26.1.07

Desaparecido

Desaparecido

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Por Paulo Heuser

Há gente que passa despercebida. Passa e fica, como um papel de parede humano. Está lá, mas ninguém nota. Pessoas que são extremamente normais, exageradamente normais. Não contam piadas, mas se as contassem, ninguém acharia graça. Ninguém nota quando saem, também.

Iracy era um sujeito desses. Até o seu nome era indeciso, serviria tanto para homem como para mulher. Ele chegava pontualmente ao trabalho, somente o relógio ponto percebia sua presença. Dava um inaudível bom dia, nunca correspondido. Sentava à mesa de trabalho, arrumando todos objetos cuidadosamente colocados sobre ela. Passava um pano umedecido no teclado da máquina de escrever, verificando se não deixara impressões digitais. O calendário, no canto da mesa, destacava o dia 20 de janeiro de 1972. Iracy trajava-se da mesma forma que vivia. Roupas neutras, em tom neutro. Caminhava rente à parede, nos corredores. Assim, não corria o risco de ser percebido por alguém que cruzasse seu caminho.

O primeiro sinal de que algo mudara veio do almoxarife. Perguntara sobre a remessa mensal de um rolo de fita para máquina de escrever. Pela primeira vez, desde que este trabalhava na Firma, o pedido não fora feito. O almoxarife estranhou tanto a ausência do pedido, que a relatou ao departamento solicitante. O responsável respondeu que fazia anos que ninguém solicitava tal item do almoxarifado, pois as máquinas de escrever haviam sido há muito substituídas pelos computadores. Estranho, pensou ele. Pela primeira vez reparou naquela mesa no fundo da sala, no canto, sobre a qual repousava uma máquina de escrever. A quem pertenceria aquela mesa? Perguntou a todos sobre o dono, mas a resposta era sempre a mesma. Ninguém havia reparado antes naquela mesa. Resolveu investigá-la. Abriu as gavetas, vazias. Nada, nenhuma pista. Restara apenas a máquina, o calendário amarelado, um grampeador e um furador de papéis. Tudo limpo e arrumado.

O gerente lembrou-se de verificar as placas de patrimônio dos bens. Consultou o setor de patrimônio que respondeu à pergunta informando o nome do solicitante: Iracy. Quem seria este, ou esta, Iracy? Ninguém se lembrava de alguém com este nome. Resolvido a desvendar o mistério, que já virara assunto das rodas de café, o gerente consultou o pessoal do RH. O gerente de pessoal disse não lembrar de alguém com esse nome, mas fez uma pesquisa no banco de dados de pessoal, por via das dúvidas. Ali estava, na tela. Iracy se aposentara, no dia anterior, após 35 anos de trabalho, sem uma falta sequer.

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