quem brigasse por isso. Delirasse por isso. Loucos pensamentos de quem acordara às 2h38, pontualmente. Porque haveria de acordar quando o despertador o determinasse?

Na seção de tecnologia, o lançamento de um novo traste eletrônico que permite acessar a bolsa de valores imediatamente após alterar sua cotação, através de uma entrevista que anuncia o lançamento de um traste eletrônico que permite acessar a bolsa de valores... E lá navegam as aposentadorias dos velhinhos norte-americanos que jogam golfe e não querem saber de trastes eletrônicos que permitem... Oh, uma boa nova finalmente! O laboratório Graxo-Benvindo acabou de descobrir uma droga que dá esperanças para quem não as têm, desde que possam pagar por elas. Antes, gastaram centenas de milhões de dólares – ou seriam euros? – para convencer a humanidade da sua infelicidade. Todo ser humano, ou não, somente será feliz se tomar doses diárias de Placebox Plenitudium. Infelizmente, há efeitos colaterais, que podem ser minimizados através de doses de NadaFarNiente, do mesmo laboratório. Há oferta de venda do conjunto. Ele lhe permitirá a leitura da seção de ciência, que traz as últimas notícias sobre o aquecimento global. Ao lado da seção de moda, que reflete o verão europeu. O que vestirão em 2050? Brincos?

Na seção internacional, Heráclito deparou com as novas dos socialistas que socializam a miséria, enaltecendo-a como virtude, como meta de vida. Querem que todo mundo vire franciscano, menos eles próprios. E os seus valetes e as suas damas. Falam, falam com a desenvoltura típica daqueles que não podem parar de falar, sob pena de verem reveladas suas falácias. Leu também sobre os bombardeios da paz. A notícia sobre a previsão de vendas na Páscoa foi o que o desestabilizou. Sua consciência não passou despercebida. Arrumaram-lhe um psiquiatra.

- Desde quando vem tendo esses pensamentos?

- Desde 23 de abril, às 2h38.

- Por que nesse dia?

- Por que não nele?

- Bem, o dia realmente não é importante...

- Não era dia, era noite.

- Bem, como você classificaria o que vem sentindo?

- Como loucura, é claro.

- Por que loucura?

- Porque sou o único que vejo a realidade.

- O que é a realidade?

- Aquilo que ninguém mais vê.

- Creio que posso ajudá-lo a enxergar as coisas de uma forma mais clara.

- As vejo claramente.

- Sei, se você aceitasse tomar o Alienix a realidade seria mais... normal.

Nem Heráclito, na sua consciência real, nem o psiquiatra, puderam imaginar o que viria a seguir, quando o Universo pingou aquela gota de colírio no olho. Colírio genérico que lavou os ciscos específicos.

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18.1.07

Qual Era o Assunto?

Qual Era o Assunto?

Por Paulo Heuser

Há um monte de anos a.C. - monte com seis dígitos - inventaram a reunião. As primeiras foram promovidas para esfolar alguém, ou para evitar que alguém fosse esfolado por outro alguém maior, ou mais numeroso. Não havia pauta nem ata. Apenas rosnados e grunhidos. Conduzia a reunião, ao redor do fogo, quem rosnava mais alto. Os outros grunhiam, resignados. Hoje ainda há muitas reuniões desse tipo. As assembléias de condomínio são uma evolução, tímida, mas uma evolução. Apresentam pauta e ata, mesmo que apenas protocolares. Os rugidos e grunhidos continuam sempre presentes.

Joseph Stalin foi um promotor de reuniões peculiares, onde sumiam protagonistas, no ato, ou após, sem constar da pauta ou em ata. O herói bolchevique Sergey Mironovich Kirov foi um deles. Sussurrou o que não devia, durante uma reunião, e foi morto ao virar a esquina. Outros sumiços se seguiram, no período que passou a ser conhecido como Grande Expurgo, após 1934. Stalin está imortalizado numa foto da Conferência de Yalta, Criméia, em fevereiro de 1945, ao lado de Churchill e Roosevelt. O que impressiona, naquela foto, é a atmosfera de aparente informalidade e intimidade dos três protagonistas. Se parecem com os vovôs reunidos na festa de bodas de ouro. Ali seriam selados os destinos de alemães e poloneses. Poucas fotos reúnem tal concentração de poder. Um estalar de dedos poderia desencadear um novo conflito mundial. A conspiração estava presente. Como esteve na pintura que Lodovico Sforza encomendou ao seu protegido Leonardo Da Vinci - A Última Ceia (Il Cenacolo) -, retrato de uma reunião ocorrida há dois mil anos, da qual surgiu o maior movimento religioso do ocidente.

Adolf Hitler participou de uma reunião bombástica, literalmente, em 1944. Vlad Drakul (1431-1476), o Empalador, promoveu reuniões inesquecíveis, das quais derivou seu apelido. Os mafiosos ítalo-americanos, das décadas de 20 e 30, do século passado, passaram a resolver suas rusgas em célebres reuniões, tentando fazer jus ao ditado “La Vendetta è un piatto chi si gusta freddo” – A vingança é um prato que se come frio.

Sonhei esses fatos, certa feita, enquanto acordava de um sonho-acordado, pensando em como acordar o sujeito que roncava ruidosamente, do outro lado da mesa. Um sujeito que tinha a capacidade de dormir em reuniões entre duas pessoas, coisa um tanto constrangedora, pois deixava o interlocutor com a impressão de que conseguia sedar as pessoas apenas com as palavras. Um anestesiologista verbal. Era necessário acordar o sujeito, a cada pouco, deixando cair pastas, cadeiras, etc.

As reuniões com mais de um participante são eventos tão complicados, que suscitam teses, consultorias e livros. Os maiores desafios enfrentados pelos consultores em reuniões são a convocação e a condução das reuniões com o cliente. Muito úteis, quando realizadas no tempo certo, com os participantes certos, com pauta (incluindo um objetivo) e ata, as reuniões sabem se transformar em pesadelos, quando mal administradas. Há muitos tipos de reuniões, e muitos tipos de participantes.

