20.12.06

O Oráculo

O Oráculo
Publicada no jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 27/12/2006
http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=67490&intIdEdicao=1042

Por Paulo Heuser

A vida de oráculo é difícil nesta época do ano. O número de consultas aumenta muito. A complexidade das questões, também. Somos o SPC das esperanças. O Ano Novo acabou se transformando em uma espécie de época de indulgências. As promessas não cumpridas acabam sendo esquecidas na virada do ano. As frustrações são zeradas durantes as orgias. São coisas do passado, do ano que passou. Tudo será diferente em primeiro de janeiro. Como sempre foi, nos anos anteriores. Não deu certo neste ano? Dará no próximo, com certeza. Se não der, joga-se para o seguinte.

O Ano Novo é uma barreira temporal que impede a perpetuação das coisas indesejáveis. Contudo, as pessoas não confiam cegamente no Ano Novo. Razão suficiente para consultarem os oráculos. E não é de hoje. No início dos tempos, os deuses respondiam às perguntas diretamente ao cliente, por meios às vezes estranhos. Através dos sonhos, por exemplo. Zeus resolveu delegar atribuições e passou a prever o futuro por meio dos humanos. Criou as figuras do chefe e do atravessador de adivinhações. Ele se manifestava aos sacerdotes, que deviam andar com os pés descalços, e não podiam lavar os pés. Terá também inventado o celibato, circunstancialmente?

Afrodite não gostava de dizer as coisas duas vezes. Lia o futuro nas entranhas e no fígado dos clientes. À pergunta sobre a vida após a morte, não havia de responder. O cliente obtinha a resposta antes desta ser revelada, durante o processo de obtenção do material para a leitura. Seus clientes nunca retornavam. Até que alguém teve a idéia de terceirizar essa parte do processo. Quem podia pagar por um, levava um escravo para fornecer o kit leitura. Quem não podia pagar, fornecia mesmo. Azar o seu, quem mandou ser pobre. Esperto mesmo foi quem passou a levar pombos e outros animais. Garantia uma certa sobrevida, apesar de postergar a resposta à pergunta sobre a vida além da morte.

O oráculo de Delfos foi mais um exemplo de empreitada que cresce até que a concorrência também cresce. Foi muito popular até o período cristão. Apolo, o dono do lugar, havia contratado uma intérprete – a pítia. Pois os cristãos a difamaram. A acusaram de histeria e de ser usuária de drogas. Apolo acabou contratando Putarco, que se tornou gerente do templo.

Hoje os tempos e os templos são outros. Não se faz mais necessário sacrificar animais, nem o permitem. As perguntas também são outras. Algumas nem consigo entender. Outras carecem de seriedade. Noutro dia, um sujeito apresentou a seguinte questão: “os calvos têm melhor desempenho sexual?” Deu vontade de responder de acordo com o que veio à cabeça na hora. Mas, oráculos não podem ser sarcásticos, cínicos nem parciais. Devem consultar os deuses e transmitir as respostas, nuas e cruas. Somos apenas intermediários. Na semana passada um sujeito importante, um cônsul, perguntou sobre o máximo aumento, do próprio salário, permitido pelo povo, sem provocar uma revolução. Transmiti a questão, recebi a resposta e a repassei. Coisa simples, na verdade. Não entrei no mérito. Responderam na forma de um cálculo matemático: 367-350=17. Cabe ao cliente interpretá-la.

Se eu trabalho com Apolo? Não, Apolo se foi há muito. Google tomou o seu lugar. Não só em Delfos, em toda parte.

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