28.12.06

Das Crônicas Raimundianas XII - O Descanso

Das Crônicas Raimundianas XII - O Descanso

Por Paulo Heuser

Após um ano especialmente agitado, Raimundo mereceu um descanso. Optou por passar alguns dias no litoral, fazendo absolutamente nada. Queria ficar jogado numa rede, apenas lendo e descansando. Dormiria muito. Tomou a estrada na sexta-feira à tardinha, após o fim do expediente na Cotra. A maior parte dos funcionários sumiu aí pelo meio da tarde. Raimundo fingiu que nada via, colocando-se no lugar daqueles que passam apenas os finais de semana, no litoral. Ficavam com saudades da família.

Carregas as tralhas, lá se foi Raimundo, feliz com o tão sonhado descanso. Alugara uma casa espaçosa, pois o Velho e a família o acompanhariam. A viagem seria curta, se não houvesse aquele congestionamento na saída da cidade. Nem os outros. Mas, férias não permitiam estresse. Havia todo o tempo do mundo para chegar à praia, ou quase. As coisas até que não estavam tão ruins. Já percorrera dois dos 180km, em duas horas. Paciência, ar condicionado e uma boa conversa, foram suficientes para tornar imperceptíveis aquelas seis horas seguintes. Habilidade, também. Após deixar a auto-estrada, o motorista entra numa estrada curiosa, que exige habilidades especiais para trafegar. Construíram uma estrada com uma e meia pista de rolagem. Cabe um carro e meio ali. É necessário dirigir mantendo as rodas do lado direito sobre o limite do que seria o acostamento, com vento forte. Inevitavelmente, algum motorista não-iniciado resolve contrariar as regras informais de comportamento, provocando um engavetamento, pois a distância mínima entre veículos é reduzida à 12cm, com tempo bom, 18cm com chuva ou neblina. Dá para se sentir o mau hálito do motorista que vem atrás.

À meia-noite, Raimundo encostou o carro em frente à casa que alugara. Cansado, porém aliviado. Aquelas seis horas haviam passado, agora iniciaria o descanso. Iniciaria, se o vizinho defronte não houvesse planejado aquela festa country, que iniciou à 1h30. Trouxeram uma caminhoneta com imensos alto-falantes na parte traseira, e um amplificador de som digno de uma tele-mensagem por atacado. Raimundo nada notou, quando chegou. Deitaram-se lá pela 1h15, cansados, após Raimundo ter colocado as correntes e cadeados no portão, ter eletrificado a cerca, ligado o sistema de câmeras de vigilância e o alarme, e soltado os cães de guarda. Estavam ali para descansar, não para surpresas. Era o local próprio para descansar.
O primeiro indício de que algo não ia bem foi uma forte pressão no diafragma, seguida de outras, ritmadas. Recém-adormecido, Raimundo imaginou que iniciara-se um bombardeio. Após alguns instantes de confusão mental, teve coragem de olhar para fora, quando constatou que se tratava de uma festa no vizinho. Impossibilitados de dormir, Raimundo e o Velho quedaram-se em cadeiras de praia, no quintal, observando a festa. O Velho aproveitou para bebericar um drinque especialidade, agora com uma bala de goma amarela, simbolizando o verão. Acendeu um fedorento Cohiba, esfumando tudo ao redor, com longas baforadas. Raimundo descobriu-se admirando as garotas que dançavam uma espécie de quadrilha, vestindo minissaias, calçando enormes botas de couro, combinando com o chapéu de vaqueiro, do mesmo material. Estranha e temática combinação, ao som ribombante de uma marcha agroteutônica, fugida de alguma festa de peão boiadeiro das partes mais centrais do País. Raimundo dormiu, lá pelas 6 horas, sentado na cadeira de praia, devorado pelos pernilongos, derrotado pelo cansaço. O Velho não dormiu, apesar das generosas doses de drinques temáticos, cada uma com 250ml de aguardente fortemente amarelada, devido ao fumo em corda colocado dentro do garrafão. Às 7 horas saiu para comprar fogos de artifício, querendo comemorar o início do veraneio e o fim da festa. Às 7h17 estava estourando os primeiros foguetes, para a alegria dos demais vizinhos e dos recém-deitados festeiros. Raimundo caiu da cadeira no primeiro disparo. Mas, tudo bem, estava no litoral, local para descanso. Poderia dormir após o almoço, aquela soneca dos justos.

Raimundo foi ao mercado, buscar os insumos para o primeiro de muitos churrascos. Encontrou alguma dificuldade para estacionar. Outra, para entrar. A fila do açougue impedia a entrada dos fregueses. Tudo bem, não havia pressa mesmo, estava no litoral, local para descanso. Raimundo pensou que já pensara nisto antes. Até que aquela hora teria passado mais rápida, ou menos perceptivelmente, se houvesse ar condicionado no mercado. Aquele telhado de zinco não ajudava a refrescar o local. Em trajes de banho dava para suportar. Chegada a vez de Raimundo, o desdentado açougueiro lhe apresentou, orgulhoso, a carne restante. Raimundo a levou, acreditando que o tom azulado se devesse ao carimbo da inspeção sanitária. E que aquelas moscas congeladas não faziam parte do pedaço, apesar de serem pesadas com ele. Aquele foi o momento de descobrir por que havia outra fila enorme. Era a fila dos caixas. Às 14h30 Raimundo chegou em casa, no instante exato em que um caminhão descarregava equipamentos de som na casa do vizinho da direita. Tudo bem - pensou Raimundo -, poderia dormir um pouco após o almoço, antes da festa da noite.

