19.1.07

A Realidade Consciente

A Realidade Consciente

Por Paulo Heuser

Heráclito de Éfeso da Silva acordou sobressaltado, naquela madrugada de 23 de abril. Por que nessa data, nem mesmo ele sabe. O fato é que acordou, como nunca havia acordado.Às 2h38. Viera à consciência, clara, nítida, assustadora. O primeiro sintoma da consciência foi o despertador, iluminando a completa escuridão com sua luz, tênue, azulada, fantasmagórica. Não foi a luz que o trouxe à noção de consciência, foi a consciência de que o despertador marcava algo que nada significava, realmente. Um tempo arbitrado, inútil. Ele acordou com a consciência de que nada mais era do que um cisco no olho do Universo. Nem sabia de onde brotara tal definição, mas fora suficiente então, perfeita naquele momento. Ficou sentado na cama, no escuro, tentando entender por que nunca pensara naquilo antes. Depois, voltou à rotina, sutilmente alterada. Apanhou o jornal, como fazia há milhares de manhãs, e sentou para lê-lo.

Vendo as manchetes, Heráclito percebeu que algo mudara. Nunca havia considerado aquilo tão idiota e hipócrita. Novamente aquelas mesmas notícias sobre o pessoal que sofria da amnésia pós-eleitoral. Os recém-eleitos alegavam não saber o tamanho da bomba que compraram, enquanto os reeleitos propagavam a boa nova, que nada tinha de boa, nem era nova. Por que acreditar naquilo? O mercantilismo opinativo, completamente hipócrita, era o que levava o jornal a trazer aquele asneirol, e ele a lê-lo, enquanto comia pão, a única coisa verdadeira, até então. Estava feliz por não estar comendo algo que viesse em caixas, de papelão ou de plástico. Seria impensável começar o dia comendo algo encaixotado. Aliás, seria impensável começar o dia, de qualquer forma. Seguia folhando o jornal, redescobrindo que os eleitos não se julgavam suficientemente recompensados, seguindo na disputa de quem lideraria a busca pelo prêmio em dobro. Hipocritamente, todos aceitavam aquilo. Qual seria o valor da opinião de quem é pago para opinar? Consciente de que nada mais seria igual, naquele dia, e, talvez, pelo resto da sua vida, Heráclito continuou folheando o jornal, cada vez mais consciente da sua consciente loucura. Percebeu, repentinamente, que pão e bananas eram as únicas coisas que tinha em casa que não traziam marca. Tinha consciência de que havia pão e bananas com marca, mas aqueles não. Eram genéricos. Sentiu o primeiro alívio do dia. Seria o único, também. A coca-cola tinha marca, evidentemente. Poderia haver uma genérica-cola?

Passando pelo caderno de esportes, teve consciência de que nada daquilo que lá estava era esporte. Esporte não era algo comercial, era apenas esporte, ficando, portanto, fora das colunas de jornal. Ali havia lugar apenas para quem pagava ou era pago. O que poderia levar alguém a torcer por um sujeito, que nem falava sua língua, regiamente pago, para vestir uma camiseta? E havia quem brigasse por isso. Delirasse por isso. Loucos pensamentos de quem acordara às 2h38, pontualmente. Porque haveria de acordar quando o despertador o determinasse?

Na seção de tecnologia, o lançamento de um novo traste eletrônico que permite acessar a bolsa de valores imediatamente após alterar sua cotação, através de uma entrevista que anuncia o lançamento de um traste eletrônico que permite acessar a bolsa de valores... E lá navegam as aposentadorias dos velhinhos norte-americanos que jogam golfe e não querem saber de trastes eletrônicos que permitem... Oh, uma boa nova finalmente! O laboratório Graxo-Benvindo acabou de descobrir uma droga que dá esperanças para quem não as têm, desde que possam pagar por elas. Antes, gastaram centenas de milhões de dólares – ou seriam euros? – para convencer a humanidade da sua infelicidade. Todo ser humano, ou não, somente será feliz se tomar doses diárias de Placebox Plenitudium. Infelizmente, há efeitos colaterais, que podem ser minimizados através de doses de NadaFarNiente, do mesmo laboratório. Há oferta de venda do conjunto. Ele lhe permitirá a leitura da seção de ciência, que traz as últimas notícias sobre o aquecimento global. Ao lado da seção de moda, que reflete o verão europeu. O que vestirão em 2050? Brincos?

Na seção internacional, Heráclito deparou com as novas dos socialistas que socializam a miséria, enaltecendo-a como virtude, como meta de vida. Querem que todo mundo vire franciscano, menos eles próprios. E os seus valetes e as suas damas. Falam, falam com a desenvoltura típica daqueles que não podem parar de falar, sob pena de verem reveladas suas falácias. Leu também sobre os bombardeios da paz. A notícia sobre a previsão de vendas na Páscoa foi o que o desestabilizou. Sua consciência não passou despercebida. Arrumaram-lhe um psiquiatra.

- Desde quando vem tendo esses pensamentos?

- Desde 23 de abril, às 2h38.

- Por que nesse dia?

- Por que não nele?

- Bem, o dia realmente não é importante...

- Não era dia, era noite.

- Bem, como você classificaria o que vem sentindo?

- Como loucura, é claro.

- Por que loucura?

- Porque sou o único que vejo a realidade.

- O que é a realidade?

- Aquilo que ninguém mais vê.

- Creio que posso ajudá-lo a enxergar as coisas de uma forma mais clara.

- As vejo claramente.

- Sei, se você aceitasse tomar o Alienix a realidade seria mais... normal.

Nem Heráclito, na sua consciência real, nem o psiquiatra, puderam imaginar o que viria a seguir, quando o Universo pingou aquela gota de colírio no olho. Colírio genérico que lavou os ciscos específicos.

E-mail: prheuser@gmail.com

1 Comments:

At segunda-feira, 22 janeiro, 2007, Blogger José Elesbán said...

Esta ficou realmente muito boa!

 

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