O tipo mais clássico de reunião é a reunião-fim, cujo objetivo é a própria reunião. Geralmente inicia quando algum superior diz ao subalterno: “- convoque uma reunião para decidir o assunto da implantação do projeto X”. Por alguma estranha razão, o subalterno ouve toda frase, mas coloca um ponto após a palavra reunião, que deixa de ser meio e passa a ser fim, apagando o resto da frase. Essas reuniões não terminam, geram outras, que por sua vez se multiplicam, criando comissões temporárias, inicialmente, permanentes, depois, culminando com a criação de secretarias e, por fim, ministérios. Ainda veremos uma reunião-nação. Sem que se saiba exatamente a que veio. Tudo para decidir... o que era mesmo?

As reuniões sempre têm um Coordenador, que a inicia, com a etapa de amenidades, como manda a etiqueta, enquanto aguarda a chegada dos inevitáveis atrasados. O período de amenidades, que dura por volta de 45 minutos – deveria durar cinco -, abrange os mais variados assuntos, do futebol à política. Apenas o assunto em pauta – qual era mesmo? - fica proibido. Decorrido o período regulamentar de amenidades, passa-se à convocação-relâmpago dos ausentes, através do telefone, período conhecido como pós-amenidades, no qual se trata de... amenidades. Não dura mais do que 20 minutos. Para que não se perca tempo, hora do café. Nesse momento, um dos convocados deixa a reunião, pois vai participar de outra, que iniciará discutindo... amenidades. Gente hábil sabe transformar seu dia numa... amenidade, basta se inserir na lista de convocados de umas oito reuniões. Stalin, Churchill e Roosevelt devem ter jogado Diplomacia e War (guerra), no período de amenidades. Depois, as praticaram.

Toda reunião conta também com um ou mais Pavões. O Pavão já chega ruidoso, espalhando penas e piadas para todos os lados. É um sujeito sempre suspeito. Pode ser um agente de dispersão do foco da reunião, atraindo as atenções enquanto outro participante ataca. Pode também ser um sujeito que tenta, e muitas vezes consegue, se impor pela simpatia e espontaneidade. Ou, pode ser apenas um pavão narcisista.

Há também os participantes denominados Hologramas. Parecem estar ali, mas não estão. Viajam em pensamento, enquanto sorriem e fazem sinais de entendimento do que não pode ser entendido, pois nada foi exposto, nem eles estavam de fato presentes. Os Hologramas também costumam desenhar, jogar no computador e unir clips, formando correntes. Neste caso, classificam-se como Hologramas Artesãos.

Um tipo particularmente destruidor de reuniões é o Placebo, que houve, discute, mas não tem poder de decisão. Faz constar da ata que pedirá o amém do patrão para o que “decidiu”. Enviar Placebos às reuniões é uma velha tática para postergar projetos. Pior do que o Placebo é o Placebo Prolixo, que, além de nada decidir, tira o foco de qualquer discussão, transferindo-o para o método de discussão, ou para qualquer outro assunto que não esteja na pauta.

O participante Messias reina sobre tudo e sobre todos, além de tudo saber. Está em todas as reuniões, pois vive delas, e nelas. Nada o satisfaz, senão a própria voz e a própria opinião. Leva suas atas prontas, irretocáveis, já as distribuindo no início da reunião. Concorda com tudo que parte de si, discorda de tudo que parte de outrem. Pompa e circunstância são seus lemas, imagem e discurso, seus temas.

O Armador é um sujeito muito utilizado. Prepara o terreno, atraindo raios e trovões, para que outro participante apresente uma proposta. Chegam como desconhecidos, partem sócios. Nada se compara, no entanto, com os Nervolingüiças, denominação atribuída aos neurolingüistas, treinados na arte de manipular os neurônios dos demais participantes, através da palavra. Um sujeito desses teria convencido Stalin a ceder a Polônia para Churchill e a Alemanha para Roosevelt. Também teria convencido Hitler a ninar a bomba no colo. A única forma de neutralizar um Nervolingüiça é colocação de um Cisão na lista de convocados da reunião, desde a primeira etapa de amenidades. Cisão é um agente da cizânia – como o Caius Detritus de Asterix. Este deverá espalhar boatos, durante a etapa de café, de que o Nervolingüiça assumirá a presidência da instituição. Feita a semeadura da intriga, vem a colheita da discórdia, anulando as manipulações verborréicas dos Mestres das Sinapses, como também são conhecidos os Nervolingüiças.

Não se pode esquecer do Seboso Refratário, tipo de participante aparentemente exemplar. Polido, gentil, educado, concorda com tudo e promete ações imediatas. Porém, nada faz do que prometeu. Na próxima reunião, fará relatos de dificuldades extremas enfrentadas na execução das ações. Irá além, agradecendo aos céus por não terem permitido a execução dessas ações, que o tempo mostrou anacronismos inúteis, apenas cinco anos depois da decisão.

Vivemos uma época de reuniões, muitas reuniões. Foi-se o tempo em que as decisões ficavam centralizadas na mão de um, ou de poucos. Estamos na era do trabalho em grupo, cooperativado. Há quem faça da vida uma grande reunião, cuja ata se encerra apenas quando é convocado para a Grande Reunião.

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16.1.07

Maldição da Corrente

Maldição da Corrente

Por Paulo Heuser

Correntes fazem parte da vida. E do pós-vida também, haja vista o número de filmes nos quais os fantasmas as arrastam, aterrorizando as pobres almas ainda não-penadas que tentam dormir. Já na primeira vez que enfiamos o dedo na tomada, quando pequenos, descobrimos a corrente elétrica, da maneia mais eletrizante. Os sobreviventes conhecem outras correntes, como as fluviais e marítimas. Houve a época das correntes no volante dos carros, para evitar o furto. Depois passaram a roubar o carro para vender a corrente como sucata. Vieram também as correntes nas motos, nas bicicletas e, mais recentemente, nos notebooks. Há relatos de gente que teve furtados o notebook e a mesa à qual este estava acorrentado. Correntes nos portões, nos botijões de gás, em tudo que queremos proteger. Há também correntes de fé, religiosas ou esportivas.

