24.11.06

Infortúnio dos Afortunados

O Infortúnio dos Afortunados
Publicada no jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 27/11/2006
http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=65743&intIdEdicao=1017

Por Paulo Heuser


“Não é reduzindo o salário dos parlamentares que vamos compensar o salário de todas as pessoas que recebem o mínimo.” – elucidativa manifestação de um nobre representante do povo na Câmara Federal. A tese defendida pelo nobre representante é a de que o acréscimo representado pelo aumento do salário dos congressistas, que passaria de R$ 12,8 mil para R$ 24,5 mil, nada representa, quando comparado com a soma dos vencimentos daqueles que percebem o salário mínimo.

Pobres parlamentares, eternamente incompreendidos pelo povo que lhes outorgou o poder de legislar em nome de outros, não propriamente daqueles que lhes conferiram este poder. O que poderia esperar esse povo – esse de distante – se os conduz repetidamente ao Congresso, apesar de tudo que se vê, se ouve e se lê? Isto quando se lê, já que esta capacidade funcional foi subtraída da maior parte da população. Se não bastasse a incompreensão por parte dos seus representados, soma-se a de algum colega de infortúnio que se levanta, incompreensivelmente, contra o mais do que justo aumento. Será um louco travestido de São Francisco de Assis? Logo às vésperas do Natal? As compras de dezembro só aparecerão na fatura do cartão no ano que vem.

O infortúnio dos nobres representantes do povo não cessa por aí. Há incompreensão também por parte da imprensa internacional. O Jornal El Pais, da Espanha, publicou matéria com o título: “La fortuna de ser diputado” – A sorte de ser deputado -, em 15 de novembro de 2006, a respeito da situação econômica invejável dos deputados brasileiros, na opinião daquele periódico. Como alguém que vive num continente como a Europa vai poder julgar se R$ 8,3 mil por mês para pagamento de passagens é um exagero? Sabem lá eles o que é voar nos céus brasileiros nos dias de hoje? Emoção comprável através do cartão de crédito. Poderá um espanhol dizer que R$ 92,9 mil mensais, acumuladas todas as benesses que cominuem o sofrimento parlamentar, é um rendimento exagerado? O artigo de El Pais menciona um manual de 330 páginas que explicaria como utilizar os cerca de 180 serviços oferecidos pelo Congresso aos seus infortunados membros.

Fico a imaginar como seria o MBP – Manual de Benefícios do Povão. Um planejamento econômico de como se deve gastar R$ 350 por mês. Discute-se o novo mínimo, que será de R$ 367, pela proposta do governo. Colocados lado a lado, o manual do congressista e o MBP, comporiam um díptico hiper-realista entre a boa fortuna e o infortúnio.

Afortunados somos nós, pois além dos inestimáveis serviços prestados pelo Congresso, contamos também com os serviços prestados pelos bombeiros. Quanto perceberá um bombeiro, que arrisca diariamente a própria vida para salvar a vida dos usuários do estranho díptico formado pelos dois manuais?

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