26.1.07

Jéferson e os Ovos

Jéferson e os Ovos

Por Paulo Heuser

Thomas Jefferson (1743-1826) foi o terceiro presidente dos EUA. Fica desde já esclarecido que não há laços de parentesco entre ele e Jéferson Uóterlu Mohamed, primo do Raimundo. O Jéferson vive atualmente no país que um dia foi os EUB – Estados Unidos do Brasil (Art. 1º - Constituição de 1891). Esta união, mais ou menos, depende dos investimentos das montadoras estrangeiras e dos incentivos fiscais.

Jéferson deu baixa no exército. Hora de arrumar um emprego. Nada, só bico. O tempo passando, o soldo terminando. Nada de transformá-lo em salário. Uóxinton Árlinton, pai de Jéferson, já andava com pena do rapaz. Tomou uma decisão crucial na vida de ambos. Passou a borracharia nos trocos, dando o capital ao Jéferson, que nunca mostrara vocação para o conserto de câmaras e pneus. Alegava não gostar de bacalhau. Grato, Jéferson caprichou no estudo de um negócio, ciente de que o pai investira cada tostão nele. Fez pesquisa de mercado, no Armazém do Pedrão e na Quitanda da Maria Feia. Leu revistas velhas, especializadas em aberturas de pequenos negócios, até se decidir por algo que parecia infalível. Ovos. Sim, ovos. Nome curto, formato geometricamente maravilhoso e, o mais importante, vivo. Sim, havia vida ali, uma enorme célula que podia ser comida crua, frita, mexida, pochê, dura. Fecundada, geraria um ser vivo, completo, inteligente, como a galinha. Só não se deveria deixá-la cruzar a estrada.

Jéferson aplicou o capital numa Marajó, com bons pneus, e contratou o primo, o Zigoto, que também perambulava atrás de emprego. Assim surgiu a DOAL – Distribuidora de Ovos e Assemelhados Ltda. Não sabiam o que eram assemelhados, mas daria pompa ao nome. Mais sonoridade. Jéferson sabia que boa parte do sucesso de um empreendimento se devia à sonoridade da marca. DOL era chocho, vazio, coisa de boneca na terra de Jefferson. DOAL enchia a boca, era sonoro, principalmente quando se abria e alongava o A - DOÁÁL.

Quando o telefone tocou, veio a primeira encomenda. Seis grosas de ovos. Eram 864 células gigantes. Vivas! Com casca, núcleo e protoplasma. Ranhento protoplasma, diga-se de passagem. Como que pisando em ovos, Jéferson e Zigoto passaram na granja, apanharam os protoplasmas, completaram o óleo da Marajó, e partiram para sua primeira missão – entregar aquela multidão na Quitanda da Maria Feia. Mulher que fazia jus à alcunha, verdadeiro parque de diversões para um estudante de cirurgia estética. Maria Feia tinha o rosto do Inimigo Meu, emoldurando o corpinho estilo Máique Táissom. Coisa de arrepiar lobisomem. A missão era simples, cerca de 12km. Dirigindo com extremo cuidado, Jéferson desviava dos buracos como podia, e a folga da direção permitia. Oitocentos e sessenta e quatro células dependiam da habilidade volante dele! Arrepiava-se só em pensar. Pena que houve a passeata dos cobradores que seriam substituídos por catracas. Quarenta graus e Jéferson e Zigoto presos no congestionamento. Será que não havia Marajó com ar-condicionado? Deveria ter comprado uma Belina. Quatro horas depois, quando estavam quase chegando à quitanda, encontraram a passeata dos cobradores revoltados com assaltos, que queriam ser substituídos por catracas. Mais três horas, chegaram finalmente à quitanda. Fechada. Bateram palmas, na porta, nada. Não poderiam deixar a carga ali. Eram responsáveis por 864 coisas vivas. Portanto, voltaram com a carga. A volta foi rápida.

Na manhã seguinte, após ouvir os xingamentos da Maria Feia, pelo telefone, saíram cedo. Antes por telefone. Pessoalmente, nem pensar. Não contavam com os aposentados. Eles acordam cedo. Adoram filas. Pois não é que os aposentados fizeram uma passeata para protestar contra o desemprego? Não estavam conseguindo colocação, no mercado de trabalho. Eles, como aposentados, deveriam ter a preferência no preenchimento dos cargos. Não lhes faltava a experiência! E a passeata dos aposentados desempregados empregara pessoas de idade, para dar uma imagem mais chocante ao movimento. Movimento lento, em decorrência. Lá estavam novamente Jéferson e Zigoto, na possante Marajó da DOAL, trancados naquele escaldante congestionamento. Zigoto gritava, pela janela: “- Vovô, não quer uma carona, para andar mais rápido?”. E aquelas 864 entidades aguardavam para virar mercadoria na Quitanda da Maria Feia. Prevenido, Jéferson trouxera muita água, para a Marajó, que ficava como muita sede, nesses eventos. Quando o último vovô, de 43 anos de idade, virou na esquina, foram-se em liberdade, apesar de condicional. Condicional porque o condicionante passou a ser a manifestação dos filhos de carroceiros, impedidos pelas autoridades de dirigir as carroças. Mandaram centenas de carroças, pilotadas pelos filhos. Mandaram, pois ficaram em casa. Às 21h39, em ponto, estacionaram em frente à quitanda. Fechada. Apenas um bilhete deixado pela Maria Feia. Dizia, em traços infantis, mensagem nada infantil: “Pode enfiar um por um...”.