Lembro-me da primeira corrente de tralhas que conheci. Era uma corrente de flâmulas. Colecionavam-se e trocavam-se as ditas flâmulas, que acabavam pregadas na parede do quarto, mistos de decoração e troféu. Os melhores alunos recebiam flâmulas como prêmios pelo desempenho, empiristicamente. Eis que surgiu uma daquelas clássicas correntes. Bastava se enviar três flâmulas, para três pessoas, que as enviariam para outras três, colocando-se em algum lugar de uma lista, e assim por diante. Em pouco tempo, seriamos soterrados com as flâmulas enviadas pelas novas pessoas da lista. Como duvidávamos da conservação da energia, e acreditávamos piamente na conservação da idiotice, saíamos enviando flâmulas pelo correio. Recebíamos... uma, quando afortunados. Algum tempo depois, os irmãos Estélio e Natário criaram as correntes de dinheiro. Aí a coisa acabou na polícia. Mas, como gostamos de ser engambelados pelas promessas de enriquecimento fácil, acabamos caindo nessas. No Século XX surgiram pirâmides de vendas de jóias, e outras coisas, inspiradas nas correntes. Pessoas aparentemente aculturadas eram convidadas a participar de sessões de marketing mesclado com lavagem cerebral, para vender jóias baratas, de porta em porta, repassando o grosso do lucro aos que se encontravam no topo da pirâmide. Conheci um sujeito, beirando a genialidade, que voltou babando de entusiasmo de um evento desses. Criaram rituais de iniciação e juramentos de segredo. Quem revelasse a fórmula secreta da fortuna, sofreria duras penas. A primeira vítima desses embustes deve ter sido Thor, filho de Odin e Jord, deuses da mitologia nórdica. Thor tinha um irmão chamado Loki, nada heterodoxo nas práticas sociais e comerciais. Deve ter sido este, quem convenceu Thor a dar martelas em ferro para transmutá-lo em ouro. Thor deveria ter acorrentado seu martelo, antes de dormir. Há relatos mitológicos de que Loki o roubava, durante o sono de Thor. Se o martelo realmente funcionava como agende da transmutação, não sei. Mas que quebrou muitas cabeças nas tentativas, isso quebrou.

Recebi a terceira corrente de 2007, trazida por e-mail. Em 2006 devo ter recebido dezenas, perdi a conta. As e-correntes – correntes por e-mail – se valem de um estratagema para garantir a própria propagação: ameaçam o destinatário de múltiplas desgraças, caso a interrompam. Uso um truque para não cair nas correntes. Não as leio. Porém, elas continuam chegando. Às vezes disfarçadas. A que recebi hoje, foi a gota d’água. Enfureci-me, resolvi jogar pesado, realmente pesado. Não acredito em correntes, mas quem as manda, acredita, mesmo que apenas lá no fundo, bem no fundo, onde a razão se esconde sob a emoção. Pois bem, quem me mandar qualquer tipo de corrente será amaldiçoado com a Maldição da Corrente do Nilo, recém-inventada, orgulhosamente. “Proudly made in Brazil” – Orgulhosamente feita no Brasil –, apesar da inspiração egípcia.

A Maldição da Corrente do Nilo invoca as Sete Pragas da Corrente do Nilo. Os espalhadores de e-correntes:

1. Terão a boca cheia de escaravelhos devoradores de línguas e próteses dentárias caras;

2. Serão visitados por sete vendedores de enciclopédias, seguidos de sete vendedores de planos de saúde, seguidos de sete ligações de operadores de telemarketing – versões tupiniquins das pragas de gafanhotos;

3. Serão obrigados a pagar sete contas, em sete lotéricas, no dia 31, sexta-feira, com a Mega-Sena acumulada há 24 semanas;

4. Serão condenados a viajar de avião a Porto Seguro, nos sábados de sete Carnavais;

5. Serão obrigados a assistir às cerimônias de posse de sete governadores, em trajes formais;

6. Para cada corrente que me mandarem, nascerão sete berrugas no nariz de quem as mandar;

7. Para cada corrente que me mandarem, terão sete dias de diarréia, dentro (do mesmo) elevador emperrado.

Nenhum truque, de mandar a maldição de volta, funcionará. Quem mandá-la de volta, a terá sete vezes, completa, inclusive com o elevador. Para que a maldição faça efeito, basta enviá-la para sete pessoas, que, por sua vez, as enviarão para outras sete...

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12.1.07

O Diabo e a Formiga

O Diabo e a Formiga

Por Paulo Heuser

Há um velho ditado que diz: “O diabo sabe mais por velho que por diabo”. Desconheço o autor. Sábios, ditado e autor, tão sábios que apenas percebemos a verdade nele contida quando ficamos mais velhos. Quanto mais velhos? O suficiente para que percebamos a verdade nele contida. A recursividade da relação entre o ditado e a idade impede que ele seja utilizado pelos mais jovens. O que é lamentável, por um lado, comemorável, por outro. Evitaria uma longa série de percalços na vida das pessoas. Evitaria também uma série de experiências ruins, que nos ensinam muito. O melhor mesmo é um equilíbrio entre o ouvir da experiência e o ousar na ação. Equilíbrio difícil de se conseguir.

Se não perdemos a capacidade de contestar, quando envelhecemos, podemos praticá-la no próprio ditado. Quanto mais aprendemos, mais ignorantes nos percebemos. Este é um efeito colateral do saber. Saber a imensidão do que não sabemos. A cada nova revelação, diversas novas questões. A criança enche-se de conhecimento, na fase dos “por quês”, confiante na sabedoria dos adultos que tudo sabem, aparentemente. Até o dia em que crescem e percebem que o aparentemente é mesmo um apenas aparentemente. E assim abre-se um funil de conhecimento que vai alargando seu diâmetro, mas sempre mantendo a boca muito maior do que o sumidouro. “Neste mundo nada pode ser dado como certo, à exceção da morte e dos impostos” - Benjamin Franklin. Ainda bem que é assim, pois do contrário, já estaríamos espiritualmente mortos, antes da própria morte física.

Imagino a angústia gerada pelo desconhecimento, decorrente do próprio conhecimento, em homens como Albert Einstein, que passou a vida toda perseguindo algo que não alcançaria. E ninguém mais alcançou, até hoje, apesar dos esforços. Uma teoria unificada que consiga explicar, entre outras coisas, a existência de constantes, como a carga elétrica ou a velocidade da luz. Particularmente instigantes são os estudos que remetem às fronteiras entre Física, Filosofia e, por que não, Religião. As duas primeiras em uma constante relação de amor e ódio com a terceira, ora conflitando, ora se apoiando.

