4.12.06

Resbo Diferenciado

Resbo Diferenciado

Por Paulo Heuser

Enquanto almoçava hoje, não pude deixar de observar aquela variedade toda de comidas, para agradar qualquer gosto, desde o macrô-xiita até o mais terrível predador carnívoro. Hoje, quem tivesse um gosto muito eclético poderia servir-se de língua ao molho madeira e bobó de camarões, combinação algo inusitada.

Já quem come comida de caixa, aquela congelada, não tem a mesma sorte. Ainda, note que é ainda, não inventaram um bufê congelado. Já pensou, uma caixa longa e estreita contendo cubas de plástico recheadas com os mais diversos pratos? O rótulo poderá indicar que a caixa contém oito pratos quentes e dez frios, em porções individuais. À noite, toda família reunida ao redor do Orkut, na cerimônia do jantar. Cada um recebe sua caixa, recém saída do microondas, direto para o microcomputador. Microporções de um bufê. Para beber, embalagens individuais de papelão, forradas com alumínio.

As comidas em caixas apresentam um grande problema. Ou não têm gosto, ou têm gosto demais, de caldo em cubinhos com muito sal. Se alguém experimentar o conteúdo de caixas diferentes, de olhos vendados, dificilmente descobrirá o que há realmente lá dentro. Descobrirá apenas que está comendo algo pastoso com muito sal. A comida de caixa nunca está crocante. Está sempre pastosa. Não sei como conseguem vender aquelas coisas. Deve ser pela fotografia da comida, na embalagem. Pela degustação conseguimos descobrir se um alimento é doce, salgado, amargo e ácido. Combinando estas sensações com o odor e a aparência do prato, formamos um gosto característico. Pois a comida de caixa tem gosto, cheiro e aparência de caixa. E ficamos com aparência de caixa, após comê-la muito tempo.

Se eu fosse um homem de mercado, dessas comidas prontas, apelaria para outros atributos. É difícil de se associar, com as caixas, lindas mulheres, pulando na piscina, e sarados rapazes surfistas. Nada que está contido naquelas caixas lembra saúde e beleza. Há de se criar algo próprio, para dar alguma identidade às comidas. Se nada ali existe para aguçar as papilas gustativas, com algum diferencial, crie-se algo. Não havendo gosto, haja resbo. Como o resbo não existe, pode ser facilmente acrescentado ao alimento pronto de caixa. Basta fazer uma boa campanha publicitária. Imagem é tudo, desde que tenha resbo. Não um resbo qualquer, aleatório. A comida de caixa para surfistas deverá levar resbo marinho. A comida para sarados de academia deverá levar resbo muscular com suor. Que isto fique bem identificado na embalagem: “Contém resbo de Praia Mole”, ou “Contém resbo de abdominais”.

Alguém mais pessimista, ou mais positivista, poderá questionar o sucesso da campanha, já que o resbo não existe, concretamente. Contudo, ninguém poderá questionar a existência de atributos metafísicos de uma insurgente realidade paralela, exatamente no que deverá estar focada a campanha mercadológica. No frigir dos ovos, a única coisa que interessa é permitir que as pessoas enxerguem a necessidade de sentir o resbo dos pratos. Quem não sentir resbo não merece ser considerado um ser incluído na sociedade moderna de consumo.

De nada valerão os carros caros, roupas de finas grifes, e tudo mais que se compra com o dinheiro, se não houver resbo. Quem não sentir resbo será condenado a comer comida fresca. Que a campanha deixe isto bem claro também. Na cena um, um lindo e sorridente casal come lasanha de caixa, após uma cavalgada pelos jardins do castelo. Na cena dois, um casal tristonho e feio come pratos de um bufê, após a pelada de futebol dele. A mulher do casal da cena um faz um biquinho provocante, enquanto sussurra que só um homem de sucesso pode aproveitar o resbo. A mulher da cena dois grita para o marido, por sobre as cubas do bufê: “Não agüento mais bóia fresca!”. Campanhas de cartões de crédito poderão dizer que “Resbo não tem preço”, tudo o mais pode ser comprado com o ResboCard. A grife de lojas ResboLand venderá apenas comida congelada, em caixas. Com a milhagem acumulada com o ResboCard, em gastos nas ResboLand, o consumidor poderá comprar passagens e estadias no ResboSpa – clínica para praticantes da vida sedentária que comem apenas alimentos de caixa.

As lojas ResboLand promoverão cursos de derresbação – equivalente à degustação. Assim como há o retrogosto, haverá o retrorresbo. Especialmente nos vinhos envasados em embalagens de papelão. Após fazer biquinho, o enólogo encaixotado irá tecer os comentários de praxe, como: “apresenta retrorresbo prolongado e persistente de húmus selvagem, com traços de chocolate refeição e frutas vermelhas com canela e mocotó”. Coisa para quem tem uma sensibilidade ímpar. Admiro essa gente. Fazem o vinho valer muito mais do que pagamos por ele. Seja como for, o que importa é o resbo, o resto é apenas gosto. O que conta é ter bom resbo na hora da escolha.

E-mail: prheuser@gmail.com