27.10.06

Cozinha Frugal

Cozinha Frugal

Por Paulo Heuser

Uma das maiores contribuições da Itália para o mundo foi o risoto. A maior foi a mulher italiana, sem dúvida. Rasgações de seda à parte, o risoto é um prato fantasticamente simples e sofisticado ao mesmo tempo. E pode-se fazer risoto de qualquer coisa. Cogumelos, frutos do mar, carne, tomates secos, morangos, tudo vai bem no risoto. Tudo mesmo. Folheando o caderno de gastronomia do jornal, constato que é verdade.

Mais uma das intermináveis receitas de risotos: 400g de arroz italiano, 200g de abóbora, 200g de urtigas frescas, sal a gosto, etc, etc. Tudo básico. Dos itens relacionados, só não tenho as urtigas frescas. Sempre posso apelar à vizinha: “Bom dia Dona Heloisa, a senhora não teria urtigas frescas para me emprestar? Hoje me pegaram no contra-pé, esqueci de comprá-las com o pão e o leite”. Dei-me mal, ela usara o resto no suflê de ontem. Se a vizinha não as tem, vamos ao mercado então. “Boa tarde! As urtigas estão fresquinhas?”. Esperava que dissessem: “Estão sim, o rapaz que as trouxe está cheio de urticárias, só de colhê-las!”. Mas ouvi um: “Estamos em falta, uma senhora passou por aqui e levou tudo!”. Seria a Dona Heloísa?

Ponto e barra de retrocesso. Urtigas frescas?

Li novamente, não seriam formigas? Não, são urtigas mesmo, frescas ainda por cima. Deve se tratar de um risoto realmente estimulante. Não, estimulante é fraco, urticante talvez seja melhor. Se a Banca 643 do mercado não as tem, aonde irei encontrá-las? O Seu Zé me sugeriu procurá-las no mato. Boa idéia, como descubro que cara tem uma urtiga? Esfregando as folhas na mão? Sempre há aquelas histórias sobre alguém que estava “apertado” e acabou descobrindo empiricamente a cara da urtiga, não exatamente na cara.

Caso não as encontre, haverá substituto? Os chefes de cozinha dirão: “Sem urtigas frescas, esqueça!”. Como não sou chefe da cozinha, ocorreu-me que poderia haver um substituto mais fácil de se obter: rúculas. Já sei, rúculas não queimam como urtigas, nem tem cara de urtigas. Aí é que entra a criatividade culinária. Urtigas queimam porque contêm ácido fórmico, produzido pelas formigas vermelhas (e pelas urtigas). Basta um pedaço de pão para atrair as formigas. Depois é só centrifugá-las, em qualquer centrifuga, dessas de laboratório mesmo, e extrair o ácido por destilação. Pode usar o destilador de pinga do vovô. Aspergindo o ácido sobre as folhas, - Voilà - temos urtigas sintéticas frescas. Como apenas o sujeito “apertado” deve lembrar-se da cara da urtiga, e olhe lá, a rúcula fórmica passa despercebida.

Está querendo saber por que alguém em sã consciência colocaria urtigas na receita? Bem, não sei a resposta. Tem algo a ver com o dia das bruxas. Certo, alguém que ofereça um prato desses só pode ser chamada de bruxa. O argumento de que a fervura retira o ácido não é muito convincente. Alguém deve ter provado esse negócio antes e errado o ponto de entrada da urtiga. Silenciou sobre o assunto. Ninguém conseguiu entender os gritos.

Cozinha chique é assim mesmo. Tem essas coisas de coar o molho no saco do aspirador de pó, adicionar raspas de palmilhas de botas velhas e musgo de telhado.

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