Talvez um dia consigamos desvendar os infinitos mistérios que as ciências nos oferecem. Poderemos descobrir que somos apenas formigas, na fração infinitesimal de tempo anterior à pisada, sob um grande pé.

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10.1.07

Sinuca Socioeconômica (de Bico)

Sinuca Socioeconômica (de Bico)

Por Paulo Heuser

Nos campos, onde reina o minifúndio, as propriedades não podem mais ser divididas entre os herdeiros, pois as sucessivas divisões as reduziram muito em tamanho. A contínua exploração torna as terras pouco produtivas. Em outras regiões, porções maiores de terra pertencem a verdadeiros senhores feudais. O abandono do campo de nada adianta, pois os camponeses não encontram emprego nas cidades, aumentando a miséria urbana. A indústria manufatureira necessita trabalhadores qualificados, não de camponeses sem qualificação para os novos tipos de trabalho.

Os artesãos urbanos, como os alfaiates, tecelões e os carpinteiros, vêem seu trabalho desvalorizado, substituídos pelas máquinas. Acabam trabalhando como operários, recebendo baixos salários. Poucos ainda conseguem emprego, pois cada máquina substitui diversos artesãos, aumentando em muito a produção e o desemprego. As campanhas de vacinação em massa aumentam a expectativa de vida da população, aumentando a demanda pelos novos empregos, inexistentes.

Brasil, Século XXI? Não, Alemanha, Século XIX. Serviria também para a Itália, Polônia, e outros países. O que fazer para resolver uma situação dessas, verdadeira sinuca de bico – sem saída? Eles emigraram, deixaram suas pátrias para tentar a vida em um mundo muito mais primitivo, quando comparado com aquele que deixaram para trás. Chegaram onde estamos. Muitos prosperaram, após grandes dificuldades e sofrimento. Outros nem chegaram aqui, morreram pelo caminho. Vê-se um novo ciclo que vem se fechando. Após mais de um século, a situação se repete, e não é de hoje.

Os descentes dos imigrantes vêem uma repetição do que os seus ascendentes enfrentaram na Europa, no Século XIX. Não há mais como dividir os minifúndios. Não há emprego suficiente, ainda mais com o País andando de lado, há muito. O agronegócio, espécie de indústria agrícola, tira a competitividade dos pequenos agricultores. A divisão dos latifúndios não encontra amparo legal ou vontade política, ou um, ou outro, ou ambos. Só se sabe que não funciona. E, se funcionar, o resultado é discutível, pois parte dessas terras não se aplica à policultura, típica atividade dos minifúndios. O trabalho cooperativado, em grandes extensões de terra, como os latifúndios, provavelmente levará novamente à concentração da propriedade nas mãos de poucos cooperativados, criando novos feudos. A exploração do homem, pelo homem, não é uma probabilidade, é uma certeza.

O que fazer, então? Ora, vamos voltar!

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Batalha da Riachuelo

Batalha da Riachuelo

Por Paulo Heuser

O Rio Riachuelo é um afluente do Rio Paraguai, na Província de Corrientes, Argentina. Em 11 de junho de 1865, no início da manhã, aquele rio foi palco da Batalha Naval do Riachuelo, entre as esquadras da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai) e do Paraguai. O Paraguai não contava com um acesso direto ao mar, controlado pela Argentina e pelo Uruguai. Após invadir Mato Grosso, Rio Grande do Sul (de São Borja até Uruguaiana) e terras Argentinas, o Paraguai tentou conquistar a saída ao mar, através dos rios. Para tanto, deveriam destruir a esquadra brasileira, composta de nove navios, que defendia o rio em território argentino. O Comodoro Pedro Ignácio Mesa, do Paraguai, comandou a esquadra atacante, composta de sete navios. A tática do comandante paraguaio era atacar a esquadra brasileira, comandada pelo Almirante Francisco Manuel Barroso, durante a madrugada, surpreendendo-a em meio ao nevoeiro. Um dos navios paraguaios sofreu um problema mecânico, atrasando o ataque, que ocorreu às 9 horas. Perdeu-se o fator surpresa, portanto. Isto vem provar que os defeitos nos produtos dos camelôs são coisa antiga. E que não só os brasileiros costumam se atrasar. Enfim, a esquadra brasileira saiu vitoriosa, selando o destino do Paraguai na Guerra da Tríplice Aliança (1864-1865).

Comecei a pensar nisto quando dobrei na Praça Conde de Porto Alegre, na direção da Rua Riachuelo, afluente da Rua Doutor Flores. Ali, trava-se a Batalha Viária da Riachuelo, todos os dias, no início da manhã. É interessante observar que Manuel Marques de Souza III (1804-1875), o Conde de Porto Alegre, comandou as tropas brasileiras que derrotaram as tropas paraguaias, em Uruguaiana. A Batalha da Riachuelo tem algo em comum com a Batalha do Riachuelo. É o comércio. Os paraguaios queriam acesso ao mar, para ter acesso aos mercados do Atlântico. Na Riachuelo, os entregadores de mercadorias são personagens da batalha travada com os que utilizam a rua como meio de acesso ao centro. Ao ingressar na Riachuelo, já podemos divisar, quando não há nevoeiro, a esquadra inimiga, composta de caminhões e peruas de entregas. Para melhor defender a rua, eles atracam nas margens onde estão as placas com um “E” cortado por traços, que indicam a proibição de atracar ou fundear. A praia preferida é aquela que se localiza entre os afluentes Vigário José Ignácio e Marechal Floriano Peixoto, este também um personagem da Guerra do Paraguai. Hoje se encontram típicos produtos paraguaios nesses importantes afluentes da Riachuelo.

Ao contrário da Batalha do Riachuelo, a da Riachuelo não termina. Repete-se todas manhãs, com folga aos domingos, quando os que utilizam o rio como via de transporte, somem. Os navios que entregam bebidas na Riachuelo têm portas de acesso à carga nos dois costados. Curiosamente, e contra qualquer estudo estatístico, a carga sempre é retirada pelo bombordo, lado contrário à margem da Riachuelo, que fica a boreste. Algo semelhante a descarregar os navios pelo lado contrário ao cais, em plena água.

O movimento de cargas na Riachuelo, pela manhã, só tem comparação com o movimento do Porto de Rotterdam, na Holanda, o maior porto do mundo. Portanto, a Riachuelo dever ser o segundo maior porto de cargas do mundo. Pena que o tráfego dos navios não seja tão bem organizado, na Riachuelo, como o é em Rotterdam, onde só se pode atracar em locais e horários pré-estabelecidos.