O almoço foi de descontração, apesar do cansaço. O Velho assou a pelanca azulada, enquanto a defumava com o Cohiba. De vez em quando a regava com um pouco do drinque especialidade de verão. Como um estrangeiro já lhe dissera, ao ser apresentado ao autêntico churrasco gaúcho, carne temperada apenas com sal era comida de índio. Havia de se temperá-la com os temperos secretos do Velho. Raimundo recusou o drinque especialidade e optou pela cerveja, ainda não bem gelada, mas cerveja, bebida universal do litoral, local para descaso. Haveria muito tempo para outras, mais geladas. E um pequeno aviso, no pacote da carne congelada, que dizia: “Imprópria para consumo humano. Para uso em ração animal”. Raimundo queria devolvê-la, mas o Velho não deixou. Afinal, se alguém entendia de boi, era o próprio boi. Se o boi a comia, por que não eles? Raimundo acabou comendo a salada e um pedaço de pão. Haveria tempo para outros churrascos, para consumo humano, inclusive. Afinal, estava no litoral, local para descanso.

Após algumas cervejas, a última quase gelada, Raimundo pediu licença para descansar. Tomaria uma ducha fria e cairia na cama. Pena que faltou luz. Poderia até tomar uma ducha fria, se houvesse água. Com a falta de energia, a bomba parou. O banho que se danasse, queria mesmo era dormir, pois estava praticamente sem dormir havia mais de 36 horas. E estava no litoral, local para descansar.

Raimundo pegou no sono instantaneamente. O pesadelo veio rápido. Acordou meio minuto depois, com o som estridente da buzina do caminhão que trazia vendedores de redes artesanais. Milhares de redes artesanais do Ceará. O Velho ficou interessado na mercadoria, examinando minuciosamente diversas peças, enquanto nelas caiam cinzas do Cohiba. Houve um princípio de incêndio, que fez o sogro do Raimundo perder o interesse. Não compraria redes sujas de cinzas e apresentando furos de queimados. Não era trouxa.

Os vendedores de redes deixaram a rua no momento em que o caminhão das Rapaduras Patiné a adentrava, trombeteando jingles e anúncios para os quatro ventos, que sopravam predominantemente do setor nordeste. “Rapadura, pé-de-moleque, puxa-puxa, marshmallow, a marca é Patiné!”. O caminhão parou umas três vezes, sem parar o som. Apesar dos olhos marejados pelo sono e pelas cervejas, Raimundo não conseguiu dormir enquanto o caminhão espalhava todo aquele ruído. Nem logo após, quando passou a perua dos vendedores de cabides fálicos, espantosos criados-mudos cheios de projeções de aparência suspeita.

O sono finalmente venceu, Raimundo desmaiou. Não chegou a ver a passagem dos ciganos vendedores de panelas, dos vendedores de olhos de sogra, de picolés e sorvetes. Entrara numa espécie de coma induzido pelo instinto de sobrevivência. Acordou, sobressaltado, com a frase “A lâmina da espada do Senhor cortará a cabeça dos pecadores!”. Que pesadelo horrível! - pensou ele. Era tão real, que os olhos continuavam lacrimejando. Pareceu mais real quando os gritos estridentes se sucederam, sempre elevando o tom e as ameaças de punição celestial. Um grupo de pregadores da Igreja das Punições Litorâneas Eternas ocupara a praça, próxima dali. Ainda bem que o som alto de música infantil abafou a pregação da praça. Som da festa infantil que se iniciava, no vizinho da direita. Havia um animador na festa, que narrava tudo o que acontecia. Após 12 execuções de Atirei o Pau no Gato, veio o Parabéns a Você. A essas alturas, Raimundo já pensava em fazer justiças com as próprias mãos, estrangulando o felino, se ainda tivesse forças para tanto. O animador da festa foi avisado de que um irmão do aniversariante fizera aniversário, havia um mês. O mais estranho é que haviam nascido no mesmo ano. São coisas de praia. E assim seguiram-se os comunicados de outros aniversários, de outros parentes e amigos, em outras épocas. O narrador continuava cantando o Parabéns, a cada novo anuncio. E olhe que havia gente naquela festa! Trinta e sete Parabéns depois, a festa seguiu, com outros sucessos musicas infantis, como os Shows da Xuxa, do I ao XXIII.

