10.11.06

Rudi e a Liberdade

Rudi e a Liberdade

Por Paulo Heuser

A Natureza faz do homem um ser natural; a sociedade faz dele um ser social somente o homem é capaz de fazer de si um ser livre.”
Rudolf Steiner (1861-1925)

Pois é, o Rudolf estava coberto de razão, pelo menos em dois terços, quando disse essas palavras na palestra proferida em Oxford, em 1922. É bom chamá-lo de Rudolf, dá a intimidade necessária à análise do seu trabalho. Rudi apenas é ainda melhor. Rudi foi um filósofo austríaco, nascido na Croácia, pai da pedagogia Waldorf – não da salada. Há três afirmações na célebre frase do também célebre Rudi. Sou obrigado a concordar com as duas primeiras. Dois pontos para Rudi. A terceira, no entanto, é bastante discutível, até em função das duas primeiras. Disputo aquele ponto com Rudi. Pago para ver. Viu só, a intimidade já me permitiu peitar o Rudi.

Consubstancio minha tese, a respeito da terceira afirmativa, nas duas anteriores. O homem é um ser natural quando bebê – quando bebe também –, quando está sozinho e quando está senil. Os bebês fazem exatamente o que lhes dá na veneta. Fazem xixi e coco quando lhes dá vontade. Dão risadas em velórios, jogam comida onde bem entendem. As crianças na idade dos porquês sabem ser extremamente sinceras. Constrangedoramente sinceras, deixando mamãe e papai em maus lençóis, quando a tia estrábica e perneta vem visitar os pimpolhos.

Homens sozinhos agem naturalmente. As mulheres sozinhas dizem que agem socialmente. Estando sozinhas, como comprová-lo? Eles bebem coca-cola de litrão no bico quando estão sozinhos. Andam vestidos apenas de cuecas pela casa e guardam a louça suja na geladeira, para não precisar lavá-la. Há outros hábitos que somente se revelam quando sozinhos ou quando estão dirigindo, como o de tirar tatu do nariz. Os homens deixam de ser seres sociais quando estão no trânsito. Entram numa feroz disputa pelo espaço à frente e nos flancos. Carros não têm laterais, têm flancos, pois estes parecem mais bélicos. A frase “cuidado com o carro que está lhe ultrapassando pelo lado esquerdo” se transforma em “destrua o invasor que se aproxima pelas oito horas zulu”. Zulu, horas zulu, como nos filmes de comandos de guerra. Ao estacionar o carro no escritório, nosso homo naturalis se transforma novamente no homo socialis, que abre portas para outros, dá passagem à frente e pelos lados, não mais pelos flancos. O homem senil volta à constrangedora naturalidade apresentada pela criança.

Bato de frente na afirmação: “somente o homem é capaz de fazer de si um ser livre”. Ora, somente o homem sozinho é capaz de fazer de si um ser livre. O homem em sociedade está preso às convenções sociais. Ninguém civilizado toma coca-cola de litrão, no bico, em pleno restaurante. Muito menos da jarra d’água da geladeira. Qual é o homem casado que pode guardar a louça suja na geladeira? O homem sozinho chega a ter duas geladeiras, uma para a cerveja, outra para a louça suja. Conheci um verdadeiro homem sozinho. Passava os finais de semana numa casa flutuante, sobre um rio. Dizia que lavar a louça não era um trabalho digno nem construtivo. Simplesmente jogava a louça suja pela janela, dentro do rio. Homem sozinho não arruma a cama. Não está estragada, por que arrumá-la? Homem social sonha utopicamente com a possibilidade de assistir ao jogo na tv, deitado no sofá, comendo pizza com a mão, bebendo cerveja no bico, usando a cortina como guardanapo. Sem esquecer dos sonoros arrotos comemorativos das melhores jogadas. Coisas que apenas o finérrimo homem sozinho pode fazer. É o único livre.

Lamento Rudi, mas este ponto é meu.

E-mail: prheuser@gmail.com