O Comodoro Mesa nunca conseguiria tomar a Riachuelo de assalto, seja com nevoeiro, seja num dia limpo. Como falhou no Riachuelo, falharia na Riachuelo. Isto que o Almirante Barroso anda lá pelos lados da Floresta.

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9.1.07

Das Crônicas Raimundianas XIII - A Vida de André

Das Crônicas Raimundianas XIII - A Vida de André

Por Paulo Heuser

Raimundo não sabia que o nome dele era André. Tampouco sabia que ele existia. Nada sabia também da sua história. Até que foi tomar um sorvete, na Rua Reverendo Feridas, lugar chique, enquanto esperava pelo Japa. Comprou um daqueles sorvetes de pistache e frutas vermelhas, que quase não levam açúcar. Coisa deliciosa. Só não queria saber como faziam o de pistache. Imaginou que deveria ser feito a partir de um flan de abacate, sem sabor, misturado com essência de pistache.

Sentado à mesa da rua, no final de tarde, Raimundo viu aquele sujeito, não exatamente maltrapilho, mais para muito usado. Roupas simples e surradas, mas sem furos. Estava sentado no meio-fio, à distância de um carro, mais ou menos. O que chamava mesmo a atenção era o olhar do vivente. Olhava em todas as direções, como se estivesse esperando algo importante acontecer. Resmungava algo, ininteligível, por detrás da longa barba semigrisalha. Parecia-se com mais um daqueles pitorescos personagens da vida real, dos quais nada sabemos, nem queremos, na verdade. O resmungo assumia ares de discurso, quando levantava o queixo e o dedo indicador da mão direita em riste. Raimundo estava passando da bola de frutas vermelhas, que acabara, para a de pistache, no fundo do copinho, quando ouvi o grito:

- Você! Aqui?

Era o sujeito do discurso. E, o pior, olhava na direção de Raimundo. Ou melhor, na direção deles, pois deveria estar olhando para alguém sentado atrás mais adiante. Virou-se para olhar o provável interlocutor e... ninguém. Seria com Raimundo? Ele detestava pagar mico, portanto ficou na sua, enterrado na bola de pistache. Foi inútil, o homem continuou gritando:

- Não se lembra de mim? Sou o André!

Raimundo conhecera alguns Andrés na vida, mas aquele não era um deles, com certeza. Antes que pudesse reagir, o sujeito estava sentado na cadeira do outro lado da mesa.

- Qual é, não se lembra mais dos tempos de colégio? Você mudou, mas ainda consigo reconhecê-lo de longe.

Raimundo começou a rebobinar as memórias, em alta velocidade, tentando descobrir onde esse tal de André se encaixava. Após duas passadas completas, em ambas as direções, nada encontrou. No Colégio do Barão? Não, não. No Colégio dos Farrapos? Menos ainda. Ele falou em colégio. Não seria na universidade, portanto. Desistiu e voltou para a última colherada do pistache. Verde estava ele, com aquela situação desagradável. O sujeito sorria aquele sorriso de quem encontra alguém, há muito perdido. Ele continuou a preleção:

- Rapaz, por onde você andou? Nunca mais o vi.
– Nem eu - pensou Raimundo.

Quando alguém começava a lhe falar, que não reconhecia num primeiro momento, procurava sondar a sua identidade através daquela conversa genérica e atemporal, que se pode utilizar para falar com o açougueiro e com o Papa. Lá pelas tantas, o elo perdido se restaurava. Ou, pelo menos, ele não passava por tão antipático. O sujeito já não lhe parecia tão estranho e repulsivo. Começou a achá-lo familiar, até.

- Que tempos aqueles, hein? – o homem continuou sorrindo, enquanto abanava a cabeça, como que aprovando, os olhos perdidos, prescrutando algum lugar no passado.

- Você continua lá.... no... – Raimundo jogou verde, mais verde do que o sorvete. E colheu verde também:

- Tá louco? Eu não poderia continuar lá! Em lugar nenhum, por sinal. Você se lembra do que houve, não lembra? – agora lhe encarava firme, impossibilitando qualquer fuga.

- Ahã... – como ele sairia dessa?

- Bom, foi um prazer revê-lo, mas chegou minha hora, tenho de andar. – mentiu.

- Você sabe que eu enlouqueci, não sabe? – André fingiu ignorar a tentativa de fuga.
Nesta última colocação, Raimundo acreditou piamente. André – ele já o chamava pelo nome! – tinha cara de quem merecia conhecer Freud e Lacan, profissionalmente. Então, Raimundo começou a ficar com medo, realmente. Estava sentado junto a um louco declarado e pegajoso. Olhou para os lados, na esperança de que mais alguém sentasse por ali para ser reconhecido pelo ex-colega André. Ninguém à vista. Desolado, ficou ouvindo a estranha conversa do André.

- Você lembra como eu era, no Primário? – o cara era velho mesmo, pensou, estudaram juntos, hipoteticamente, no Primário.

- Eu era um riquinho da classe média burguesa e imperialista – continuou André - Ganhava presentes de Natal, coisa típica dos decadentes dominantes. E era feliz, muito feliz. Lembra da nossa casa, branca, com um grande gramado na frente? Casa linda aquela, ocupada apenas pela nossa família, numa atitude arrogante das elites direitistas decrépitos.

Raimundo imaginou que o homem era parente do Mao Tse-Tung, aliás, do Péssimo Tse-Tung, pelo visto.

- Eu caí na real quando entrei no grêmio estudantil do Primário, e conheci o Ernesto “Ho Chi Minh”. Ele estava tão envolvido com a atividade sindical estudantil primária que não conseguia passar no Admissão, exame para ingresso no Ginasial. E se passasse, o que faria lá? A especialidade dele era o Primário, um sindicalista estudantil definitivamente primário. Aprendi as primeiras noções de concentração de renda com o Ho – diminutivo revolucionário do apelido dele -. Ho sabia das coisas. Ensinou-me a não levar mais o lanche para o recreio. Logo descobri que o lanche era coisa da maioria opressora privilegiada. Recém ingressado nas minorias oprimidas do colégio particular, passei a da dar meu lanche ao Ho, enquanto pedia pedaços dos lanches dos outros, numa primária atitude popular de distribuição de renda. Passei a me vestir com o designer do Ho. Larguei as calças justas, e as camisas Volta ao Mundo, e passei a usar a primeira túnica estilo Mão, da cidade. As meninas decadentes, microssocialites, faziam chacota, apelidando-me Andréia “Jiang Qing” (mulher do Mao Tse-Tung). Maldade decadente, por causa da túnica. Lembre-se de que era um tempo em que não se podia sair à rua com uma raquete de tênis, sem ser chamado de Maria Ester Bueno. – ele parecia muito longe, no tempo e no espaço.