Festas infantis não são mais como eram. Não costumavam durar até a meia-noite. Exausto, com ressaca, Raimundo certificou-se do funcionamento do sistema de segurança e foi dormir, finalmente. De tão cansado, não conseguiu. Ainda bem, pois seria acordado, logo a seguir, pela festa-vingança do vizinho da esquerda, em retaliação à festa da noite anterior, do vizinho em frente. Fizeram uma roda de pagode na parte da frente do quintal. O Velho não se fez de rogado, foi ensinar o pessoal a preparar os drinques especialidade de verão. Levou apenas um saco de balas de goma sabor abacaxi. A aguardente foi fornecida pelos convivas. Aí pelas 2 horas a dona da festa começou uma sessão de karaokê, embalada pelos drinques do Velho. A lua cheia, levemente encoberta pelas nuvens, combinou com os ganidos musicais da dona da casa. Raimundo desmaio novamente, às 5 horas. Às 6 horas acordou, pois o Velho resolveu saudar a chegada do dia, batendo tampas e panelas, enquanto ouvia o seu programa radiofônico dominical preferido.

Conformado com a impossibilidade de dormir, Raimundo resolveu acompanhar o pessoal à beira da praia, apesar de não gostar muito de lá. Talvez conseguisse tirar um cochilo. Percorreram a pé as 11 quadras que os separavam do Oceano Atlântico, chegando à tão sonhada, e disputada, beira-mar. Não havia muito espaço livre para armar acampamento, pois a praia já estava bastante populada, parecendo-se com um mar de panos coloridos. Além dos guarda-sóis, espalhavam-se gazebos de todas as cores. O que ao longe se parecia com bolas coloridas rolando na areia, eram guarda-sóis, rolando ao vento. Conseguiram em espaço de quase dois por dois. Suficiente para armar o guarda-sol e colocar as cadeiras. E próximo da barraca onde se vendiam bebidas e petiscos.

Avesso ao sol, Raimundo besuntou-se com bloqueador solar, antes de se deitar para dormir. Teria sido mais fácil, se não fosse o pessoal da área ao lado, que insistia em jogar frescobol em meio às barracas. O cachorro deles, que corria latindo atrás da bola, passando por cima de tudo e de todos, causou especial irritação. Tanta irritação que Raimundo resolveu experimentar os drinques especialidade do Velho. Este ia prevenido, levando copos de requeijão, um garrafão de aguardente e as balas de goma amarelas. Raimundo empinou um copo, estilo caubói, na seca. A coisa bateu feito martelo na bigorna, nocauteando-o. Assim, não chegou a perceber a inusitada transparência apresentada pelo guarda-sol da loja de um e 99. A vendedora comentara algo sobre poder se bronzear, mesmo sob o guarda-sol, mas ele não prestara atenção. Também não percebeu, logo, que não fora uma boa idéia comprar o bloqueador solar no camelô.

Acordou às 14 horas. Não foi bem um acordar, estava mais para uma tentativa de ressuscitar. A infame dor de cabeça se confundia com a ardência na pele, dificultando a seleção da pior sensação. A boca seca impedia qualquer som. Aceitou de bom grado aquele salvador copo d’água que lhe alcançaram. Não deu tempo para perceber a bala de goma, no seu interior. Nem que o copo era de requeijão. O Velho lhe alcançara mais um copo de drinque especialidade de verão. A ardência logo foi identificada como conseqüência de queimadura solar. A sogra, mulher do Velho, recomendou-lhe um banho de mar, para aliviar a ardência. Na falta de qualquer idéia melhor, Raimundo tomou o rumo leste e cruzou um campo minado por barracas, cadeiras, cocos de cachorro, e pelo buraco. Um buraco cavado pelos anjinhos de uma barraca próxima e coberto com um pedaço de papelão, disfarçado pela areia fina. Raimundo pisou com vontade no buraco, caindo a seguir sobre uma senhora que lhe encheu de ossos, literalmente. Comia uma galinha na farofa. Desculpas daqui e dali, Raimundo conseguiu chegar ao mar, agora também manco, além de intoxicado e queimado. Até que a sensação da água gelada aliviava a sensação de queimadura. Menos na perna direita, onde os tentáculos da mãe-d’água passaram. Gemendo de dor, Raimundo não percebeu a aproximação do surfista mirim que lhe acertou a prancha, por trás. Caiu ao sabor de uma onda, rolando e lixando a pele queimada, no fundo do mar. Chegou a ouvir o comentário, feito por uma mãe que banhava o filhinho: “tem adulto que não se enxerga!”. Realmente, ele quase nada enxergava, de tão inchado. Deu à praia, chorando copiosamente. O Velho percebera a confusão instalada à beira-mar e foi conferir. Encontrou Raimundo sendo auxiliado pelo salva-vidas e por um médico que, avaliando seu estado, achou melhor mandá-lo à capital, para alguns exames. O sogro ligou para o Japa, na Cotra, que providenciou um helicóptero para transportar Raimundo a um hospital com bons recursos.

Às 20 horas, no Hospital das Cínicas, a família ouviu o veredito da equipe médica multidisciplinar: Raimundo estava sofrendo de um profundo estresse pós-traumático, com diversas seqüelas físicas. A recomendação era uma só: descanso, muito descanso.

Tiveram a idéia de levá-lo ao litoral, local perfeito para descanso.

E-mail: prheuser@gmail.com