Na manhã seguinte, Jéferson bebeu uma garrafa de leite de magnésia, no melhor estilo caubói, de um trago só. Limpando a boca na manga do avental, ele criou coragem e ligou para a Maria Feia, que despejou uma saraivada de invectivas de arrasar superquadras de Brasília. Após oito minutos de xingamento contínuo, sem hiatos, intersilábicos que fossem, Jéferson foi surpreendido pelo perdão, já que seria o aniversário da Maria Feia. Aliviado, Jéferson retomou a missão. Sozinho, pois Zigoto não comparecera. Teria sido o calor dos dias anteriores, dentro da Marajó? Três quilômetros depois, Jéferson descobriu a razão.
Os motoristas de ônibus, em campanha salarial, fecharam os corredores de ônibus, criando monstruosos engarrafamentos. No sol. Jéferson imaginava se os tripulantes dos tanques Panzer, dos Afrika Korps, haviam sofrido tanto, no deserto da Líbia. Aí pelas 16 horas, Jéferson sentiu um cheiro estranho, que não parecia o fedor característico exalado pelo escapamento furado da Marajó. Parecia algo mais... químico? Seria decorrente da troca da marca do óleo? O calor se sobrepôs ao cheiro, ou fedor. Dos males o menor, o movimento paredista - como seria um movimento, sendo paredista? – esvaziou a passeata dos ativistas da PazVerde, protestando contra a utilização de cavalos, como meio de tração para as carroças. Defendiam o uso de motores a hidrogênio, nas carroças. Reduziriam a emissão de metano. Jéferson acabou nem parando em frente à quitanda fechada, nem leu o cartaz que dizia “Jéferson Go Home!”. Também não teve coragem para ligar para a Maria Feia, no dia seguinte. Quem ligou, na verdade, foi a Tia Bombarda, mãe do Zigoto. Este não viria trabalhar, pois se encontrava em gozo de licença médica. Num surto de loucura, passara a jogar ovos em todo mundo que passava. Preso, acabou encaminhado ao atendimento psiquiátrico de urgência.

Enquanto Jéferson pensava no que fazer com as 864 entidades aninhadas no fundo da Marajó, o telefone tocou. O Pedrão lhe perguntava sobre a quantidade de ovos que ele tinha para pronta entrega. Oitocentos e..., foi a resposta. Pedrão mandou entregar, urgente. O Armazém do Pedrão era um pouco mais longe, mas valia a pena. Pena que a passeata das modelos em greve de fome trancou a saída da rua. E modelos desfilam nas passeatas, indo e voltando, como se estivessem numa imensa passarela. Para chamar mais à atenção, Fredy Rose, o estilista que alinhavou o movimento, preparou modelitos exclusivos para o evento. Foi um luuuxo! E terminou com um coquetel, com aqueles sujeitos que giram garrafas enquanto soltam fogo pelas ventas. Teve até deputado que veio de Brasília – a capital. O povo babou com aquele espetáculo. E Jéferson fritou na Marajó. Voltou, com as 864 entidades.

Dezoito dias depois, o milagre! Uma greve geral dos sindicados, formais e informais, paralisou todos movimentos sociais e anti-sociais de protesto. Os sindicalistas pleiteavam horas-extras, quando faziam piquete fora do horário contratual de trabalho. E fizeram a greve das greves. Não voltariam a fazer greves enquanto em greve. Ou isto, ou o contrário. Simples assim, nada negociável. Jéferson nem acreditou naquilo, nem reparou no fedor. Seguiu em louca corrida, tão louca quanto a Marajó permitia, 45km/h, em direção à sua primeira transação comercial como atacadista. Antes das oito horas, estava estacionando em frente ao Armazém do Pedrão. Estacionou e ficou sentado, fitando o infinito, com os dedos crispados no que restava da direção.

Pedrão estranhou quando os cães fugiram, rua abaixo. Normalmente acuavam quando da chegada de estranhos. Quando se aproximou da traseira da poderosa Marajó, começou a entender o porquê. Desatou o arame, que fazia às vezes de fechadura da tampa, e caiu para trás. Em parte pelo fedor de ovos podres que saiu dali, em parte pelo susto com a fuga dos 197 pintos sobreviventes. Acessórios.

E-mail: prheuser@gmail.com