Antes que Raimundo pudesse dizer outro animador e encorajador “Ahãm”, ele continuou:

- Meu pai era arenista, rotariano, leonino e membro honorário da TFP – Tradição, Família e Propriedade. Um ultradireitista que dirigia um Aero Willys Itamaraty e sonhava em abrir uma franquia tupiniquim da KKK – Ku Klux Klan. Já era sócio honorário e fundador da NRA (National Rifle Association) Brazil, versão local, onde atiravam com espingardas de pressão. Quando cheguei em casa, vestindo aquela túnica, trazendo o Ho a tiracolo, mamãe desmaiou e papai enfartou. Tentaram me dar doses extras de sucrilhos e me obrigaram a ler pelo menos um volume de Seleções, por dia. Ho me salvou. Comia os sucrilhos, com leite e banana, e levava as Seleções para casa, me poupando dessa lavagem cerebral imperialista. Nessa época tive meu primeiro contato com a célula mirim do Partido Comunista Colegial Proscrito, o PCC-P. Fui o primeiro, e único militante da Frente Popular Sierra Maestra, núcleo de guerrilha suburbana de ataque às plantações de cana nos quintais das DSTCT – Decadentes Senhoras que Tomavam Chá à Tarde. Minha missão era incendiar os canaviais das imperialistas, gerando o caos econômico doméstico e a convulsão social estratificada, na classe média. O Ho apenas orientava, à distância, pois era muito visado. Apesar da militância revolucionária primária, acabei ingressando no Ginasial.

Sem notar, Raimundo acabou pedindo outro copinho de sorvete, desta vez para o André. Evitou o pistache, coisa de italiano facista, e mandou carregar nas frutas vermelhas, em respeito ao passado do homem. Ele comia, encantado com a cor, e falava ao mesmo tempo:

- No Ginasial a coisa ficou séria, conheci o Fernando “Che”, militante das VRPG – Vanguardas Revolucionárias Populares Ginasianas -, filiadas a CUT (corte, em inglês). Ali aprendi as técnicas de guerrilha urbana estudantil. Errava propositadamente o nome dos alunos, nas carteiras de estudante, e colava fotos de procurados, pela justiça, recortadas dos jornais, no lugar das fotos dos oriundos das famílias da classe média decadente. Todos, menos o Che. Ele precisava permanecer oculto, para o bem do movimento. Na carteira de estudante do Che, colei uma foto do Alain Delon, para ajudá-lo com as meninas imperialistas, que passavam as tardes comendo (ou tomando?) Gilda e ouvindo os gemidos orgásmicos de Jane Birkin em Je t’aime moi non plus. O supremo ato terrorista que pratiquei, naquela época, foi a detonação da bomba de gás sulfídrico (flato engarrafado) na sessão inaugural do filme Romeu e Julieta, cheia de freiras. Houve outros episódios, como a queima de todos os exemplares do Pequeno Príncipe, da biblioteca do colégio. A revolução estava no meu sangue, circulava pelas minhas veias. Passava as tardes colocando propagandas de modess, recortadas de revistas velhas, nas caixas de correio das decadentes DSTCT. Algumas tiveram ânsia de vômito, por causa das violentas fotografias. Vingança do proletariado, que exigia a continuidade dos paninhos higiênicos.

- Cheguei então ao Científico, antro que reunia a nata da elite imperialista decadente da classe média, que pretendia estudar Engenharia e Medicina. Nessa época ampliamos a ação do movimento, com as VaRePoS – Vanguardas Revolucionárias Populares Secundaristas, filiadas a UNE – União dos Nacional dos Estigmatizados. Foi aí que a coisa ficou pesada. Começamos a acompanhar as notícias veladas dos atentados e seqüestros promovidos pelos camaradas do centro do País. Assistimos ao Laranja Mecânica, com cortes e bolinha preta acompanhando as partes pudicas dos personagens, nas cenas de nudez.

A eloqüência de André cativou Raimundo, que já o considerava um íntimo.

- Sonhávamos com a Brigada Prestes. Cada cassação dos políticos de esquerda nos enchia de mártires e heróis. Passei a vestir macacão jeans folgado e camisa de flanela xadrez, vermelho e verde, com boina preta, sem ponta. O cabelo longo, descuidado, era outro símbolo da contra-cultura que ouvia os choros descornados de Joan Baez e os lamentos revolucionários de Mecedes Sosa. Já a Mercedes Benz era um alvo para os camaradas do Baden-Meinhof, que colocaram um punto finale no banqueiro Jürgen Punto. Da Itália vinham os feitos dos revolucionários intelectuais das Brigate Rosse. Os camaradas franceses explodiram a loja parisiense dos chocolates Godiva. Nossos heróis locais foram ao exílio, sofrendo os horrores dos vinhos e das culinárias chilena e francesa. Os coitados foram obrigados a estudar na Sorbonne! Sonhamos com a volta deles, no dia em que a revolução finalmente triunfasse no País, nos livrando do jugo capitalista e imperialista.

Raimundo estava tão absorto que não percebeu que outras pessoas foram chegando, pedindo seus sorvetes, e sentando ao redor. A voz firme e determinada de André os enfeitiçava. Todos ouviam em silêncio.

- Por favor, continue! – disse uma senhora, com ares de socialite que toma sorvete na Reverendo Feridas, no final de tarde.

A voz de André parecia revigorada pela súplica da dondoca:

- Cheguei à universidade, numa época em que os movimentos estudantis explodiam pelo País. O campus da USP foi invadido pelas tropas retrógradas imperialistas do governo. Mantivemos brigadas de resistência, as Libelú – Liberdade e Lupanares. Assistíamos aos proscritos filmes suecos nos porões do Prédio Velho da Engenharia, na Sessão Olho Vivo. Lembre-se que a Suécia era o modelo de comunismo perfeito. E também de sacanagem.

O dono da sorveteria se juntara ao público, que já ultrapassava as 100 pessoas. Alguém trouxe um banana-split para o André, que disse preferir um pijama havaiano da Nevada. Mesmo assim, comia com gosto. André comentou que um chope ia bem, no fim de tarde. Foi prontamente atendido, pelo garçom do bar ao lado, que se juntou aos convivas da sorveteria. André bebeu o chope de um só gole. Era o primeiro, em muitos anos. Prontamente apareceu outro, na sua frente. Ainda com o bigode cheio de espuma, André continuou:

- Sonhei em entrar no Partido Comunista, mas era muito perigoso. Os camaradas achavam melhor entrar no MDB – Movimento Democrático Burguês, que então abrigava todas correntes progressistas, mais ou menos à esquerda. O importante era estar à esquerda, seja lá do que fosse. Participei das queimas semanais do boneco do reitor, na universidade. Fiz diversos amigos bolivianos, no restaurante universitário. Se alguém entendia de pobreza, eram eles. E entendem muito, até hoje. Parece que aprendemos muito com eles. Nossos ídolos exilados continuavam a sofrer, no exterior, tendo de enfrentar culturas exóticas, como a francesa. Alguns foram obrigados a comer escargots e foie gras. Outros foram forçados a beber Veuve Clicquot. Não era de boa safra. Foi pura provocação. Tempos difíceis aqueles.

Um balconista, do armazém de virtuosamente secos e chiquerrimamente molhados, da outra quadra, que trouxera uma garrafa de Veuve Clicquot, a escondeu rápido, voltando com uma Moët et Chandon. Aparentemente acertou, pois André continuou:
- Saí do curso de Filosofia pronto para resolver boa parte dos problemas do mundo. Os três professores que não foram presos durante o curso, não compareceram à formatura. O reitor enviou representante. E a brigada de choque. Apesar de tudo, nós três, que não fomos presos, naquela semana, nos formamos. Os primeiros formandos de Filosofia em dez anos. A cana pintou depois, quando mostramos as bundas, com pinturas da foice e do martelo, ao público presente à cerimônia. Enquanto isso, nossos ídolos, heróis e mártires sofriam na França, obrigados a freqüentar aqueles horrendos cafés parisienses, onde somente os poodles eram bem-vindos.

André ficou quieto. Pensou um pouco e fez menção de se levantar.

- Por favor, senhor, não vá embora agora! O que aconteceu depois? – gritou uma mulher que ouvia tudo calada. A multidão já não cabia na calçada, perturbando o trânsito local.

André deixou seu corpo cair novamente na cadeira. Após um longo suspiro, deixou que o seu olhar se focasse novamente em algum ponto no passado.

- Começamos a conquistar espaço na sociedade. Riram de nós, no início. Investimos nos operários, criando sindicatos que acabaram lançando candidatos aos cargos eletivos. Nessa época, nossos pobres exilados retornaram e vieram engordar as fileiras dos movimentos sociais progressistas. As elites dominantes passaram da piada ao medo. Começaram a temer aqueles operários que falavam com a língua presa e a gramática liberta, erguendo multidões em comícios improvisados. Era a gente do povo que se rebelava contras os imperialistas da ditadura direitista. Conquistamos espaço. Criamos réplicas do MeCê Donaldo para queimá-las, antes mesmo de instalarem a primeira loja no País. Criamos movimentos sociais segmentados, os Sem. Lutamos contra a mecanização da agricultura, contra a globalização e tudo o que pudesse reduzir os empregos, mesmo que inexistentes.

O rosto do André mudou de expressão. Raimundo podia perceber que uma angústia muito grande tomara conta do improvisado narrador, que parecia encontrar alguma dificuldade para continuar. A mesma dificuldade que os agentes de trânsito enfrentavam para fazer o trânsito fluir na Reverendo Feridas, agora tomada por uma imensa multidão. Optaram por desviar o tráfego para as ruas paralelas, após a chegada das equipes de televisão. O programa do D’antena passou a transmitir as palavras do André, ao vivo, deixando de lado as enchentes paulistanas, pela primeira vez, em oito meses. André parecia alheio a tudo, pois fez menção de levantar, novamente. O coro “fica... fica...” tomou conta das redondezas. Podia ser ouvido como uma espécie de eco, vindo das janelas dos prédios próximos, e de outros nem tanto, tomadas de gente. André respondeu, frente aos inúmeros microfones:

- Eu não agüento mais... – foi calado novamente pelo coro do fica.

- Mas, eu preciso ir ao banheiro! – gritou ele, enquanto se levantava.

Fez-se o silêncio na Reverendo Feridas. Ele voltaria? Não tentaria fugir pelos fundos da banca de revistas que emprestara seu toalete? Uma espécie de patrulha improvisada ficou a vigiar. Um câmera da tv conseguiu subir num galho de árvore, para cobrir os fundos.

- O que é isso gente? Começou e agora vai fugir? Não tem coragem para assumir? – gritava D’antena, dos estúdios em São Paulo.

Quando André ressurgiu da porta da banca, ouviu-se um berro coletivo comparável àquele da cobrança do último pênalti, o que deu a vitória, na final da Copa. Raimundo não ousava tentar sair dali, pela curiosidade, pela pena que sentia do tal de André, e pelo medo de ser pisoteado pela turba. Os oportunistas de plantão não perderam a oportunidade de vender crepes de lagosta e churros de caviar. O estoque da sorveteria esgotara-se logo. Os seguranças privados da rua abriram caminho para que André pudesse retornar ao seu lugar, à mesa. Nesse meio tempo, colocaram um pequeno bufê sobre a mesa. André sorriu novamente. E continuou:

- Então os intelectuais voltaram do exílio. Foram comunistas, voltaram socialistas. Falavam na tal de socialdemocracia (pasmem, assim, segundo o Houaiss), coisa difícil de ser entendida pelos comunistas que ficaram aqui, os que não sofreram as agruras da França. Como eles sofreram tudo aquilo na carne, deveriam saber melhor o que seria bom para o movimento – retilíneo, uniformemente variado. Em queda livre, pelo visto. Queda livre dos dogmas marxistas, leninistas e trotskistas. Maristas também, vá lá. Os franceses inventaram uma nova arma progressista para ser usada no combate aos imperialistas: o lixo, montanhas enormes de lixo, acumulado nas ruas de Paris. Aqui não deu certo, pois já havia montanhas de lixo antes dos protestos. Ninguém percebeu a diferença.

- Cadê o prefeito, numa hora destas? O povo exige uma resposta! – gritava D’antena, no programa ao vivo. Alguém achou melhor avisá-lo de que os fatos narrados haviam ocorrido há muitos anos.

- Comigo não pega essa desculpa esfarrapada! É melhor inventar algo melhor! Ora, tá pensando que eu sou bobo? – D’antena continuava gritando enquanto fazia cara de mau para a câmera.

André nada sabia de transmissão ao vivo. Estava monologando com seu velho e hipotético colega de aula, cujo nome não lembrava, nem sabia. Creditava a ignorância, ou o esquecimento, aos medicamentos que haviam lhe dado. Olhou para Raimundo, do outro lado da mesa, separados agora pelo bufê, e falou:

- Após a queda das elites ditatoriais da direita, assumiu outra elite, também de direita, feito um terrível bando de vespas incendiárias. A seguir, fomos desmoralizados pelo pessoal do safári à indiana. Finalmente, fomos derrotados pela socialdemocracia. Caiu o Muro, ficamos fora de moda. As elites passaram a nos convidar para os eventos. Era chique confraternizar com os vermelhos, dizendo publicamente que votariam em nós. Tudo não passava de uma armadilha para nos dividir e desmoralizar. Precisamos de um operário, com cara de operário, não de galã de filme italiano, para nos levar de volta à esquerda rançosa que tanto cultuamos. Tínhamos orgulho do ranço, já que era um ranço que poderia tirar o País do atoleiro. Estávamos fazendo cross-country com pneus slick (carecas).

Nesse ponto, André calou-se. Sofria, não mais de vontade de ir ao banheiro. Era um sofrimento psicológico intenso. O silêncio só foi quebrado pelo espocar de algum champanha, aqui e ali. Ouvia-se ao fundo, bem ao fundo, o apito do agente de trânsito que já o desviava a duas quadras de distância.

- Como é que é? Incendeia tudo e agora se cala? – esbravejava D’antena.

André não sabia que estava sendo patrocinado pela cinta modeladora corpórea Crazy Pelanka. Tempo na tv era dinheiro. E D’antena sabia disso. O cara devia desembuchar logo.

A noite já entrava, quando André conseguiu vencer o sofrimento antecipado, devido à fala que se seguiria:

- Nos livramos da socialdemocracia para colocar um operário no poder. O País explodiu em festas populares. Foi carnaval em pleno outubro. Passada a festa inicial, descobrimos que os novos operários vestiam ternos pretos, sem haverem morrido. Inventaram os marxistas-keynesianos, que acreditam que “os adversários se enfrentem, desde que do mesmo lado”, os “leninistas de mercado”, conforme narra Serge Halimi em um artigo do Le Monde Diplomatique. Nossos heróis mostraram ter adquirido outras habilidades, discutíveis tanto nos regimes de direita como de esquerda. Mas, mesmo de terno preto, nossos operários continuaram sendo operários. Portanto, conseguimos reconduzi-los ao poder. Foi difícil explicar algumas coisas às bases das células do partido, mas mesmo assim, conseguimos. Usamos à exaustão o argumento de que os governos deveriam representar todos segmentos da sociedade, inclusive o dos imperialistas decadentes de direita.

A expressão de profundo sofrimento voltou ao semblante do André. Começara a falar cada vez mais baixo, como se o fôlego lhe faltasse. Empaticamente, o público aparentava sofrer com ele, desde as socialites até os flanelinhas, que perdiam renda, pela falta de carros. A Reverendo Feridas não era mais uma opção de trânsito. Apesar disso, não arredaram pé dali. André recebeu um bilhete, passado de mão em mão, até alcançá-lo. Era um convite de Opra Uínfrei, para uma entrevista exclusiva. Ele o leu, ignorando aquele número de muitos dígitos, lá escrito. Não estava gostando nada da situação. Viera consultar com o psiquiatra do convênio do partido e acabara nessa situação, enquanto aguardava o horário da consulta. Mas não poderia deixar de contar tudo ao ex-colega. Qual seria o nome dele? Parecia conhecê-lo tão bem. Comeu alguma coisa do bufê, que lhe fez pensar no quanto os capitalistas sofriam para se alimentar. O que, em nome de Lênin, seria aquilo? Aparentava ser petróleo, tinha cheiro de peixe podre e gosto de areia de uma mina de sal ao lado de um descasque de camarão. Será que aprendiam a comer essas coisas na França? Teve de engolir mais um chope para tirar aquele gosto.

- Agora parou para ler bilhetinhos e fazer uma boquinha! Enquanto o Brasil todo espera! Onde estão as autoridades neste momento? Cadê o Ministro das Comunicações? – D’antena parecia transtornado.

André cuidou, ao dizer as próximas palavras. Usou o mesmo tom de voz:

- Eu não estava preparado para descobrir que nosso líder tentaria dobrar seu próprio salário, e defenderia a idéia com unhas e dentes. Um comunista que achava que seu trabalho valia 64 vezes mais do que o salário de um operário que não vestia terno preto. Em seguida, tentei me matar. Não foi nem pelo deputado comunista. Eu não poderia imaginar quem era o candidato a ministro da agricultura. Nem um leninista-keynesiano poderia imaginar. Foi então que atentei contra a minha própria vida. Comi o meu primeiro xisburguer infantil, com brinde surpresa. Um palhaço.

D’antena ficou parado, quieto, apenas olhando para a câmera. Havia momentos em que o silêncio valia por mil palavras. Após alguns segundos, chamou o comercial da Crazy Pelanka. As pessoas começaram a deixar o local, de cabeça baixa, em silêncio, em respeito àquela pessoa que ali confessara coisas tão íntimas, como a própria loucura. Raimundo permaneceu sentado, com pena do homem. Subitamente lembrou-se por que estava ali. Estava esperando o Japa, que fora ao dentista, e não conseguira retornar, devido à multidão.

Ho, você por aqui? – gritou André.

O Japa virou-se para ver com quem aquele amigo do Raimundo falava.

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